Os Calendários Romanos como Expressão de Etnicidade

Norma Musco Mendes* & Airan dos Santos Borges**

* Professora Associada de História Antiga do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC) da UFRJ, Membro do Laboratório de História Antiga (LHIA) / UFRJ, Pesquisadora de Produtividade II do CNPq. 
** Professora de História pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ, com bolsa de mestrado concedida pela CAPES, realizando o projeto de dissertação sobre a “Urbanização e Romanização em Augusta Emérita: uma análise comparativa entre o modelo urbanístico “emeritense” e a concepção greco-romana de cidades no Alto Império”.
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 48/49 Editora UFPR
§

À Guisa de Prefácio

A cultura astrológica é tanto um reflexo das etnicidades dos povos como também é a base social dos mesmos. Nosso mundo ocidental foi construído a partir da cultura astrológica difundida no calendário romano.

O capitalismo é um resíduo léxico desta cultura romana que foi transformada com o passar dos séculos numa cultura cristã. O calendário pagão ao ser transportado para o contexto cristão não deixou de transmitir seus aspectos astrológicos, mas refinados numa linguagem eclesiástica transformou o mundo da visão aristotélica dos planetas em princípios astrológico-cristãos aquilo que antes pertencia às divindades pagãs romanas.

O conceito das divindades responsáveis pelo destino humano não deixou de atuar no inconsciente da humanidade, por este motivo, mesmo dispensando os deuses de seus atributos voluntariosos o homem passou a encarar nos ditames do calendário um destino mais focado na liberdade humana apesar de que na prática este conceito nunca foi exercido pela prole ou por aqueles que reivindicaram este direito.

Digamos que o ato “burocrático” da criação de calendários tem que reposicionar as antigas divindades em outras mais adaptáveis às necessidades do momento, porque os calendários do mundo nunca deixaram de ser um reflexo cultural da religião aceita pelo inconsciente coletivo dos povos.

De forma que, mesmo na vigência do calendário gregoriano nosso mundo capitalista ainda é regido pelas divindades pagãs que presidiram o destino de Roma e depois de séculos imiscuídas no panteão cristão ainda presidem nossas vidas de modo plenamente determinista apesar de julgarmos o mundo de hoje sob uma ótica mais individualista e livre de “conceitos medievais”, onde o destino do homem dependia da vontade dos deuses.

O ecletismo das crenças é uma expressão desta diversidade de interpretações dos calendários, as diferentes divindades dos povos retratam aspectos múltiplos dos signos e dos planetas que invariavelmente compõe a psique coletiva e o espaço cognitivo da humanidade.

César Augusto – Astrólogo

γ

δ

Resumo

Este artigo tem como objetivo demonstrar que os calendários romanos foram uma construção cultural e que sua elaboração reforça a ideia de que desde o início do período republicano, a autoridade política estava implícita no exercício do patronato.

Os Calendários Romanos

Sabemos que etnicidade é um conceito novo nas Ciências Sociais e que sua emergência interagiu com os problemas contemporâneos. De acordo com Poutignat 1 este conceito surge ao mesmo tempo em que:

1 POUTIGNAT, P.; STREIFF-FENART,J. Teorias da Etnicidade seguido de Grupos étnicos e suas fronteiras de F. Barth. São Paulo: UNESP, 1998, p. 22.

(…) eclode um tipo de conflito qualificado como “étnico”, nas sociedades industriais e nas sociedades do Terceiro mundo, e se produzem igualmente nas nações ditas pluriétnicas, assim como naquelas supostas culturalmente homogêneas: regionalismos na França e na Grã-Bretanha, conflitos linguísticos no Canadá e na Bélgica, problemas das nacionalidades no leste europeu, tribalismo na África.

Portanto, o conceito de etnicidade surge para preencher a necessidade de um arcabouço teórico capaz de analisar a inter-relação dos sistemas sociais e os processos de interação social e cultural entre grupos étnicos distintos. Ou melhor, a aplicação do conceito tem como objetivo compreender as estratégias implementadas para a construção de identidade e a elaboração de modelos de comportamento e valores que permitam manter unidos grupos de pessoas que, identificando-se culturalmente, reconhecem-se como iguais e se distinguem dos “outros”. Estas questões formam um “conjunto de problemas comuns” para o estudo das sociedades entendidas como um todo complexo e infinito de variáveis relacionadas às práticas sociais pelas quais os homens interagem entre si e com os “outros”, em determinados contextos temporais e espaciais, produzindo formas distintas de respostas sociais. Neste sentido, embora seja um conceito moderno, também pode ser aplicado ao estudo das sociedades na Antiguidade.

Atualmente, no tocante à História de Roma, as questões vinculadas ao contexto relacional dos processos identitários entre os romanos e as comunidades provinciais estão no cerne dos debates historiográficos que buscam reavaliar o termo Romanização e, consequentemente, analisar a formação do Império Romano.

Afastando-nos das discussões relacionadas com o conceito de Romanização, pretendemos neste artigo demonstrar que os calendários romanos podem ser considerados como um atributo identitário da sociedade romana. Por outro lado, também expressam a cultura política 2 que se desenvolveu durante o período republicano, baseada nas relações do tipo patriarcal, as quais se consolidaram com o desenvolvimento do poder pessoal militar em torno da figura do Princeps.

2 Por cultura política entendemos: “conjunto de representações que une um grupo humano sobre um plano político, quer dizer uma de visão de mundo compartilhada, uma comum leitura do passado, da projeção do amanhã vivido em conjunto. É o que aparece no combate político do cotidiano sobre a aspiração desta ou daquela forma de regime político e de organização socioeconômica, ao mesmo tempo em que sobre as normas, as crenças e os valores compartilhados”. DELACROIX, Ch. L´Histoire entre doutes et renouvellements. In: Histoire & Historiens em France depuis 1945. Paris: Association pour le diffusion de la pensée française, 2003, p. 189-297.

Inicialmente, torna-se necessário ressaltar que a mensuração do tempo numa sociedade complexa é uma construção social porque pode ser vista como uma instituição. O indivíduo, ao nascer, é inserido no sistema temporal da sociedade a que pertence e, ao crescer, aprende a interpretar os sinais temporais construídos, os quais passam a orientar a sua própria conduta 3.

3 Vide ELIAS, N. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 7-61.

Os calendários são compreendidos como forma de “regramento” da vida em sociedade, ou seja, como meios de orientação dentro da continuidade móvel da sociedade como um todo. E, acima de tudo, funcionam como unidades de referência e significação do ethos cultural de um povo. É através da transmissão de mensagens significativas para a sociedade que se permite regular os comportamentos dos grupos sociais e manter a memória da comunidade. O tempo torna-se a representação simbólica de uma vasta rede de relações que reúne diversas sequências de caráter individual, social ou puramente físico.

4 Conceituamos ethos com base em GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

Os calendários são sistemas de medida do tempo, com base na ordem cósmica, cuja menor unidade é o dia. Ao criarem unidades específicas de referências, demonstram a sua ligação com o sistema de crenças e valores compartilhados pela sociedade, transformando-se num importante veículo de significação do ethos cultural de um povo. Desta forma, os calendários regulam o ritmo da vida dos homens, tanto em relação às etapas de produção econômica, como da vida pública e cotidiana. A elaboração dos calendários é, portanto, passível de controle por aqueles que detêm o poder, conforme ressalta Le Goff5. Logo, a investigação sobre a elaboração dos calendários, como uma categoria de análise histórica, levou-nos ao estudo das questões relacionadas com o sistema de representações da identidade cultural e com o tipo de relações de poder da sociedade romana.

5 LE GOFF, J. Calendário. In: Enciclopédia Einaudi– v. 1: Memória/ História. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984. e LE GOFF, J. Calendário. In: História e memória. Trad. Irene Ferreira, Bernardo Leirão e Suzana Ferreira Borges. Campinas: Ed. UNICAMP, 1988.
Para os estudos dos calendários romanos, as análises realizadas por MOMMSEN, Th. Römische Geschichte IV. Berlin: s/e, 1874 e as realizadas por CAGNAT, R. Cours D’Épigraphie Latine. Paris: Fontemoing et Cie, 1914, p. 311-331 são consideradas como obras de referência, visto que registraram e catalogaram um vasto conjunto de inscrições epigráficas, pertencentes a períodos diversos, encontradas na Península Itálica e nos territórios provinciais.

α

No estudo da ordenação do tempo romano durante a República, podemos distinguir o reconhecimento de três categorias de “calendários”:

(1) o calendário natural, vivido por todos os homens, marcado pelas estações que determinam o ciclo da agricultura e pelo movimento dos astros (Sol e Lua); (2) o calendário civil ou fasti, que indica o nome dos meses, a ordem dos dias e das fases da Lua, e (3) o calendário religioso, que determina as festas e demais rituais de cada mês.

A criação do calendário civil republicano foi gradual. Jean Bayet 7, Jonh Scheid 8 e Jörg Rüpke 9 defendem a hipótese de que a ordenação do calendário civil acompanhou o processo de organização dos rituais religiosos cívicos, de dessacralização e codificação do Direito (Lei das Doze Tábuas) e da formação das práticas e institutos políticos da res publica. Neste período, o colégio dos pontífices ficou encarregado pelo pronunciamento do ius, quer dizer, a ordenação do direito civil, pelo registro da sequência das orações e das invocações rituais e pela ordenação do tempo. De acordo com Aldo Schiavone 10, os sacerdotes passaram a ter um importantíssimo controle social do tempo e, ao lado dos três flâmines (de Marte, de Júpiter e de Quirino), dos augures e das vestais, foram os responsáveis pela organização da religião romana antiga.

7 BAYET, J. La religión romana; história política y psicológica. Madrid: Cristandad, 1984.
8 SCHEID, J. La religion des romains. Paris: Armand Colin, 1998 (Dir. F. Hartog, P. Schimitt-Pantel e J. Scheid, Collection Cursus, série ‘Histoire de l’Antiquité’).
9 RÜPKE, J. Roman Religion. In: FLOWER, H. (Ed.) The Cambridge Companion to the Roman Republic. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p 179.
10 SCHIAVONE, A. O jurista. In: GIARDINA, A. O homem romano. Lisboa: Editorial Presença, 1992, p. 77.

A organização do calendário representou um importante marco no processo de organização da comunidade romana frente aos princípios da res publica, pois retirou a ordenação do tempo social do domínio da oralidade, alocando-a na lógica do coletivo. Desta forma, podemos interpretar o calendário, assim como o Direito, como mecanismos de publicização das regras de conduta que correspondiam ao sistema de valores compartilhados, cujo objetivo era moldar e controlar o comportamento dos indivíduos dentro da sociedade.

O primeiro marco na ordenação temporal durante a República corresponderia à junção do calendário natural ao civil pela adaptação do ciclo lunar (que marcava as fases da Lua: nova, crescente, cheia e minguante) ao ano solar (marcado pelas estações: primavera, verão, outono e inverno) e às atividades de cada período do ano. Para Scheid, a fixação de uma correspondência precisa entre as fases da lua e os dias da semana romana criou a possibilidade do cálculo dos dias de mercado e da justiça de forma precisa.

Confrontando a tradição que atribui ao rei Numa Pompílio a divisão dos dias fastos e nefastos, o autor afirma que este fato teve lugar em fins do IV século a.C., no bojo das reformas no sistema jurídico romano implementadas pelo decênviro Apius Claudius. Com isto, as grandes festas públicas, bem como os ritos religiosos de cada mês, tiveram seu lugar no calendário público, fato este que relegou ao calendário uma importância central no sistema religioso romano, na medida em que impedia que os ritos tradicionais ali configurados caíssem no esquecimento.

A sequência dos festivais religiosos passou a definir o calendário e a ditar um ritmo religioso básico para o ano. Além disso, possibilitou o uso do tempo incluindo um sincronismo entre os negócios públicos e seculares com a religião.

Posto isto, podemos afirmar que no II século a.C., o calendário civil romano já agrupava conjuntamente as três configurações: o calendário solar (demarcando a estrutura do ano), o calendário lunar (com a estrutura do mês) e o calendário religioso (com as festas). Esta adaptação em um só documento remonta a Fulvius Nobilitor, que teria afixado o primeiro calendário deste tipo no templo dedicado a Hércules e às Musas, consagrado entre os anos de 180-170 a.C.

A expansão romana evidenciada ao longo da República foi acompanhada de um processo de difusão do modo de vida romano. Nesse sentido, os calendários encontrados fora da cidade de Roma atestam que a organização temporal também foi alvo de difusão. No entanto, os calendários passaram a ter formas variadas em Roma, na Itália e nas províncias.

Logo, inscritos em pedra, em bronze, em mármore ou pintados nas paredes dos edifícios públicos, os calendários divulgavam a estrutura básica do mês, o conhecimento dos nomes dos cônsules e dos generais honrados no triunfo, as ações sacras e oficiais para toda a coletividade da VRBS. Neste contexto, parece-nos muito pertinente a afirmação de Michel Meslin11 no sentido de que os calendários demonstram a preocupação dos romanos em distinguir dois tempos: um tempo da natureza, que é externo aos homens, e um tempo marcado pelas suas próprias atividades, durante o qual ele vive. O tempo, portanto, para os romanos era um tempo qualitativo.

Como já mencionamos, desde o período monárquico, as fases da Lua marcavam a estrutura básica dos meses que compunham o ano de 355 dias. No entanto, com o passar dos anos, a elaboração dos calendários começou a se deparar com o descompasso entre o ano solar e a marcação lunar dos meses, comprometendo a marcação das datas festivas e dos eventos cívicos. Tornou-se necessária à inserção de um mês intercalar denominado merkedonius a cada dois anos. Este mês teria a duração dos dias necessários para corrigir as datas do calendário civil e tinha a mesma estrutura dos outros meses, isto é, o número e a classificação dos dias e o registro das semanas.

δ

É preciso ressaltar que os calendários foram constantemente enriquecidos, pois novos festivais eram introduzidos em Roma para celebrar os novos deuses que, gradualmente e de acordo com a dinâmica relacional entre os romanos e os “outros”, passavam a integrar o panteão romano. Logo, demonstram o caráter plural da cultura romana e podem ser vistos como uma expressão de etnicidade. Dentre os documentos republicanos analisados, optamos por apresentar uma análise mais detalhada do calendário encontrado na cidade de Antium (atual Anzio), que era um calendário pintado em gesso calcinado que corresponderia a uma cópia do calendário oficial. A imagem que apresentaremos a seguir é uma reconstrução, pois do original só restaram alguns fragmentos.

Na tradição romana, o ano cívico começava no mês de março, com as festas realizadas de 1 a 24 de março, em honra a Ana Perenna (deusa do retorno dos anos) e a Marte, cujo objetivo era a purificação das armas, dos escudos, das trombetas e da celebração do tempo renovado. O ano terminava no mês de outubro, quando era encerrado o ano militar, com vários festivais em honra a Marte, dentre os quais o denominado October Equos12 ou de Equirria13e a festa do Armilustrum14. Novamente, as armas eram purificadas e os cidadãos passavam de soldados a civis, sendo simbolicamente reintegrados ao espaço de Júpiter.

11 MESLIN , M. L’Home Romain – Des origines au I er siècle de notre ère. Paris: Hachette, 1978, p. 55-74.
12 Esta festa e as que seguem relacionadas no texto foram analisadas e catalogadas na monografia de BORGES. A. A ordenação do tempo e os calendários na Roma Antiga dos séculos I a.C. e I d.C. Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, 2007. A celebração em questão era realizada em honra de Marte, no dia 15 de outubro. Pode ser inserida no conjunto de festividades que celebravam as atividades militares.
13 Celebrações realizadas em honra de Marte no dia 23 de março. Pertencem ao conjunto de festas que consagravam o “ciclo” guerreiro e se realizavam por meio dos ritos empreendidos na purificação dos cavalos de guerra.
14 Celebrações realizadas em honra de Marte nos dias 19 de março e outubro. Eram celebradas no Campo de Marte e no Aventino, respectivamente, e consistiam em sacrifícios para a expiação das armas e prosperidade do exército romano. Os ritos englobavam a realização de dança e canto ritual dos sálios com escudos sagrados (os ancilia) pela cidade.

No entanto, os meses de janeiro e fevereiro, sob a chancela de Jano, deus dos inícios, e de Februus, deus das purificações, também representariam, segundo J. Bayet, o “encontro de dois extremos do ano” e, portanto, o início e o fim dos anos.

No documento em análise, os meses aparecem tanto em ordem numérica como religiosa, a saber: janeiro (em honra de Jano), fevereiro (em honra de Februa), março (em honra de Marte), abril (em honra da deusa indo-europeia Aprilis), maio (em honra do deus indo-europeu Maius), quinto, sexto, sétimo, nono, décimo, acrescendo ainda o registro do mês intercalar.

A semana aparece organizada em oito dias compreendidos entre dois mercados (nundinae), assinalados pelas letras de até e ordenada de acordo com os seguintes marcos: as kalendas, registradas na abreviação KAL (com a marcação da lua minguante, isto é, no primeiro dia de cada mês); as nonas– registradas na abreviação NON (com a marcação da lua no quarto crescente, poderia cair no dia cinco ou sete de cada mês) e os IDUS (com a marcação da lua cheia, que poderia cair no dia 13 ou 15 de cada mês).

Os calendários organizavam o tempo e a ação dos cidadãos, indicando a natureza religiosa, política, jurídica e econômica de cada dia.

Os dias eram divididos em Fastos, Nefastos, Endotercisus, os dias eleitorais e os dias comiciais. Os dias Fastos eram aqueles em que os homens podiam agir e trabalhar, pois tinham o apoio dos deuses; dentre estes, estavam incluídas as reuniões das Assembleias Populares. De acordo com o poeta Ovídio15 na obra Fastos, eram os dias nos quais se podia atuar com justiça. Em geral estes dias aparecem nos calendários abreviados pela letra F. Nos dias Nefastos, abreviados pelas letras NF, os homens não tinham a graça dos deuses para a realização dos seus empreendimentos, deviam abster-se de qualquer atividade para não fracassar, era um dia de festival (dies festus/festi), quer dizer, um dia consagrado aos deuses. Eram reservados para a prática das atividades religiosas, como a realização das festas, dos sacrifícios, dos banquetes e demais rituais sacros. Nestes dias não se podiam pronunciar as três palavras: do, dico, addico (entrego, assino e atribuo), pronunciadas pelo pretor ao administrar a justiça. Os dias classificados como Endotercisus são aqueles fastos pela manhã e nefastos pela tarde. Aparecem abreviados pelas letras EN. Os dias eleitorais não eram previamente delimitados, pois eram determinados pelos magistrados de acordo com a necessidade. Finalmente, os dias comiciais eram aqueles reservados para a realização das feiras e aparecem registrados pela letra C.

15 O poeta Publio Ovidio Naso escreveu Fastosna forma de versos elegíacos. Segundo Manuel Rolph Cabeceiras, Ovídio era membro de uma antiga e rica família eqüestre. Nascido em Sumo, região do Brútio (a 135 km ao norte da cidade de Roma, nos montes Apeninos), em 20 de março de 43 a.C., possuiu uma educação retórica voltada aos negócios do Estado. Não obstante, dedicou-se a uma vasta carreira poética, que incluiu 11 títulos (Amores, Heroides, Medea, Arms Amatoria, Medicamina Faciei Feminiae, Remedia Amores, Metamorphoses, Fasti, Tristia, Íbis e Epistulae ex Ponto). A obra em questão é datada no ano 3 do I século d.C. Trata-se de uma reconstrução do calendário romano a partir da descrição das festas, do significado dos meses, das práticas religiosas e das informações astronômicas. Cada livro é a descrição de um mês; no entanto, a obra só chega até o mês de junho. Segundo Bayet, o poeta teria consultado os Fastos Prenestinosdo gramático Verrio Flaco, e as Antiguidades Divinas, de Varrão, Tito Lívio, dentre outros autores.

Vejamos como podemos identificar estas informações no Calendário de Antium:

Quando analisamos comparativamente o calendário acima com o Menologium Rusticum Colotianum16, datado do século I d.C. e encontrado na região do Lácio, observamos mudanças significativas relacionadas com a forma de racionalização do tempo, que passa a ter uma vinculação com o conhecimento da astronomia e da matemática.

16 Suporte: bloco paralelepípedo; material: mármore; dimensões: 65.5x41x39 de altura, 1,5-2,1 de largura; datação: século I d.C.; localização: Foi encontrado no Jardim de Angelo Colocci, de onde foi transferido no Palacio Farnense. CAMODECA, G.; SOLIN, H. Catálogo delle Inscrizioni Latine del Museo Nacionale di Napole. v. 1: Roma e Latium. Napole: Alffredo Editore, 2000, suporte n. 64.

Inicialmente, podemos concluir que estas mudanças fazem com que o calendário assuma a função de um relógio rústico, que privilegia as informações astrológicas e agrícolas de cada mês do ano.

O Menológio é composto por quatro lados (A, B, C, D), subdivididos em três colunas cada. Em cada coluna tem-se as representações dos signos do zodíaco, dos meses, dos dias correspondentes aos meses e das horas; da posição do Sol, do deus tutelar do mês e das atividades agrárias correspondentes aos meses e das tradicionais festas republicanas do período. O início das estações não é diretamente registrado nos meses, mas pode ser previsto a partir da marcação dos equinócios e dos solstícios.

• Equinócio é o momento em que o sol corta o Equador e faz com que o dia seja igual à noite. No Menológio, este fenômeno é registrado em dois momentos: no 8º dia antes das calendas de abril, ou seja, em 23 de março, marcando a entrada da primavera, e no 8º dia antes das calendas de outubro, em 23 de setembro, marcando a entrada do outono.

• Os solstícios são no total de dois durante o ano. Este fenômeno marca o momento em que o sol atinge o ponto mais alto no Equador. No Menológio, é registrado no 8º dia antes das calendas de julho, em 23 de junho, marcando a entrada do verão, com dias mais longos, e no 8º dia antes das calendas de janeiro, em 23 de dezembro, marcando a entrada do inverno.

Com o intuito de apresentar uma amostragem, analisaremos apenas o lado A do Menológio:

Primeira Coluna
Capricórnio

Mês Janeiro.
31 dias, nonas no quinto dia (= no dia 5).
Dia de 9 horas (3/4 do dia), noite de 14 horas.
Sol em Capricórnio.
Tutela de Juno.
O pântano se inunda, o salgueiro, o junco é cortado.
Sacrifícios aos Deuses Penates.

Segunda Coluna
Aquário

Mês Fevereiro.
28 dias.
Nonas no quinto dia (= no dia 5).
Dia de 10 horas (3/4 do dia), noite de
13 horas.
Sol em Aquário.
Tutela de Netuno.
Seara é sachada, das vinhas é cultivada a superfície, o junco é incendiado.
Parentalia, Lupercalia, Cara Cagnatio, Terminalia.

Terceira Coluna
Peixes

Mês Março.
31 dias.
Nonas no sétimo dia (= no dia 7).
Dia de 12 horas, noite de 12 horas.
Equinócio.
No 8º dia antes das calendas de abril.
Sol em Peixes.
Tutela de Minerva.
As estacas das vinhas são colocadas nos terrenos cavados (e) entrelaçadas pelo semestre.
Procissão de Isis.
Culto de Mamurio, Liberalia, Quinquatria, Lavação.

δ

Portanto, conforme já afirmamos, os calendários agiam como um instrumento de orientação do universo social dos homens e como uma forma de regulação de sua existência no interior da sociedade, de acordo com os ritmos do universo e com o sistema de representações, crenças e valores compartilhados. Tal afirmação pode ser plenamente confirmada pelo significado dos festivais.

Diante dos limites deste artigo, definimos os festivais como atividades rituais que englobavam o lúdico e a fantasia, do relacionado entre passado, o presente e o futuro, durante o qual os homens se comunicavam com os deuses. De tal forma, o homem se tornava possuidor de duas naturezas: homo festivus e homo phantasia. Paralelamente, esse retorno ao tempo original também comportaria uma função exemplar para sua vida comum e, aqui, acrescentamos as noções desenvolvidas por Mircea Eliade20, no sentido de que o homo religious, ao participar destas festas, encontraria as condições de possibilidade de sair do tempo ordinário e reintegrar o tempo mítico de gestado mundo pelos deuses.

20 ELIADE, M. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

De acordo com Bayet, as festas podem ser organizadas em ciclos de acordo com o caráter de seus ritos. Assim, haveria os ciclos: guerreiro (reuniria as festas de cunho militar, que visavam celebrar a abertura do ano guerreiro, agrupava cerimônias de purificação das armas e limpeza dos escudos, dentre outras. São exemplos o Armilustrum e a Equirria); civil/social: agruparia festas de cunho cívico e que remontaria à esfera da cidade e da comunidade. São exemplos a Lemuria (Celebrações realizadas em honra dos Lêmures, gênios inquietos e malfazejos, ou alma de pessoas más, que, segundo a tradição, voltavam ao mundo dos vivos a fim de atormentá-los, nos dias 09, 11 e 13 de maio. Os ritos propunham a purificação familiar e cívica.), a Agonalia (Celebrações realizadas em honra dos deuses: Jano, Líber Pater (da fertilidade), Vejovis (mundo subterrâneo) e Sol Indiges (Epíteto do Sol nativo) nos dias 9 de janeiro, 7 de março, 21 de maio e 11 de dezembro.), a Portuaria (Celebrações realizadas em honra de Portumno, deus que presidia os portos.), Matronalia (Celebrações realizadas em honra de Juno Lucina no primeiro dia de março. Os ritos comemoravam a luz e a infância.) e Saturnalia (Estas celebrações eram realizadas em honra de Saturno dos dias 17 a 20 de dezembro, sob Augusto. Visavam a celebração da vida social e da ordem cívica.), purificação: (são as festas alocadas principalmente no mês de fevereiro, cujo sentido remete à purificação da sociedade e ao mundo dos mortos, contudo, consideramos que também apresentam uma esfera identitária, como, por exemplo, a Lupercalia, a Feralia (Celebração em honra de Tácita e Juno Februa no dia 21 de fevereiro. Fazem parte das cerimônias relacionadas ao mundo dos mortos e visavam a purificação familiar e cívica.).

Elaboramos o quadro abaixo para demonstrar que, no calendário de Antium, esses ciclos aparecem justapostos:

1 Celebrações realizadas em honra de Carmenta do dia 11 ao dia 15 de janeiro. Os ritos consagravam as atividades maternas.

2 Celebrações realizadas em honra de Líber ou Baco.

3 Celebrações realizadas em honra de Minerva em 23 de maio. Visavam a  purificação das trombetas de guerra.

4 Estas celebrações eram realizadas em honra de Tellus no dia 15 de abril. Seus ritos visavam a purificação e preparação da terra para as atividades agrícolas.

5 Celebrações realizadas em honra de Ceres no dia 19 de abril. Trata-se, sobretudo, de ritos agrícolas e pastorais que visam a reprodução dos trabalhos de irrigação, drenagem e a proteção do crescimento do trigo.

6 Celebrações realizadas em honra de Pales no dia 21 de abril. As atividades visavam a purificação do gado e dos estábulos.

7 Celebrações realizadas em honra de Júpiter e Vênus no dia 23 de abril e agosto. Foram as primeiras festas agrícolas vinculadas à produção de vinho nesta ocasião, o primeiro vinho era oferecido em libação a Júpiter.

8 Comemorações realizadas em honra de Robigus e Robigo no dia 25 de abril. Foram instituídas pelo rei Numa Pompílio e seus ritos visavam a proteção do trigo.

9 Celebrações realizadas em honra do Bosque (lucus) Sagrado nos dias 19 a 21 de julho. Aconteciam num bosque sagrado próximo da via Salaria, perto de Roma. No início da República, rememoravam a ocasião em que as florestas foram devastadas pela agricultura e assentamentos e seus espíritos tinham de ser aplacados.

10 Realizadas em honra de Neptunus no dia 23 de julho. Os ritos consistiam na coroação dos cavalos, burros e mulos com flores. Nestes dias, estes animais gozavam de um repouso absoluto. Além disso, durante o culto havia o sacrifício de um touro. As atividades cultuais remetiam à irrigação e ao mar; no entanto, pouco se sabe sobre as especificidades do culto empreendido.

11 Celebrações realizadas em honra de Furrina, em 25 de junho. Este culto perdeu-se no final da República e, portanto, as informações são muito escassas. Sabe-se que havia um flâmine encarregado das atividades cultuais e que as atividades empreendidas remetiam à água das fontes e aos trabalhos de abertura de poços.

12 Celebrações realizadas em honra do deus Consus, nos dias 21 de agosto e 15 de dezembro. Os ritos consistiam na realização de sacrifícios no templo com oferendas das primeiras frutas e corridas de cavalos e carros no Circo Máximo. O altar do deus situava-se no grande circo e permanecia coberto de terra o ano inteiro. Nesta ocasião, o Flâmine Quirinal, assistido pelas Vestais, desenterrava o altar e oferecia-lhe um sacrifício. As atividades visavam celebrar o final das colheitas em agosto, a semeadura no outono em dezembro, e as reservas abundantes.

13 Celebrações realizadas em honra de Vulcanus nos dias 23 a 31 de agosto. Os ritos duravam oito dias. As ruas de Roma eram iluminadas; acendiam-se fogos e fogueiras, nas quais se lançavam as vítimas em honra do deus. Havia, também, uma corrida de lâmpadas, na qual os atletas corriam carregando um archote ou facho nas mãos; o que era vencido na corrida dava seu facho ao vencedor. As atividades visavam obter proteção contra os incêndios.

14 Celebradas em honra de Ops, no dia 25 de agosto. Eram celebradas na época das colheitas e das sementeiras, visando a sua purificação.

15 Celebradas em honra do rio Vulturnus.

16 Realizadas em honra de Meditrina, no dia 11 de outubro. Seus ritos remetiam aos medicamentos e ao culto da vinha.

17 Celebradas em honra de Fons ou Fortinalis (que presidiam as fontes), no dia 13 de outubro. Durante estas festas, molhavam-se nas fontes e nos poços guirlandas e coroas de flores com as quais se coroavam os meninos.

18 Celebradas em honra de Ops, no dia 19 de dezembro. Os ritos eram realizados cerca de três dias depois das Saturnalias e visavam a proteção da agricultura e a consagração das colheitas armazenadas.

19 Celebradas em honra de Angerona, no dia 21 de dezembro. Realizava-se um sacrifício em honra da deusa na Cúria Acculeia, em Roma. A celebração era conectada ao solstício de inverno.

20 Celebradas em honra de Aca Larentia, no dia 23 de dezembro. Segundo Bayet, seria resultado de uma fusão de ritos fúnebres com contos de fecundidade. Para outros autores, as atividades ainda rememorariam o mito de fundação de Roma. Na ocasião, realizar-se-iam ritos funerários celebrados pelos pontífices e os Flâmines Quirinais na suposta tumba da deusa.

Neste artigo, limitar-nos-emos a analisar as festas denominadas de Lupercalias, Terminalias e Quinquátrias21 porque aparecem tanto no calendário de Antium, como no Menologium Rusticum Colotianum. Comemoradas no dia 15 de fevereiro, as Lupercalias eram realizadas em honra de três divindades: Lupercus, Faunus22 e Marte23.

21 Para a análise dos calendários e das festas, além da bibliografia especializada, utilizamos os seguintes dicionários: ADKINS, L.; ADKINS, R. Dictionary of Roman Religion. New York: Facts On File,1996; BENEDITO, S. Dicionário breve de mitologia grega e romana. Lisboa: Editorial Presença, 2000; CALDERINI, A.–M. Dizionario di Antichità Greche e Romane. Milano: Ceschina, 1960; FARIA, E. Dicionário Escolar Latino. Rio de Janeiro: FAE, 1988; LAMBOLEY, J.L. Lexique d’histoire et de civilisation romaines. Paris: Ellipses, 1995; MARTIN, R. (Orgs.). Dicionário cultural da mitologia greco-romana. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1995; SCHMIDT, J. Dicionário de mitologia grega e romana. Lisboa: Edições 70, 1985 e SPALDING, T. Dicionário de Mitologia Latina. São Paulo: Cultrix, 1993.
22 Deus rústico, descendente de Fauno, que habitava os campos, bosques e florestas da Itália. Tem atribuições pastorais; contudo, primitivamente, era o deus da agricultura, sendo igualado ao deus grego Pã.
23 Deus Marte: deus romano da guerra. Originalmente este deus foi conhecido como deus da agricultura e guardião dos campos e limites; posteriormente, foi identificado com Ares e, deste modo, assumiu o epíteto de deus da guerra. Tinha também o nome de Mavors, que se avizinha da palavra mors, morte. Consideravam-no o pai de Rômulo. É uma divindade tutelar, tal como Júpiter e Rômulo. Tinha um flâmen, sacerdotes (os Sálios), que executavam em sua honra danças guerreiras, e possuía inúmeros templos, entre os quais o da Porta Capena. Os romanos figuravam-no armado de escudo, capacete e lança.

Os lupercos24 se reuniam na caverna do Lupercal (localizada no Palatino), sacrificavam um cachorro, uma cabra e ofereciam bolos sagrados. Em seguida, vestidos com uma tanga confeccionada com a pele dos animais sacrificados, sendo untados com o sangue destes animais, comiam e bebiam e encarnavam a condição de homens-lobo, companheiros do deus selvagem Fauno. Praticamente nus, corriam pelas ruas de Roma, batendo com uma tira de pele de bode nas mulheres que encontrassem, para torná-las férteis. Todo este ritual está ligado às narrativas relativas a Rômulo e Remo, os quais foram os primeiros lupercos, ou seja, caçadores, pastores sem mulheres e filhos. Pertenciam, assim, a um mundo desordenado e condenado ao desaparecimento. Esta foi a razão da fundação da cidade de Roma e, posteriormente, do rapto das sabinas, para que fosse possível constituir famílias e, consequentemente, gerar filhos e povoar aquele espaço, consagrado por Rômulo a Júpiter. Este tempo festivo era o momento para as inversões e para as fantasias sexuais, pois uma sociedade formada apenas por lupercos estava aberta às tentações eróticas, principalmente a pederastia. Eram realizadas em fevereiro porque este mês, conforme já afirmamos, era considerado como um momento de purificação e preparação da comunidade para o início de um novo ano, no mês de março.

24 Luperci eram jovens sacerdotes, provenientes de famílias nobres.

Mencionamos acima que o período da festa era considerado como um momento de ilusão, de diversão, de inversão e de suspensão da ordem social. O final da festa marcava o retorno à normalidade. Logo, as Lupercalias simbolizavam a afirmação e a reafirmação do fim da selvageria, da barbárie e o início da dimensão política dos homens organizados como cidadãos e sob a proteção de Júpiter.

As Terminalias eram comemoradas no dia 23 de fevereiro e eram realizadas em honra aos deuses Terminus e Júpiter.

O deus Terminus era o deus da pedra de limites de um território ocupado e explorado pelos homens e do ager romanus. Nesta festa, os chefes dos campos vizinhos depositavam nos limites de suas propriedades uma coroa, ofereciam libações de leite ao deus Término, imolavam um cordeiro e regavam com seu sangue os limites das suas propriedades. Posteriormente, os vizinhos comemoravam num banquete, como hóspedes recíprocos às relações de confiança e amizade. Desta forma, o deus Término representava as relações de separação e de proximidade, as quais eram regidas pela Fides25. Ultrapassar um limite territorial garantido por este deus, somente na condição de hóspede do povo romano. Caso contrário, seria reconhecido como inimigo. Podemos perceber a importância desta divindade como protetora do ager romanus e, portanto, a sua associação com Júpiter. A associação destas divindades pode ser interpretada como a ligação de dois aspectos fundamentais da estrutura social: o poder soberano e a proteção da propriedade privada. Por outro lado, a aproximação de Terminus com a Fides demonstra que este deus é a garantia da justiça, a qual regula o relacionamento entre os cidadãos e entre estes e os povos vizinhos. Nesta festa, ficavam reafirmados e reforçados os princípios básicos que regiam a propriedade privada, os limites da lei civil romana e procurava frear o uso da força e o abuso de poder, assim como fortalecer o relacionamento entre os romanos e os seus vizinhos.

As Quinquatrias eram realizadas de 19 a 23 de março, em 19 de junho e em 13 de setembro em honra a Minerva26. Eram realizados jogos de gladiadores e os flautistas mascarados e disfarçados de mulheres27 percorriam a cidade, realizando o ritual de purificação dos instrumentos de música, cuja invenção se atribuía a Minerva.

25 Significa a fidelidade, a lealdade, a confiança, a palavra empenhada. Considerando que a sociedade era dominada pela oralidade, este princípio era revestido de um valor moral divinizado, assim como a justiça. Constituía-se, assim, uma noção essencial para a ordem pública, social e jurídica.
26 Deusa romana que personificava o poder do pensamento. Seu nome deriva de mens “espírito”, os latinos identificavam-na com a deusa grega Palas Atena, que presidia a sabedoria, as artes e a guerra. Em Roma, Minerva tinha templos sobre o Capitólio e o Aventino.
27 MESLIN, J. (p. 165 e s.) esclarece que os flautistas travestidos e embriagados simbolizavam as auroras trazidas à força, sendo uma referência à festa das Matrálias, consagrada à deusa Mater Matuta, protetora do nascimento e das matronas. Os nascimentos eram simbolizados pelas auroras, visto que também significavam o início de um tempo novo.

Com base no antropólogo Roberto Damatta, entendemos os festivais romanos como rituais pátrios fundados na possibilidade de dramatizar coletivamente os valores globais, críticos e abrangentes da sociedade, pois cada festival estava orientado para uma esfera da vida pública ou da vida privada.

Ademais, conforme mencionamos no início deste artigo, o estudo da forma como os calendários eram elaborados nos ajuda a entender as relações de poder. Vimos que, desde o início do período republicano, os calendários estavam vinculados à competência dos pontífices, os quais pertenciam ao mesmo grupo social que detinha o poder.

O exercício da soberania na República é apresentado pela tradição historiográfica como o resultado da ação conjunta do Senado (Conselho Consultivo), das Assembleias e dos Magistrados. Havia a preocupação de ressaltar a integração do Populus Romanus e do princípio da sua soberania como a suprema fonte de poder decisório. No entanto, se observarmos os obstáculos existentes para uma efetiva participação do povo, veremos que o Senado sempre exerceu uma posição de preeminência, fundamentada pelo poder inato dos patres, consolidando o caráter aristocrático do governo. Somente aos patres era reconhecida a titularidade dos direitos, somente eles detinham o genius, a divindade protetora individual responsável pela fertilidade e prosperidade da família e eram os guardiões dos mores maiorum. Os mores englobavam os princípios fundamentais que norteavam a moral pública e privada, a vida familiar, o comportamento político e religioso. Ao serem ensinados e praticados pela família romana, garantiam o respeito à tradição ancestral responsável pela grandeza de Roma, constituindo-se, portanto, na base da educação do cidadão romano.

A separação de poderes (executivo, judiciário, legislativo) era desconhecida em Roma. No entanto, procurou-se a estruturação de regras institucionais para controlar, limitar e impedir o abuso de autoridade por qualquer um dos três institutos políticos: Senado, Povo e Magistrados. Contudo, a competência de cada um nunca foi bem delimitada, pois nunca existiu uma constituição republicana instituída por ato legislativo. Existiam práticas constitucionais, calcadas nos costumes e na tradição, havendo sempre a possibilidade de concentração de poderes facilitada pelas conjunturas históricas internas ou externas.

As bases aristocráticas desta república foram reforçadas pela formação da nobilitas28, pela consolidação da posição socioeconômica e política dos homini novi29 e pela vitória militar, que forjou um “ethos social” em relação à guerra fundamentado nas noções de laus e de gloria30. Consolidava-se, assim, a posição dos que detinham o poder e a riqueza, ou seja, daqueles que possuíam a dignitas31 e a auctoritas32. Estes nobiles se autoperpetuavam no Senado e repartiam entre si os títulos e a posição de patronos da res publica: os principes civitatis.

28 Com a aprovação da Lei Canuléia, em 451 a.C., que suspendia a proibição de casamentos entre patrícios e plebeus, formou-se uma nobreza patrícios – plebeia.
29 Indivíduos pertencentes às elites dos municípios italianos que receberam a cidadania romana plena.
30 A noção de “ethoss ocial” corresponde às dimensões cívica, doméstica, produtiva e guerreira da vida do homem em sociedade, interagindo numa dinâmica de interdependência e complementaridade com ação imperialista. Vide HARRIS, W. V. Guerra e imperialismo en la Roma republicana (327-70 a.C.). Madrid: Siglo XXI, 1989, p.17.
31 O termo dignitas significa a condição do cidadão comprovada publicamente, popularidade.
32 Princípio fundamental da cultura política romana e que era conferida apenas e somente pela dignitas da pessoa, instituição ou corporação que sancionava uma decisão. É algo contínuo que depende da manutenção de uma perpétua liderança militar e civil, como benfeitor da república. É demonstrada pelo meritum (virtudes e realizações), pelos benefícios de sua atuação (officium), os quais geravam a gratidão (gratia).
§

Estes patronos da res publica dominavam as relações de poder porque tinham o monopólio sobre todos os locais que conferiam auctoritas. Eram os guardiões do latim escrito, da preservação dos mores (tradição ancestral), monopolizavam o conhecimento da lei civil, das práticas religiosas e das formas de medição do tempo.

No tocante à elaboração dos calendários, vimos que o Menologium Rusticum Colotianum representa uma importante mudança na forma de racionalização do tempo, que se afasta dos conhecimentos preservados pela memória da tradição ancestral e passa a ser vinculada ao saber especializado dos matemáticos e astrônomos. Esta mudança se insere no contexto da crise do sistema republicano de governo, a qual é analisada por Andrew Wallace-Hadrill como uma “Revolução Cultural”.

A noção de revolução cultural se fundamenta na transformação das estruturas de conhecimento que interagiram com o processo de helenização de Roma, implicando na mudança dos locais de autoridade sobre os quais as relações sócio-políticas republicanas estavam construídas. Durante o final do século I a.C., a preservação da tradição, a memória e o conhecimento escaparam das mãos da nobilitas para as mãos de especialistas, aqueles que detinham o saber acadêmico. Redefiniu-se a posição dos juristas, cuja autoridade não mais era derivada da sua posição social e sim do controle da política e da ciência do direito. A elaboração do calendário e, portanto, o controle do tempo passaram a ser objeto de racionalização, exemplificada pelo objetivo de César, em 44 a.C.; e de Augusto, em 8 d.C., de ordenar o tempo no Império. Realizaram reformas no calendário romano, redefinindo o ritmo do ano com base no conhecimento dos astrônomos e matemáticos orientais. Simultaneamente, este tempo romano racionalizado pôde ser vislumbrado através do Império, substituindo os calendários locais, ainda que as tradições locais e os nomes dos meses fossem mantidos.

A reforma elaborada por Júlio César no ano de 44 a.C. torna-se relevante já que, neste período, o calendário estava defasado em três meses. Para efetuar a correção necessária, César contou com a ajuda do astrônomo Sosígenes de Alexandria, que instituiu o início do ano em janeiro e a introdução do ano bissexto a cada quatro anos, o que elevou para 365,25 dias o ano médio, denominado de juliano. Diante disto, o ano de 45 a.C. teve uma duração de 445 dias e os anos subsequentes passaram ter a estrutura: 1 mês de 28 dias, 7 meses de 31 dias intercalados por 4 meses de 30 dias. Este calendário, apesar de ter sofrido algumas modificações, perdurou até o século XVI e estabeleceu a marcação do ano com base no ciclo solar e o início do ano no mês de janeiro.

A reforma implementada por Augusto no ano 8 d.C. fez poucas modificações no calendário juliano. As mais significativas correspondem à modificação do número de dias das Saturnalias, que passaram a ter a duração de três dias, além de o mês sexto ter recebido a denominação de agosto, em honra ao princeps.

Estas reformas são bons exemplos para demonstrar que os locais de autoridade foram deslocados das mãos dos principes civitatis para a dos imperatores. Portanto, ao poder socioeconômico, político-jurídico e militar foi alinhada a autoridade acadêmica, representada pelos especialistas.

Em suma, parece-nos evidente que os festivais romanos expressavam uma identidade abrangente, pela forma como representavam todos os aspectos da realidade social (relações de poder, relações sociais, trabalho, guerra, sexo, vida, morte, homem selvagem, homem civilizado, homem, natureza), para serem lidos por todos aqueles que estivessem na cidade (cidadão e estrangeiros) e muitas vezes reproduzidos nas províncias, como foi o caso, principalmente, dos jogos de gladiadores.

Os festivais podem ser considerados como uma fala, através da linguagem das imagens que integram, e uma memória, na medida em que congregam o passado no presente e no futuro. Ademais, os momentos lúdicos, informais, de transgressão da ordem, ao lado daqueles formais, comandados pela coerção corporal, comportamental e verbal, estimulam a objetivação e o aprendizado de esquemas mentais, regras de comportamento do corpo, práticas sociais, os quais regulam a vida coletiva. Emitem mensagens que, ao serem reproduzidas e transmitidas de geração em geração, reforçavam em cada indivíduo os esquemas fundamentais da vida e da estrutura normativa da sociedade.

Nesse sentido, o registro dessas festividades nos calendários implicaria na afirmação e reafirmação da tradição e dos critérios identitários da sociedade romana, consolidando uma cultura política marcada pelas relações de poder de tipo pessoal, centralizada inicialmente nas mãos dos principes civitatis e, depois, consolidada pelo Princeps Senatus, como o supremo patrono do povo romano e de todo genus humanum.

Ω