A Cidade do Sol

Utopia e Astrologia em Campanella

Otávio Santana Vieira

Doutorando e Mestre em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba.

Carlos André Macedo Cavalcanti

Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor da Universidade Federal da Paraíba nos níveis de graduação e pósgraduação em Ciências das Religiões e na pós-graduação em História.
Universidade Federal da Paraíba
MELANCOLIA
Revista de Historia del Centro de Estudios sobre el Esoterismo Occidental de la UNASUR

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Resumo:

Este artigo busca compreender algumas concepções astrológicas e religiosas relacionadas com visões teóricas e práticas políticas em A Cidade do Sol de Tommaso Campanella. A astrologia exerceu uma influência considerável no Renascimento Italiano, aparecendo em Campanella de uma forma ideológica. Deste modo, podemos entender a influência da magia associada a obras como o Picatrix e os escritos herméticos popularizados pelas edições de Marsílio Ficino e que provavelmente influenciaram Campanella talvez mais que a Utopia de Thomas Morus. As referências astrológicas contidas na Cidade do Sol nos indica uma adesão de seu autor à noções de magia celeste que eram amplamente conhecidas no Renascimento. Em A Cidade do Sol, Campanella nos apresenta seu projeto de reforma política e de uma radical reforma hermética e filosófico-religiosa permeada de ideias astrológicas, mágicas e religiosas.

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Introdução: utopia e astrologia no Renascimento

Atualmente o termo utopia aparece na linguagem comum em um sentido completamente esvaziado ou limitado, remetendo a significados tais quais: fantasia, irreal ou quando assume o pejorativo irrealizável ou impossível. Entretanto, podemos retomar imaginativamente, ou seja, de um ponto de vista instaurador de sentido, que a utopia pode nos encaminhar a sentidos ou realidades distintas, pujantes de significados e realidade, atingindo assim outros níveis de ser por meio da criação de um produto do espírito extremamente ativo e fantástico.

A utopia historicamente diz respeito a inspirações de natureza material ou religiosa, quando não a ambos os sentidos. Com efeito, Charles Langford considera que a utopia possa significar a constituição de uma realidade perfeita, posto que o termo “utopia” provenha de duas origens: de “ou-topia” que designa um “não lugar” ou uma inexistência; e “eu-topos” que significa “lugar agradável”. A utopia está sempre relacionada a um topoi, um lugar estável que é ponto de partida.

O espírito humano desejoso de realização e de realidade sempre buscou de inúmeras maneiras instaurar mundos fantásticos plenos de verdade e sentindo. Sabemos que a palavra utopia como se entende filosoficamente surge na obra homônima de Thomas Morus no ano de 1516 que narra a organização de uma ilha chamada “Utopia”. Morus foi bastante importante para a popularização do termo e o surgimento de uma farta literatura utópica que se tornou um rico gênero literário. Entretanto, podemos encontrar referências bastante anteriores na filosofia e na literatura ocidentais que possuem em seus constituintes traços utópicos ou características reformadoras e revolucionárias às quais podem ser satisfatoriamente comparadas e assimiladas entre si. Em seu caráter revolucionário, Campanella se aproximou de uma figura semelhante como a de Giordano Bruno e talvez o tenha ultrapassado.

Neste caso, como em outros, uma utopia não está restrita a ideias políticas, senão a uma gama de ideários sociais, religiosos e esotéricos. E neste sentido não devemos confundir uma narrativa utópica com uma narrativa mítica, tendo em vista que o mito mesmo possuindo realidade dentro de um contexto específico (grupo social, religião, etc.) não se adéqua totalmente à utopia por seu sentido de não realização atualizável ou uma crítica a uma realidade existente.

Listo entre uma gama de narrativas utópicas antigas, medievais e renascentistas obras que possuem as características relatadas acima. Como as obras platônicas da República, na qual apresenta uma construção de uma cidade e sua organização que já se apresentando sem referentes concretos ou também no Crítias (Κριτίας) que narra o desaparecimento da cidade de Atlântida (Ἀτλαντικός) .

Na mesma medida que a Cidade de Deus de Agostinho de Hipona, onde descreve um duplo mundo, dos homens e dos Céus, baseado na história de Caim e Abel no Gênesis, ou em A Cidade das Damas (1405), de Cristina de Pisano, que pode ser classificada como uma “utopia feminina” onde é narrada a construção de uma cidade por três damas alegóricas para se proteger das injustiças e hostilidades masculinas. O mesmo gênero ainda surge no início da modernidade em A Nova Atlântida (1627) de Francis Bacon, que apresenta a organização de um estado ideal, além de aspirações reformadoras.

No Renascimento italiano este gênero literário produziu importantes explorações utópicas como no Mondo Savio e Pazzo (1552) de Francesco Doni (1513-1574); La Repubblica Immaginaria (1580) de Ludovico Agostini (1536-1609); La Città Felice (1553) de Francesco Patrizi (1529-1597); e Il Belluzzi (1621) de Ludovico Zuccolo (1568-1630), entre outros. Como também em escritores políticos como em Del Governo el Amministrazione di Diversi Regni et Repubbliche (1578) de Jacopo Sansovino (1486-1570); e Delle Repubbliche e delle Spetie di Esse (1630) de Bartolommeo Cavalcanti (1503-1562).

Todas estas obras utópicas demonstravam de uma maneira geral um interesse por temas ligados a uma vida melhor, a ética religiosa e a modelos paradigmáticos de sociedade, paradigmas estes que abrangiam a necessidade de justiça, segurança, acesso a cidadania, a padronização e organização das atividades laborais e de divisão social do trabalho. Tratavam também de maneira geral acerca de modelos arquitetônicos que demonstravam já um pensamento que refletia o progresso urbanístico das cidades, além de propor novos modelos educacionais.

Estas propostas de cidades e sociedades idealizadas ou imaginadas evidenciam hábitos de pensamento que redundam neste tipo de literatura apresentando posturas que podem ser definidas como ucronia e escapismo. Neste sentido, buscavam fugir de uma realidade desagradável ou de um tempo histórico ameaçador por meio de desvios e propostas transgressoras, utopias, narrativas fantásticas, temporalidades imaginárias, memórias fictícias, e assim propondo outras práticas, concepções, ideias, projetos, pedagogias, etc.

Associada às expressões utópicas devemos estabelecer uma relação com algumas formas de milenarismo ou quiliasmo. Estas narrativas têm por objetivo apresentar uma visão de renovação ou restauração da sociedade ou do mundo como um todo. O exemplo mais famoso é de Gioacchino da Fiore no séc. XII e sua concepção das três idades (Pai, Filho e Espírito Santo) que consiste em uma visão teológica da histórica e de uma reforma radical do mundo. Gioacchino da Fiore e Campanella faziam parte da mesma “tradição heréticoutópica calabresa” que possuía como horizonte histórico a Itália do séc. XVI sobe domínio dos espanhóis, de decadência cultural e econômica, da perca de liberdades políticas, de heresias e Inquisição que os levou a propor modelos outros que fugiam de sua realidade cruel. Jean Delumeau considerou como semelhantes Campanella e Guillaume Postel no desejo da realização do reino de Deus na terra enquanto uma forma de messianismo e utopia platônica, uma espécie de síntese milenarista medieval. Igualmente a Gioacchino da Fiore, Campanella acreditava que a cidade celeste divina iria se instalar sobre a Calábria no milênio de 1600.

Outro termo associado é a pansofia, que consiste em expressões utópicas voltadas para a ciência e a tecnologia associadas a uma visão religiosa de uma república cristã. Neste gênero utópico estes três elementos unificam-se de forma harmoniosa ao discurso religioso cristão. Segundo Howard Segal, as mais importantes pansofias modernas foram Cristianópolis (1619) , a Cidade do Sol (1623) e a Nova Atlântida (1626), podendo ser incluídos na lista Giordano Bruno, John Wilkins, Alsted, Besold, Comênio, Hartlib, Dury e Leibniz.

Em todas estas narrativas, como na de Morus, suas cidades utópicas assemelham-se externamente a uma cidade medieval e suas muralhas, contudo, em sua organização política, social, educacional e científica rompem com qualquer modelo vigente. Entretanto, a atenção para com a tecnologia abre um espaço de destaque apresentando uma vanguarda tecnológica de maquinários de propulsão mecânica, sistemas hídricos e procedimentos médicos que melhoram a vida de seus cidadãos.

Por outro lado, relacionados à ideia de renovação e esoterismo encontra-se o segundo manifesto Rosacruz, o Confessio Fraternitatis (1615), que conclama uma reforma universal. O movimento Rosacruz inicial refletia um aspecto de dissidência e farsa (ludibrium), postura dissimulatória, heterodoxa e críptica comum a personagens como Campanella. O modelo utopista reformador dos rosa-cruzes alemães do grupo íntimo de Johann Valentim Andreae foi possivelmente influenciado pela ideia cristã radical de reforma oculta campanelliana, através de seu editor Tobias Adami que teria visitado Campanella quando este estava preso em 1614, e influenciando diretamente Andreae com a utopia da Cidade do Sol. Em Cristianópolis (1619) Johann Valentin Andreae apresenta seu projeto ideal religioso e social que envolve as aspirações da Reforma Protestante que possuem estreita relação com os manifestos rosa-cruzes.

Devemos considerar que não podemos confundir utopia, messianismo e milenarismo, entretanto, todos guardam em si uma mensagem de não conformismo a situações sociais, econômicas e políticas. No Renascimento estas situações promoveram uma tendência para a apresentação de reordenamentos sociais e políticos mais ou menos estruturados. O que diferencia a utopia das outras estruturas apresentadas anteriormente é a referência a um lugar inexistente (u-topos), exótico ou imaginário, onde as estruturas sociais, políticas e religiosas apresentam-se segundo outra visão, sempre com colorações revolucionárias ou contestadoras.

Devemos então direcionar nosso olhar para as relações que envolvem utopia, astrologia e esoterismo em contexto cristão. A situação da astrologia renascentista estava em termos gerais entre sua aceitabilidade e sua rejeição, onde era entendido enquanto uma ciência e um dos componentes da filosofia natural e sua aceitação por parte dos representantes da filosofia oculta e sua rejeição por parte da Igreja onde era associada à superstição e ao determinismo astral. A censura católica a astrologia foi expressa nas cartas Caeli et Terrae (1586) do Papa Sisto V e Inscrutabilis (1631) do Papa Urbano VIII.

Entre meados do séc. XV e metade do séc. XVII a astrologia passou por um período de redescobrimento e florescimento em seu contexto cristão. Cristãos como Ficino, buscaram defender a astrologia em uma perspectiva não determinista, a qual mantinha pressupostos como o livre arbítrio e causas astrais corpóreas e incorpóreas, enquanto outros defendiam uma astrologia menos espiritual e mais técnica e material, como no caso de Pico Della Mirandola. Entre os séculos XIII e XV a astrologia estava presente nas universidades e nas cortes, fato este que não garante sua aprovação unanime na cultura e sociedade em geral, aonde sua rejeição mais veemente vinha nos séculos posteriores no contexto da Reforma Protestante.

Os principais usos e práticas da astrologia renascentista são a revolução, relacionada à astrologia mundana e eventos históricos e políticos associados à interpretação de fenômenos naturais e meteorológicos; a natividade, ligada à interpretação dos horóscopos pessoais e utilizada para finalidades médicas e iatromatemáticas baseadas em predisposições individuais; as interrogações onde diante de variados assuntos um horóscopo era produzido visando responder a questão lançada, enquanto a eleição consistia em determinar qual o momento propício para iniciar uma atividade específica.

Estas práticas levam em consideração duas concepções fundamentais. A primeira é a de que o movimento e a localização dos fenômenos celestes impactam no mundo terrestre; enquanto a segunda afirma a possibilidade de previsão envolvendo estes fenômenos e as ações humanas. Estas concepções seguem tendências platônicas e aristotélicas.

O problema de definição da astrologia no contexto renascentista pode ser reduzido a duas concepções. A astrologia judiciária que compreende seu uso preditivo e a astrologia esotérica que consiste em um recurso hermenêutico e interpretativo de seus símbolos e signos e associado a uma gnose. Sua concepção esotérica é que nos interessa, pois lhe conduz para o campo das ciências mânticas e divinatórias. A associação da astrologia com as tipologias superstição, ciências ocultas ou pseudociência revelam a construção de uma identidade social que reflete uma visão-de-mundo que no caso das ciências ocultas unifica em uma só rubrica astrologia, magia, alquimia e os poderes ocultos administrados por elas, contudo, sem levar em consideração que estas ciências são historicamente distintas, ou como no uso do termo ciências como forma de legitimação.

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Campanella: antiaristotélico, herético e dissidente

Tommaso Campanella nasceu em 1568 em Stilo, na Calábria, que na época estava sobe o domínio espanhol. Muito jovem ingressa na ordem dos Dominicanos tendo em vista o desenvolvimento de seus estudos. Neste período Campanella instrui-se com os ensinamentos aristotélicos o que lhe gerou grande insatisfação. Passou então a se concentrar em uma investigação particular de escrutínio da natureza enquanto um grande livro. Esta referência a Natureza como livro é bastante recorrente no pensamento da época marcando uma influência da filosofia hermética. Neste contexto a magia natural se apresentava enquanto uma virada epistemológica em relação ao paradigma teológico e metafísico anterior.

Em seus estudos particulares ele encontrou uma grande coerência e inspiração nas obras de Bernardino Telésio (1509-1588) o qual sustentava seu pensamento em um exame direto da natureza. Esta observação da natureza se tornou um elemento decisivo em suas formulações políticas e religiosas onde em A Cidade do Sol envolveu sua crítica à sociedade de seu tempo. Campanella desenvolveu seu pensamento tanto a partir de Telesio, quanto das tradições platônicas, neoplatônicas e herméticas—iniciadas por Ficino no séc. XV—com ênfase em contundentes críticas ao pensamento aristotélico, como também nas obras médicas de Galeno, Hipócrates e alguns estoicos. Quando esteve em Pádua conheceu Galileu, o qual também desenvolveu um pensamento antiaristotélico.

Seu pensamento antiaristotélico e “pró-telesiano” lhe levou a ser preso em 1592 em Nápoles, onde foi acusado de possuir relações com o diabo para obter conhecimento, entretanto, foi absolvido. Esteve diante do Santo Ofício em Roma e novamente em Pádua em 1594 onde foi preso, e posteriormente transferido a Roma após uma tentativa de fuga frustrada, onde ficou na mesma prisão que esteve Giordano Bruno. Problemas semelhantes ao de Campanella envolvendo a Igreja e o embate entre ortodoxia, dogmatismo e intolerância levaram muitos intelectuais da época a correrem uma série de riscos e enfrentar a Inquisição, queimas de livros, sensos constantes e todo tipo de controle de pensamento e o medo de ser denunciado, preso e torturado. Outras obras do mesmo período como Monarchia Messiae, Juribus Regis Catholici in Novum Orbem, De Regime Ecclesiae e De Monarchia Christianorum compartilham com a Cidade do Sol ideias monarquistas para um novo império papal e sua ordem universal. Período e obras que apresentam suas oscilações entre o embate político, a vida contemplativa e a iluminação mística, enquanto enfrentava seu processo diante da Inquisição e suas vacilações e simulações.

Em 1598 retorna a sua cidade natal onde se envolve com interpretações astrológicas sobre eventos naturais e textos proféticos sobre uma pretensa renovação na Igreja. Isto lhe causou o início de uma dramática relação com a política local e com a os poderes eclesiásticos. Neste período Campanella presenciou uma conturbada situação política e social na Calábria que lhe sugeriu que o final do século seria um tempo de mudanças, criando-se então um milenarismo em torno em seu entorno.

Uma insurreição foi organizada contra o domínio espanhol com a tentativa de fundar uma república com Campanella ocupando a figura de legislador e messias. A Cidade do Sol possivelmente representaria este sonho messiânico de seu autor, pois o próprio Campanella acreditava que deveria liderar uma reforma de cunho mágica e religiosa, e que era fundamentada em uma profunda relação de proximidade que ele cultivava com a natureza.

Um ano depois a tentativa de restauração fracassa, Campanella e outros conspiradores são presos com resistência e levados à Nápoles. Lá passou por diversos julgamentos até ser acusado de insurreição e heresia. As várias acusações civis e eclesiásticas somaram-se contra ele, tendo que simular insanidade para evitar a pena de morte, insanidade esta que foi corroborada pelos expedientes de tortura. Foi neste período crítico de sua vida que Campanella escreveu sua famosa Città del Sole por volta de 1602 quando esteve mais de vinte anos preso, tendo sido condenado em 1603 à prisão perpétua. Relata-se que Campanella depositou sua confiança em um evento astrológico, a conjunção entre Júpiter e Saturno em Sagitário e acreditou que grandes mudanças viriam e empenhou-se em práticas mágicas para conseguir escapar da prisão. Em 1604 um plano de fuga foi descoberto e ele é transferido para o Castel Sant’Elmo também em Nápoles.

Neste mesmo período Campanella escreve outra obra importante, a Senso Delle Cose e Della Magia. Nesta obra é apresentada uma visão do mundo enquanto um organismo, o qual é completamente animado onde cada parte possui vida e sensibilidade. É nesta obra que Campanella utiliza o conceito de spiritus e apresenta sua magia natural e pneumática.

Em 1626 Campanella é transferido para Roma e permanece preso pelo Santo Ofício. No mesmo ano prevê que a saúde do Papa Urbano VIII se manterá equilibrada por mais tempo do que os rumores da época previam. Por conta disso Urbano VIII se envolveu em um escândalo por aceitar práticas de magia no palácio papal empreendidas por Campanella, um possível ritual mágico praticado por Marsílio Ficino. Entretanto, mesmo Urbano VIII posteriormente ter lançando uma bula papal conta a astrologia, permaneceu simpático para com Campanella e por meio de outro documento defendeu suas práticas como benéficas.

Em 1633 após mais um incidente antiespanhol na Calábria, Campanella é transferido para a França, com aprovação papal e de maneira encoberta. Depois de algumas estadias em Marselha e Lyon, chega até Paris, onde pôde ver seus livros impressos e organizar a publicação de suas obras completas. Morreu em 1639 convicto que os novos tempos afastariam as trevas da ignorância, da mentira e o fim das tiranias. Na França suas ideias foram acolhidas e ele atribuiu à monarquia daquele país a liderança de uma reforma universal, vendo na figura de Luís XIV o Rei Sol o qual apresenta em sua Cidade do Sol, o soberano do mundo reformado.

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A Cidade do Sol: utopia e astrologia

A Cidade do Sol foi redigida em italiano por volta de 1602, porém a primeira edição foi publicada apenas em 1623 na Alemanha e em 1637 em Paris escritas em latim. A versão em italiano só foi publicada em 1904. A obra se  apresenta em forma de diálogo e relato de memórias, onde os interlocutores são o grão-mestre dos hospitalários e um almirante genovês. A este último está a incumbência de apresentar a  narrativa acerca da Cidade do Sol, localizada em Taprobana, atual Sri Lanka.

A utopia de Campanella é considerada por Charles Langford como a mais representativa do gênero por sua originalidade e complexidade. Além da Utopia de Morus,  suas possíveis fontes são as obras platônicas República e o Timeu, a árabe Picatrix, o De Vita Coelitus Comparanda (1489) de Marsílio Ficino e L’ideia del Teatro (1550) de Giulio Camillo. A obra é  completamente tomada por uma temática que mistura profecia, astrologia e magia em uma perspectiva escatológica.

A cidade está localizada no cume de uma colina em meio a uma grande planície. Por se encontrar em uma colina a cidade ocupa desde o cume ao sopé, apresentando sete círculos3 e sete muros designados cada um deles pelos sete planetas. O primeiro círculo contêm descrições geográficas, cerimoniais, hábitos, leis, origens e os “alfabetos”; o segundo possui descrições mineralógicas, metalúrgicas, hidrográficas, farmacológicas e meteorológicas; o terceiro possui conteúdos botânicos, relações astrológicas e correspondências médicas e iatromatemáticas, além de informações sobre animais aquáticos e seus hábitos, habitats, reprodução, vida, criação e relação com as coisas celestes e terrestres; o quarto é reservado aos pássaros e todas as suas particularidades, além de “admiráveis animais, répteis, serpentes, dragões, vermes, insetos”, etc., e a “verdadeira Fênix”; no quinto se encontram todos os animais terrestres; no sexto representam todas as artes mecânicas, instrumentos e seus usos, valores e criadores, todos os grandes sábios e homens de ciência e personagens históricos; o círculo superior é reservado ao templo.

3 A mesma estrutura arquitetônica acerca da organização da Cidade do Sol de Campanella é semelhante à cidade utópica Cristinópolis de Johann Valentim Andreae. Já uma semelhança com a Jerusalém celeste do Apocalipse é sugerida por Allen G. Debus.

Não se faz referência se qual sistema era utilizado pelos solarianos. A astronomia solariana considerava o tempo mediante o “ano tropical” onde o sol se aproxima da terra periodicamente enquanto faz círculos cada vez menores e chegando mais depressa a cada ano até os trópicos. Além disso, calculariam os meses pela lua enquanto os anos pelo sol. Consideravam louváveis os astrônomos Ptolomeu, Copérnico, Aristarco e Filolau, mesmo que rejeitassem as ideais dos dois primeiros a favor dos dois últimos e admitindo uma grande variedade de ideias astronômicas. Sua física consideraria o sol-pai e a terra-mãe como princípios físicos e os planetas como possuindo forças autônomas e percorrendo círculos amplos e curtos aproximando-se e afastando-se do sol.

Quatro caminhos conectam cada círculo que terminam em quatro portas voltadas para os quatro pontos cardeais. A estrutura da cidade também sugeria uma estratégia de fortificação e garantia de defesa e segurança de maneira bastante eficiente.

Todos os círculos são planos, todos acessados por escadas e como em um só conjunto arquitetônico todos os palácios em todos os planos são unidos de maneira uniforme. No último plano se encontra um templo circular e rodeado por colunas maciças e na parte superior ao templo se encontra outra edificação de menor proporção também sustentada por colunas. O fato do templo está no nível mais alto sugere seu status superioridade no projeto de Campanella, onde a religião natural exerce um princípio organizador e hierárquico da sociedade. No centro da última construção há um altar único no qual há dois planisférios, um representando o céu e o outro a terra, correspondendo respectivamente, ao macrocosmo e o microcosmo, o universo e o mundo humana. Na abóboda principal estão representadas por meio de pinturas as estrelas da primeira a sexta magnitude (de alfa a zeta), rotuladas e com uma breve descrição sobre sua influência sobre a terra.

Esta descrição se assemelha a prescrição de Ficino no De Vita Coelitus Comparanda onde este sugere que se construa uma imagem do universo em um cômodo abobadado. Esta imagem do universo funcionaria como um intermediário entre os poderes celestes e sua captura pela mente humana fazendo corresponder às potências superiores no mundo inferior. Este seria um recurso contemplativo e mnemônico baseado em uma espécie de mundo arquetípico ou sugere um recurso talismânico. O recurso mnemônico assemelha-se à proposta do teatro da memória nos moldes de L’idea del Theatro de Giulio Camillo. Este quesito faz coincidir as disposições arquitetônicas, mágicas, astrológicas e mnemônicas contidas em A Cidade do Sol, no De Vita Coelitus Comparanda e no Picatrix. Em seu De Vita, Ficino desenvolveu argumentos favoráveis ao uso de imagens talismânicas com finalidade terapêutica, fato este que lhe envolveu em um contexto de polêmica antimágica e heresia. O recurso às imagens na Cidade do Sol surge sem sequer mencionar argumentos contrários, o que sugere que Campanella não se deixou ser tomado por ameaças de heresia.

No piso, amplamente ornado, se encontram sete lâmpadas de ouro, cada uma com o nome de cada planeta. Este trecho cravado de astrologia teria sido uma inserção posterior feita por Campanella na edição de 1637. As influências celestes são de real importância para Campanella e como perceberemos o Sol desempenha um fator central. Na parte superior encontram-se ainda acomodações onde ficavam os sacerdotes e sobe a abóboda menor se encontra uma bandeira móvel utilizada para medição dos ventos.

No que concerne à regência da cidade esta se centra na figura de um sacerdote chamado Hoh, o qual é auxiliado por mais três outros sacerdotes: Pon (potestà: potência); Sin (sapienza: sabedoria); e Mor (amore: amor). Segundo Allen G. Debus, estes “sacerdotes herméticos” guiariam seu povo com “sabedoria e eficácia” por seus saberes mágico-astrológicos. O sacerdote Hoh é designado como “Metafísico” ou “Sol” e a ele estão submetidos os poderes temporais e espirituais em uma espécie de “sofocracia” ou regência de sábios semelhante à República de Platão. A escolha de Campanella em colocar um regente sábio enquanto líder maior sugere uma ruptura com o domínio espanhol, deslocando o poder temporal para o poder espiritual enquanto um sacerdote e profeta. Também sugere a defesa da “monarquia universal” que reivindica a manutenção do poder temporal e espiritual do papado, uma espécie de “teocracia papal universal”. Àquele que pretende o cargo de Hoh deve possuir um vasto conhecimento da “história de todos os povos, dos ritos, sacrifícios”, das leis, dos criadores das leis e das artes e os “fenômenos e vicissitudes celestes e terrestres”. Vemos que ele deve ter conhecimento de todos os domínios capazes de produzir benefícios ao seu povo, até mesmo os benefícios celestes.

Os outros três são designados como “Potência”, “Sapiência” e “Amor” que corresponde as “três primazias” que orientam tanto os fundamentos da utopia campanelliana quanto o de seus escritos posteriores. Ao primeiro corresponde a tudo que se relacionam as artes militares. O segundo, as técnicas, ciências e saberes; a este estão ligados uma série de magistrados versados em todas as ciências existentes e a observância e um único livro chamado “Saber”, tratando de tudo que concernem às artes plásticas e aos murais e pinturas existentes. O último tratava sobre a geração e tudo que concerne à nutrição, produção e manutenção da saúde e da vida e que estes seguiriam pressupostos astrológicos.

O ensino era transmitido por meio de pinturas, as quais incluíam uma descrição com definições, proposições, etc., e acerca de todas as ciências, costumes, leis, cerimônias, etc., incluindo o conhecimento sobre outras nações. Este tipo de comunicação rompia com o modelo escolástico/aristotélico verbal estabelecendo um padrão visual, fazendo da imagem um novo meio comunicativo. Cada círculo contemplava em suas paredes uma série de gravuras e pinturas, cada uma sobre um gênero de coisas como já mencionamos. Desta forma, todos possuíam uma instrução mínima e facilitada, fazendo do conhecimento um domínio não monopolizado, enquanto o método de ensino empregado era descrito como “pitagórico”. Os saberes e ciências que são objeto de ensino incluiriam ideias de correspondência e analogia acerca dos diversos níveis de realidade, concepções mágico-astrológicas, “técnicas e história das técnicas”, biografias, etc., tudo em modelos pedagógicos “difusos” que incluíam a brincadeira e o jogo.

Acerca dos eminentes sábios prestigiados pelos solarianos podemos perceber uma expressão de diversidade, estando juntos: Moisés, Osíris, Júpiter, Mercúrio, Pitágoras, Sólon, Maomé, entre outros. Estando destacada, no centro, a imagem do Cristo junto dos doze apóstolos. Abaixo do pórtico estavam as imagens de César, Alexandre, Pirro, Aníbal e outros. Todos estes nomes revelam um forte prestígio pela Antiguidade representada pela curiosidade cultural e pelo conhecimento enciclopédico dos solarianos. A centralidade da imagem do Cristo mostra que os solarianos conhecem o Cristianismo e sua verdade embora não tenha recebido sua revelação, e assim sem uma religião revelada, os solarianos fundam sua fé nas revelações da natureza e dos astros.

O sistema político da Cidade do Sol é um comunismo de compartilhamento público das ciências, dignidades e prazeres, fundamentado na ideia de que ao renunciar a propriedade privada aumenta-se o amor à coisa pública. Cada um recebe o necessário e vela-se para que não existam favores particulares. Todos são instruídos por igual em todas as ciências. Tudo é regulado por “magistrados” nomeados por uma virtude que expressam em suas condutas. E não havendo crimes, as condenações são aplicadas às práticas destituídas de virtude. O projeto político de Campanella reflete o projeto platônico ao mesmo tempo em que rejeita o modelo aristotélico que se opõe ao sentido e moral comuns, favorecendo o sentido de “amor comunitário” e uma ética voltada ao benefício do coletivo, até mesmo os benefícios astrais e religiosos.

Já o projeto mágico de Campanella em A Cidade do Sol apresenta pressupostos e adesões astrológicas e herméticas. A primeira delas é a organização estrutural da cidade, que compreende os sete círculos, onde a influência astrológica é evidente, a qual deveria refletir a mesma organização celeste e receber todas as benéficas influências astrais). Com efeito, a astrologia permeia todo o texto e está inserida em todas as questões essenciais da cidade. Desde aspectos do cotidiano como as vestimentas que devem ser usadas em cada estação do ano e que devem ser trocadas a cada equinócio e solstício6, acerca da gravidez e geração onde se consultam o médico e o astrólogo, fato que sugere uma nítida relação entre ciência e astrologia.

6 Quando o Sol entra em Áries, Câncer, Libra e Capricórnio, os quais celebram com grandes festividades.

A concepção dos humanos e dos animais consistia em um tipo de rito religioso público conduzido a partir de condições astrais e que sugere uma forma de eugenia, escolhendo os bons dons celestes dos planetas e constelações e afastando-se dos influxos maléficos de Saturno e Marte. A seleção astrológica na geração buscava conceber indivíduos com qualidades físicas e morais elevadas por meio da eleição do momento celeste mais apropriado. Assim uma sociedade harmônica seria formada com os melhores indivíduos de acordo com suas compleições e influências dos astros benéficos. A eleição astrológica era empregada nos mais importantes eventos da vida cotidiana, a qual foi usada desde a construção da própria cidade segundo a mais favorável disposição do céu. Contudo, o determinismo consistia em um grande problema para aqueles que buscavam afirmar ideias astrológicas, por sua problemática conciliação com a ideia de livre-arbítrio.

A culminância do saber astrológico dos solarianos estava representada na figura do seu governador que era associado ao sol, e que nos manuscritos era representado graficamente por seu símbolo astrológico. Para ser escolhido como regente supremo (Hoh) o postulante deveria ter conhecimento de toda ordem, da história, dos povos, dos ritos, do direito, das artes, das línguas, e sobremaneira, conhecer as ciências físicas e astrológicas, metafísicas e teológicas. Estes conhecimentos eram necessários, por duas razões, a primeira é eminentemente política, enquanto a segunda é astrológica.

Para a primeira, se faz necessário essa gama de saberes, pois para bem reger e legislar é preciso conhecer os diferentes temperamentos humanos e assim bem definir as leis de acordo com a índole e os costumes dos povos. Neste quesito o conhecimento sobre as condições astrais e sua influência sobre os temperamentos humanos é essencial. Para a segunda, estes saberes são necessários, pois se fazem úteis os conhecimentos acerca do destino, da harmonia do mundo, sobre Deus, as ordens ontológicas e as analogias e correspondências entre a ordem celeste e seu espelho terrestre.

Da mesma maneira, os seus assistentes também devem possui um profundo saber das mesmas ciências. Segundo Frances Yates, tanto o governante quanto seus auxiliares, deveriam ser magos, em todos os sentidos do termo, pois deles dependem atrair todos os benéficos poderes das estrelas em prol de seus cidadãos. Neste ponto se faz importante a influência da teoria mágica de Marsílio Ficino na obra de Campanella. Ficino no De Vita Coelitus Comparanda desenvolve extensamente acerca de como obter os benefícios celestes por meio de dietas, costumes, hábitos, etc., além do uso de talismãs e recursos imagéticos e demoníacos.

Todas estas fortes evidências de um saber esotérico circunscrevendo a utopia de Campanella corroboram com a hipótese de Frances A. Yates de que a fonte de suas concepções seja em parte Thomas Morus no que corresponde à criação de uma cidade imaginária descoberta em um novo mundo, e por outro lado fundamentada em ideias mágicas e herméticas que reflete tanto o saber quanto o imaginário hermético, mágico e astrológico do Renascimento originadas no Picatrix e com referências ao Poimandres e o Asclepius de Hermes Trismegistos.

O Picatrix é um tratado mágico e astrológico, que foi bastante conhecido no Renascimento e que era atribuída a Hermes Trismegistos. Entretanto, sabemos hoje é um livro originalmente escrito em árabe por volta do séc. XII. Sua autoria é incerta, entretanto, alguns atribuem a Ghayat Al-Hakim, porém permanece como pseudoepígrafo. Tem sua origem entre os árabes de Harran e influências gnósticas e herméticas. Nele há inúmeras imagens de uso talismânico, além de preceitos religiosos e filosóficos. Este tratado foi a maior influência entre os magos do Renascimento, inclusive Marsílio Ficino. Nunca houve uma versão latina impressa dele, sendo assim, em forma de manuscrito circulou bastante entre os sécs. XV e XVI. Causou bastante admiração por uns – como os árabes e mulçumanos—e escândalos por outros— como alguns cristãos pouco simpáticos à magia ritual e demoníaca.

Alguns historiadores apontam uma possível relação entre a Cidade do Sol descrita por Campanella e a cidade de Adocentyn (civitas adocentyn) descrita na Picatrix, cuja descrição se encontra no livro quatro, capítulo três. Nesta passagem é descrita a construção de uma cidade por Hermes Trismegistos.

Descreve-se um castelo possuindo quatro portais semelhantes aos quatro caminhos terminados em quatro portas da Cidade do Sol. É descrito que Hermes Trismegistos construiu e colocou a imagem de quatro animais (águia, touro, leão, cão) em cada um dos portais e que é dito que não se entrava nos castelos sem a permissão deles. Também é descrito a existência de um farol que possuía sete cores, uma para cada dia, correspondendo às sete lâmpadas dos sete planetas descritos por Campanella na Cidade do Sol.

O número sete chama atenção pela Cidade do Sol possuir sete círculos e sete lâmpadas de ouro, onde na cidade de Adocentyn coincidem em si pela referência astrológica aos sete planetas e astronômica se acrescentarmos as referências às quatro portas e aos quatro pontos cardeais coincidente com a descrição do teatro da memória de Camillo e os sete graus do teatro associado aos sete planetas. O número sete pode estar relacionado à narrativa acerca da origem do cosmos no Poimandres de Hermes Trismegistos na referência aos sete regentes que pode ter sido associado aos sete planetas.

Em Adocentyn as imagens foram colocadas para que com suas virtudes tornassem os seus habitantes virtuosos e distantes de todos os males, assim um uso talismânico. Estas imagens descritas no Picatrix sugerem na Cidade do Sol às imagens celestiais que ofereciam a mesma salvaguarda. Adocentyn ainda possui em seu centro a árvore do fruto da geração que podemos associar aos procedimentos astrológicos envolvendo a geração humana na Cidade do Sol, onde apenas indivíduos bons, sábios, virtuosos e saudáveis são gerados.

Outra passagem importante no Picatrix descreve a fabricação de quatro figuras de animais animadas por meio de espíritos assemelha-se a famosa passagem do Asclépio.

Isto revela a imagem de Hermes enquanto mago ou teurgo, que era característica da época, por seu poder de manipular a magia astral e seu poder legislador , onde suas leis são respeitadas pela eficácia de seu poder mágico. Outra referência do Picatrix afirma que Hermes Trismegistos construiu um templo ao Sol. O Sol é encontrado tanto nos escritos herméticos quanto nos platônicos como referência ao Bem. O Sol é o grande legislador e fonte de toda luz inteligível. Deste modo, a Cidade do Sol recebe este nome, pois está regido sob a égide do sol, o soberano Bem.

Por fim, sugerimos que a referência à Cidade do Sol imaginada por Campanella pode ser comparada com a descrição que consta em Isaias (capítulo 18, 18), que trata da vitória de Deus sobre o Egito e que lá existirá uma cidade chamada de Cidade do Sol. Esta pode ter sido a maneira pela qual Campanella desenvolveu sua ideia profética de uma reforma universal cristã e egípcia, fundindo os relatos bíblicos e herméticos. O texto bíblico avaliado em conjunto com as ideias mágico-herméticas renascentistas, nos possibilita conjecturar este projeto de uma reforma mágico-político-religiosa na imagem do rei, mago, legislador e sacerdote do Sol apresentada por Campanella. Esta reforma mágica não retoma a sacralidade de Jerusalém, senão a sacralidade do Egito como origem do conhecimento sagrado do ocidente, expressão que suscita as narrativas sobre a prisca theologia renascentista no início do séc. XVII.

Há ainda outras referências da Antiguidade pouco explorada por sua relação com a Cidade do Sol de Campanella. Trata-se da Ilha do Sol, obra perdida de Jambulos, porém preservada de maneira fragmentada no livro Bibliotheca Historica de Diodoro Sículo. As semelhanças entre Jambulos e Campanella foram estabelecidas por C. P. Baloglou. Entre outras coincidências, as duas obras possuem títulos e referências geográficas semelhantes.

Desta forma podemos observar que Campanella possui duas fontes essenciais para desenvolver sua cidade utópica. De um lado a cidade mágica de Adocentyn do Picatrix, e por outro a religião mágica centrada no Asclepius. Essa “religião natural” ainda guarda aproximações com o Cristianismo, porém o Cristo é visto como um mago. Esta religião natural pode ser observada na função do sacerdote enquanto um mediador entre Deus e a humanidade, pois operacionaliza o mundo por meio de ferramentas matemáticas e mecânicas.

Com efeito, Campanella buscava empreender uma reforma política e mágica do Cristianismo como uma interpretação cristã da magia. Mágica por suas concepções animistas da natureza, dos poderes celestes e seus recursos iatromatemáticos ordenadores da vida cotidiana. O lado religioso o faz constituir um tipo de Hermetismo religioso que coordena sua religião natural e seus pressupostos mágicos com a crença em Cristo enquanto uma “inovação espiritual”.

Sendo assim, Campanella jamais teria rompido com o Cristianismo e sua ideia de uma religião natural sincrética incluiria sua fé natural e a fé católica, que Giovanni Gentile chamou de a “fé natural do sábio” que possuiria a ideia do Uno como paradigma filosófico onde tudo pode ser reduzido a unidade, pois tudo parte dele e para ele retorna.

Neste sentido, Campanella incorporou preceitos católicos em sua cidade utópica, como a confissão, porém sem castigo físico, senão apenas a aplicação da castidade, preces e sacrifícios acompanhados de admoestações como forma de purificação. Outros elementos cristãos são os Salmos cantados pelos sacerdotes no Templo, a presença de um homem do povo orando diante do altar do Templo, a crença na imortalidade da alma e de um Deus que é Amor, Potência e Sapiência, porém que é Uno.

Conclusões

Tommaso Campanella teve toda a sua vida envolvida em contextos de heterodoxia, dissidência, dissimulação, escritos cifrados e esotéricos, magia e o sonho de uma vida sem perseguições, prisões e torturas. Seu senso religioso e político lhe conduziu a ideias revolucionárias e reformadoras que questionaram sentidos, modelos e paradigmas políticos e religiosos para a vida dos povos submetidos a estes de uma maneira intolerante.

Encarando a realidade dura e de difícil modificação, o utopista Campanella, escapista por excelência, projetou em sua imaginação um lugar melhor, feliz e perfeito chamando-o de Cidade do Sol. Seu u-topos ou não-lugar solariano é tão saturado de realidade quanto a República platônica, a ilha Utopia, a árabe Adocentyn, a Ilha do Sol ou talvez a egípcia Cidade do Sol de Isaias e a Jerusalém celeste apocalíptica. A Cidade do Sol de Campanella é saturada de sentido religioso, político e esotérico, sentidos estes reais, conhecidos e expressos materialmente mesmo que enquanto fantasia política ou ficção filosófico-religiosa.

Em termos conceituais a teoria campanelliana da magia se encontra em suas obras Senso Delle Cose e Della Magia e Astrologia. Neste conjunto a magia assume um sentido técnico e mecânico que se confunde com a ciência, pois até que uma dada técnica passe a ser reconhecida como ciência ela se encontra no âmbito da magia. Em A Cidade do Sol suas definições mágicas surgem não conceitualmente, senão enquanto um projeto que mantém a situação de conjunção entre magia e ciência colocando o saber astrológico e iatromatemático em lugar de evidência. A relação entre magia e ciência nos permite associar as adesões platônicas e árabes que habitavam as mentes medievais e renascentistas, corroborando em nossa análise à assimilação entre fontes platônicas e o Picatrix em A Cidade do Sol. A República e as Leis serviram de base para o pensamento político utópico renascentista, enquanto as obras de Albumasar e o Picatrix eram amplamente aceitas entre os magos cristãos.

Em A Cidade do Sol encontramos um projeto político que se insere na história do pensamento político renascentista de defesa da monarquia. E, além disso, encontramos também um vigoroso projeto religioso e mágico que auxilia e completa o projeto político. Os componentes mágicos, astrológicos e iatromatemáticos são componentes essenciais da reforma campanelliana marcando um dos aspectos ordenadores do bem comum e do cuidado para com os concidadãos.

As fontes da utopia política campanelliana consistem basicamente em Thomas Morus, Platão e talvez em Jambulos no que concerne a organização de seu esquema político comunista baseado na comunidade de bens e na comunidade das mulheres e filhos. O projeto campanelliano de abolição da propriedade privada talvez tenha sido o maior fator de escândalo. Já a esfera de sua política mágica e astrológica pode ter Giordano Bruno como influência, embora Campanella tenha ido muito mais longe. Neste sentido, o modelo de cidade utópica e esotérica é o Picatrix e a cidade de Adocentyn, enquanto o Asclepius, o De Vita de Ficino e possivelmente o Poimandres são suas fontes conceituais não mencionadas.

A evidência central de sua reforma filosófico-religiosa é a figura do regente/sacerdote que transfere seus poderes para a esfera fantástica da magia e sua representação do Sol, o filho do Bem, sendo sua representação sensível e a fonte, gênese, crescimento e nutrição do mundo. Esta representação alegórica do sol designa o caminho de ascensão do intelecto e a ascese do conhecimento. Contudo, devemos evitar a redução de Campanella enquadrando-o em uma imagem definida do mago ou astrólogo, levando em consideração apenas seus esforços teóricos envolvendo referências à filosofia oculta da época, senão buscar entender em seu campo de batalha política e revolucionária quais aspectos de uma política mágico-celeste lhe é pertinente em tal projeto.

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