O Sol e a Lua (I)

Natália Maria Lopes Nunes

IELT/UNL-FCSH

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Desde longa data que os Sumérios, Babilônios e Assírios observavam o Universo, registrando essas observações em tabuinhas de argila, dando, assim, uma grande importância à Astronomia. Como afirma Alessandro Greco:

A diversidade desses registros históricos é brutal, de longe a mais completa do mundo antigo. Somente um museu em Londres, Inglaterra, tem mais de 500 mil tabuinhas ou fragmentos delas falando da cultura da época. Duas ou 3 mil são relacionadas apenas à astronomia, um material e tanto para qualquer estudioso moderno.1

1 Alessandro Greco, “Nascimento da Astronomia”, in Scientific/American Brasil, edição especial, nº 14, p. 11.

Além disso, grande parte dessa investigação astronômica era feita pelos sacerdotes astronômicos que conseguiam, através das suas medições, calcular a data do equinócio da Primavera. A própria mitologia dos povos da Mesopotâmia estava, em parte, relacionada também com a Astronomia. Foram eles os criadores do Zodíaco.

Posteriormente, também os gregos desenvolveram bastante a Astronomia e, tal como os povos da Mesopotâmia, relataram lendas de heróis mitológicos. Houve uma evolução da Astronomia dos Assírios e Babilônios, herança recebida pelos Gregos e transmitida aos Romanos e Árabes, expandindo-se a toda a Europa. O Atlas Farnese é a representação grega mais antiga das constelações (século II): «a estátua de mármore representa o Titã Atlas segurando um globo celeste em seu ombro, com as figuras em relevo na sua superfície representando as constelações em grande detalhe».2

2 Bradley E. Schaefer, “A Origem das Constelações Gregas”, in Scientific/American Brasil, edição especial, nº 14, p. 19.

Para os Maias, a Astronomia tinha um papel fundamental, sendo eles detentores de um grande saber: «a astronomia foi o conhecimento mais sofisticado dos maias. Eles mapearam a passagem de vários objetos celestes com precisão superior à de qualquer outra civilização antiga».3

3 Bruno Maçaes, “Astronomia Maia, in Scientific/American Brasil, edição especial, nº 14, p. 24.

Por outro lado, a Astronomia tinha uma forte influência sobre a mitologia e a religião. Muitos dos seus ritos eram regidos pela Astronomia e alguns planetas eram considerados divindades:

Os movimentos do Sol, da Lua e de Vênus eram considerados movimentos dos deuses personificados que tinham de ser apaziguados.

Assim, a astronomia não era uma disciplina separada, como a conhecemos hoje. Esteve inserida num complexo sistema de crenças e rituais religiosos que incluíam sacrifícios humanos, e tinha importância preponderante na vida cotidiana, pois a data de sacrifícios, guerras e rituais religiosos diversos, incluindo o jogo da bola praticada em toda a região – no qual os perdedores morriam – dependia das interpretações dos xamãs sobre o movimento dos astros.

É ainda de destacar o culto do Sol na América do Sul, na cultura inca, sendo Cuzco o local de eleição do templo do Sol. Segundo relatos da tradição oral:

Pretende a lenda que esse lugar central, ao princípio, teria sido ocupado por um sol de ouro, por ordem de Manco Capac e em conformidade com a religião primitiva, ensinada por esse fundador. Teria, porém, o astro sido substituído pelo ovo originário, no tempo de Maita Capac, em seguida a uma revolução religiosa, aliás muito duvidosa, após o que Huascar teria regressado à tradição antiga, substituindo o ovo pelo Sol, que os Espanhóis puderam observar em Cusco.4

4 Louis Baudin, A Vida Quotidiana no Tempo dos Incas, p. 159.

Esse templo em honra do deus Sol era local aprazível e de grande riqueza: o seu jardim com todas as árvores, flores, animais, entre outros, era de ouro como forma de homenagem ao Sol. Além disso, anualmente, era celebrada a Festa do Sol, durante o Solstício de Inverno. Durante nove dias era celebrado o astro-rei com diversos rituais, de entre eles, cerimônias religiosas, danças, cânticos, sacrifícios de animais, beberagem de bebidas sagradas, e, ao fim, após os nove dias, «regressavam as altas personagens às respectivas províncias, proclamando a glória do Inca, filho do Sol».

Os diversos objetos em ouro eram o símbolo da filiação solar divina dos Incas. De entre esses objetos, é de salientar os vasos usados nas libações em honra do Sol. Já no século XX, por volta de 1944, dá-se uma reinvenção do culto do Sol, nos locais arqueológicos, cuja festa se chama Inti Raymi. Como realça a antropóloga Antoinette Molinié: «ces nouvelles cérémonies sont réputées plus efficaces quand elles sont célébrées sur place car elles peuvent ainsi bénéficier de l’environnement et dês vibrations des ruines préhispaniques».5

5 Antoinette Molinié, «La Revanche des Vaincus», in Geo Histoire, Janvier-Février-Mars 2008, p. 111.

Muitos outros povos tiveram (e ainda têm) uma relação importante com a Astronomia, sendo ela a base dos seus calendários agrícolas, dos seus mitos e ritos, como por exemplo, os aborígenes da Austrália, os índios brasileiros (tupis-guaranis, boorongs e caiapós) e os índios americanos navajos. Para estes últimos, o Sol e a Lua eram símbolos importantes da sua cultura:

São elementos proeminentes em muitas pinturas de areia, particularmente em uma chamada Pai Céu e Mãe Terra. Plantas importantes são representadas na Mãe Terra, enquanto o Sol, a Lua e as estrelas adornam o Pai Céu. A mais escura das duas grandes figuras com chifres é o Sol, e a branca é a Lua.6

6 Von Del Chamberlain, “Chão de Estrelas”, in Scientific American Brasil, ed. especial, nº 14, p. 94.

Pelos exemplos citados, é de acrescentar ainda o grande complexo arqueológico de Stonehenge (Idade do Bronze) e a sua possível ligação à Astronomia, sobretudo aos Solstícios de Verão e de Inverno. Em Portugal, o Cromeleque dos Almendres, monólitos datados sensivelmente entre o 5º e o 3º milênio a. C., para alguns investigadores, pela sua disposição, para além do seu caráter mágico-religioso, o complexo terá tido igualmente uma ligação à Astronomia. Deste modo, verifica-se que, desde longa data, o Sol e a Lua exerceram um enorme fascínio sobre os homens. Em muitas civilizações, como por exemplo, na Caldeia, Egito, Fenícia, Pérsia, Índia, Grécia o Sol e a Lua acabaram por ser considerados uma representação da divindade, de entre elas, Baal, Apolo, Ísis e Astarté.

No que respeita a Osíris, o seu caráter solar adveio-lhe do deus Ra, de cujas lágrimas nasceram os homens (segundo os mitos egípcios sobre a origem do homem) e, segundo a mitologia egípcia, Osíris (irmão de Seth e irmão/esposo da deusa Ísis). Ele foi assassinado pelo irmão Seth, mas graças aos poderes mágicos de Ísis, conseguiu ressuscitar, passando a simbolizar a fecundidade e a fertilidade. A sua “ressurreição” é a marca desse poder regenerativo, razão pela qual o Sol passou a ter também uma função ainda mais relevante, de acordo com a divindade que representa. Como afirma Mircea Eliade: «o sol e os sepulcros dos reis constituíram as duas principais fontes de sacralidade».7

7 Mircea Eliade, História das Idéias e Crenças Religiosas, vol. 1, p. 95.

Além disso, o Sol, ao mesmo tempo em que é uma das representações de Osíris, é também o símbolo da vida humana que nasce (nascer do sol) e morre (pôr-do-sol), para voltar a nascer e a morrer de novo e, assim consecutivamente.

O culto de Mitra, vindo da Pérsia, foi muito difundido no Ocidente pelos soldados romanos. Os seus ritos transformaram a religião do deus numa teologia de Mistérios, onde os rituais iniciáticos tinham um cariz extremamente importante. A data da natividade de Mitra (25 de Dezembro) foi retomada pela natividade de Cristo, ambos nascidos numa gruta. Assim, a gruta ou caverna passaram a ser o local de eleição dos rituais em honra de Mitra. Um deles era a taurobolia, ou sacrifício do touro. Nesse rito iniciático, regido pelos signos do Zodíaco, estavam presentes os símbolos do Sol e da Lua: «a imolação do touro realiza-se na caverna, encontrando-se presentes o Sol e a Lua. A estrutura cósmica do sacrifício é indicada pelos doze signos do zodíaco ou pelos sete planetas e pelos símbolos dos ventos e das quatro estações».8

8 Mircea Eliade, História das Idéias e Crenças Religiosas, vol. 2, p. 273.

Mitra, no seu caráter solar, e à semelhança de Cristo, foi denominado de Sol Invictus. É de acrescentar que os Mistérios de Mitra se dividiam em sete etapas relacionadas com os planetas, aspecto que valoriza a importância desses planetas, nomeadamente do Sol e da Lua:

Cada um dos sete graus era protegido por um planeta: corax por Mercúrio, nymphus por Vênus, miles por Marte, leo por Júpiter, Perses pela Lua, heliodromus pelo Sol e Pater por Saturno. As relações astrais encontram-se claramente ilustradas nos mithrea de Santa Prisca e Óstia.

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O culto do Sol Invictus tornou-se universalista, assim como os cultos solares de Apolo-Hélio, Mitra e Baal. O imperador Constantino, antes de se converter ao Cristianismo, foi também um adorador do culto solar. Na Grécia, o culto do Sol existia desde longa data, nomeadamente em Corinto e em diversas póleis do Peloponeso.

O Sol, conhecido por Hélio, teve a sua melhor representação em Rodes, cujo santuário, segundo testemunhos arqueológicos, atestam o «mais famoso e mais importante, sem dúvida, foi o da ilha de Rodes, onde existiam, entre 280-260, o “Colosso de Rodes”, gigantesca estátua de Hélio que se tornou uma das maravilhas do mundo antigo». Wilson Alves Ribeiro Jr..

O hino de Hélio faz parte dos hinos homéricos (século II a.C.) e é composto por 15 versos onde surge a personificação do Sol através da figura de Hélio. Posteriormente, no século V, Hélio é assimilado ao deus Apolo (outrora um deus lunar), tornando-se a divindade da luminosidade e da claridade. Contudo, essa personificação de Hélio, cuja carruagem era puxada por cavalos, e onde, iconograficamente, surge a figura do Sol, deve procurar-se em representações ainda mais antigas. A mais ancestral, remonta à Mesopotâmia e Suméria que, desde muito cedo, assinalaram essa presença do Deus Sol deslocando-se na sua carruagem.

Curiosamente, e ao inverso do que se possa pensar, durante o Período Paleolítico, e mesmo em épocas mais tardias, o Sol era uma representação da deusa. A título de exemplo, cite-se o caso da deusa Artemisa, inicialmente, uma deusa solar. Além disso, durante a época megalítica, algumas câmaras funerárias apresentam a divindade feminina com um aspecto solar. Posteriormente, na Idade do Bronze, o culto solar era muito importante. Saliente-se ainda que nas línguas célticas e germânicas, o Sol é uma entidade feminina. Destaque também para o caráter solar de uma divindade pré-islâmica, al-Uzza, representada por uma pedra negra, a Pedra Negra da Kaaba, em Meca, cujo símbolo foi islamizado.

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Na Fenícia, a deusa bíblica Astarté (consorte de Baal) era uma deusa solar, tal como Tanit, a deusa de Cartago assimilada a Astarté. Ela tinha como símbolo os raios solares. Por outro lado, existem determinados animais solares, de entre eles, o leão que se tornou um dos símbolos de Tanit (como se pode observar no Museu do Bardo, em Tunes, na escultura de Tanit com cabeça de leão). Porém, esse animal faz parte da representação de outras divindades, como Inanna, Ishtar, Cibele. Ainda sobre o caráter feminino do Sol atribuído a algumas divindades fenícias, muitas vezes, o astro tinha uma simbologia feminina, outras, masculina. Como explícita Joseph Azize:

A sun deity who appears to have been female is preserved in the illustration upon a seventh century BCE bronze harness from Salamis on Cyprius (…).

The Phoenician solar deity same was male, but cannot discount the possibility that the sun god could on occasions be treated as female.9

9 Joseph Azize, The Phoenician Solar Theology – an investigation into the Phoenician opinion of the sun found in Julian’s Hymn to King Helios, pgs. 154-155.

Todavia, o disco solar de Tanit/Astarté viria a converter-se num semicírculo, representando o crescente lunar: «le signe de Tanit serait alors un intermédiaire entre le monde terrestre et le monde céleste figure par le croissant et le disque».10

10 Dictionnaire de la Civilisation Phénicienne et Punique, p. 417.

Neste sentido, as deusas solares ao se conotarem também com a Lua, simbolicamente, representam a união dos dois pólos: o celeste e o terrestre. Estas alterações, certamente, tiveram por base mutações e evoluções das próprias sociedades, cujas divindades foram sendo readaptadas aos tempos. É nesta evolução, onde está subjacente a ascensão das divindades femininas, que o deus Apolo adquire as características da deusa Artemisa, tornando-se um deus solar, e ela, uma deusa lunar. A Lua passou, então, a ser o símbolo da Deusa-Mãe, tornando-se igualmente um dos símbolos da mulher. Esta ligação remete para a fecundidade e fertilidade femininas associadas à Lua. Destaque-se ainda o fato de a Lua, através das suas fases, estar também ligada às três faces da deusa: o crescente lunar, à virgem; a lua cheia à dama, mulher madura; o quarto minguante, à mulher anciã, a velha – tríade que se encontra subjacente na tripartição das cantigas galaico-portuguesas: cantigas de amigo (a donzela), cantigas de amor (a dama) e cantigas de escárnio e maldizer (a velha).11

11 Natália Maria Lopes Nunes, “Representações Femininas na Literatura Medieval – A Donzela, a Dama, a Prostituta/Santa e a Virgem”, Dissertação de Doutoramento, na área de Línguas e Literaturas Românicas, especialidade em Literatura Portuguesa Medieval, apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 2008.

No entanto, e pelo seu caráter lunar, essas divindades são ctónicas, articulam-se com rituais ligados à morte, razão pela qual tiveram um papel importante nas Religiões de Mistérios, de entre elas, os Mistérios de Elêusis e os cultos iniciáticos de Osíris, Dioniso e Cibele. Na religião greco-romana, as três fases da Lua remetem para as três faces da deusa, representadas por Artemisa (quarto crescente), Selene (lua cheia) e Hécate (quarto minguante).

Ishtar, Ísis, Astarté, entre outras, passaram a ser cultuadas como deusas da Lua, sendo-lhes atribuído o poder da criação da vida, da fertilidade, sendo, ao mesmo tempo, protetoras das águas, das nascentes e dos rios:

De même qu’Ishtar, les déesses Lune étaient partout considerées comme les protectrices dês eaux, rivières, ruisseaux et les sources qui jaillissaient du sol étaient également consacrées à la déesse de la fertilité, probablement parce qu’elles symbolisaient cette mystérieuse faculté d’«amener au jour ce qui est à l’intérieur», qui est la caractéristique propre de la création féminine. 12

12 Esther Harding, Les Mystères de la Femme, p. 180.

Com a ascensão do Cristianismo, a Igreja procurou erradicar totalmente os cultos pagãos do Sol e da Lua. O Concílio de Lucence, no século V, proíbe-os. Ainda nessa época, S. Martinho de Dume (ou de Braga) esforça-se para combater práticas e rituais pagãos de adoração aos rios, árvores, fontes, nascentes, astros, etc., considerados nefastos e “coisas demoníacas”. Porém, como não foi totalmente possível erradicá-los, eles passaram a ser assimilados pelo Cristianismo, sendo a Virgem Maria a principal herdeira dos atributos das deusas lunares, suas predecessoras. Assim, e a título de exemplo, cite-se o caso de Nossa Senhora da Conceição com o crescente lunar e, por vezes, com a serpente/sardão aos pés.

No que diz respeito à serpente, ela sempre foi um dos animais representativos das deusas da fertilidade. Na religião egípcia, Ísis; na minóica, a Deusa das Serpentes; na síria/fenícia, Astarté são exemplos da associação da deusa com esse animal ctónico, também ele, símbolo da morte e da ressurreição. Por outro lado, a religiosidade popular teve um papel importante na continuidade e na preservação desses cultos ancestrais ligados ao Sol e à Lua, tendo estes astros uma função importante na construção arcaica do conceito ligado ao tempo. Como afirma Aurélio Lopes:

De acordo com uma versão arcaica da mitologia helênica terão sido Selene e Hélio que “geraram as horas”. Tal mito expressa assim, simbolicamente, a paternidade cronológica por parte da Lua e do Sol, que, pelo seu movimento cíclico e rigoroso, funcionam para as sociedades tradicionais como verdadeiros relógios naturais (os únicos, aliás, a que durante milênios tiveram acesso) que, repetindo como que um rito perpétuo, criaram (na verdadeira acepção da palavra) o próprio tempo, também ele só existindo, efetivamente, após percebido e mensurável.13

13 Aurélio Lopes, O Percurso de Selene – A Lua na Tradição Popular, p. 41.

Além disso, a presença do Sol e da Lua, à semelhança do que referimos inicialmente sobre as deusas Tanit e Astarté, está bem visível na Bíblia, no Livro do Apocalipse: «depois, apareceu um grande sinal no Céu: uma mulher revestida de Sol, tendo a Lua debaixo dos seus pés e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça» (Apocalipse 12: 1).

Neste sentido, o culto a Nossa Senhora da Conceição (ou a de qualquer outra denominação da Virgem Maria) e a revitalização dos cultos ancestrais através das celebrações dos solstícios e dos equinócios na aldeia de Chãs, em Foz Côa, são exemplos da continuidade, da prática, ou da representação dos rituais ao Sol e à Lua, outrora deuses (Osíris, Baal, Mitra) e deusas (Inanna, Ishtar, Ísis, Astarté, Cibele) e, na atualidade, representações de Cristo e da Virgem. Todavia, falar de deuses e de deusas, da Virgem e de Cristo, pressupõe igualmente referir alguns animais, plantas e heróis solares. De entre os animais, destacam-se o leão, o veado e a águia; de entre as plantas, o girassol, a flor de lótus e o crisântemo; de entre os diversos heróis, na mitologia greco-latina, Hércules é talvez, aquele que mais se destaca, tendo em conta as suas características sobrenaturais e os doze trabalhos que teve de enfrentar, revelando-se, desse modo, a sua força e coragem. Nas hagiografias cristãs, há a salientar uma figura masculina e outra feminina que revelam o caráter solar e lunar: S. Jorge e a sua luta contra o dragão e Santa Marta e a Tarasca.

Em Portugal, existem diversos vestígios dos cultos do Sol e da Lua. Avieno e Estrabão mencionam a presença desses cultos na Península Ibérica, nomeadamente o culto da Grande Deusa e a ligação a práticas ofiolátricas:

A grande deusa da pré-história, cujo culto anterior às inovações trazidas pela cultura indo-européia se reporta aos grandes ciclos vitais da Terra (sementeiras/colheitas) e aos ciclos lunar e da fecundidade (fases da lua/menstruação), ligavam-se ainda a práticas ofiolátricas (mundo subterrâneo da morte/renascimento); e talvez por isso Avieno designasse por “Cabo Ofiússa” – terra de serpentes – o promontório sacro da Roca.14

14 Heitor Baptista Pato, “A Serra de Sintra (Portugal): Cultos à Lua, ao sol e a Saturno”.

Estrabão menciona também a dança, em noites de lua cheia, e alguns rituais de sacrifício. A região de Sintra (Cascais, Alapraia, Praia das Maçãs e a própria Serra de Sintra), pelos achados arqueológicos, indicia a presença desses cultos. A título de exemplo, citem-se as aras consagradas a Soli et Lunae no Alto da Vigia, em Colares, onde existem vestígios de um templo romano datado dos séculos II-III d.C. Como afirma Cardim Ribeiro:

Estamos claramente perante uma intencional forma de sincretismo entre o culto de cariz astral e o culto imperial, operada num santuário carregado de simbolismo pela sua singular localização geográfica e, porventura, também herdeiro de remotas tradições religiosas regionais, quer ligadas ao ciclo solar, quer à ancestral deusa lunar e salutífera que, de noite, vagueia pelas penedias e pelos densos bosques do monte Sagrado da Serra da Lua.15

15 Cardim Ribeiro, “Soli Aeterno Lunae. O Santuário”, in Religiões da Lusitânia, Loquuntur Saxa, p. 236.

Por outro lado, já no século XVI, André de Resende, na obra Antiquitatibus Lusitaniae (1593), referencia cultos solares e lunares na Serra de Sintra:

Junto ao sopé da serra, mesmo no cimo do promontório, que é cortado abruptamente sobre o oceano, existiu outrora um templo consagrado ao Sol e à Lua, do qual agora apenas existem ruínas nas areias do litoral e cipós, alguns deles com inscrições reveladoras da antiga superstição.16

16 André de Resende, As Antiguidades da Lusitânia (ed. De R. M. Rosado Fernandes), p. 98.

Há ainda a destacar, no Cabo da Roca, a ermida de Nossa Senhora de Peninha, dedicada a S. Saturnino que, segundo alguns investigadores, mais não é do que o vestígio de um antigo culto solar ao deus fenício Baal e antecessor de Saturno. Essa divindade está ligada ao Sol e à luz. Por outro lado, tal como a sua consorte – Astarté/Tanit, – era representado também com um crescente lunar. Neste sentido, é importante não esquecer as influências mediterrânicas a partir da Idade do Bronze Final, sobretudo após o século VIII a. C., através dos navegadores fenícios que, para além das feitorias, construíam templos em honra dos seus deuses.

Destaque-se ainda o fato de a Serra de Sintra ser conhecida como a Serra da Lua, interligando-se com o culto da Magna Mater ou Deusa-Mãe. Citando Paulo Pereira: «a serra de Sintra seria assim um acidente na paisagem que eventualmente simbolizava o ventre materno, a própria terra na sua relação calendárica com a Lua».17

17 Paulo Pereira, Enigmas – Lugares Mágicos de Portugal – Montes Sagrados, Altos Lugares e Santuários vol. 6, p. 130.

Para Heitor Baptista Pato, a explicação destes cultos pode estar presente na toponímia:

Numa das possíveis etimologias para o topônimo Sintra, através do radical indo-europeu Sun, ou Sol (Suntia > Sintra). De acordo com outras etimologias, Sintra seria proveniente de Cynthia, nome dado à deusa Diana (deusa da lua) por ter nascido no monte de Cynthos, em Delos.

Em Portugal, sobre o culto do Sol associado ao deus Mitra foram encontradas algumas inscrições em Lisboa, Vizela, Idanha-a-Velha e Lamego. Sobre esta última, D. Fernando de Almeida apresenta-a como um ex-voto dedicado a Mitra, datando do século III: «o deus Sol, com tantos e tão grandes atributos, teria olhado para aquele seu devoto de Lamego a quem prometia maior felicidade do que tivera até então».18

18 D. Fernando de Almeida, “Inscrição Romana Consagrada ao Deus Sol”, p.265.

Por outro lado, e como refere D. António de Almeida, a importância do culto do Sol deve-se ao seguinte: «a importância do culto prestado ao Sol veio-lhe por ter sido considerado o senhor da natureza, do calor, da luz, da fecundidade, da vida, e por isso a sua entrada na Urbe foi bem aceita pelo povo».

Ainda em Portugal, anualmente, na aldeia de Chãs, em Foz Côa, a Comissão Organizadora das Celebrações nos Templos Pré-Históricos dos Tambores (de onde se destaca um dos seus impulsionadores, Jorge Trabulo Marques) celebra os dias dos equinócios e dos solstícios. O Santuário Rupestre da Pedra da Cabeleira é palco dos festejos em honra da chegada da Primavera. A concavidade da pedra é iluminada pelo nascer do sol. É de salientar toda a envolvência do local, onde se pressente um forte misticismo, tornando-o um espaço mágico-religioso.

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O local foi, inicialmente, estudado por Adriano Vasco Rodrigues (em 1957) que o classificou como um santuário pré-histórico ligado ao culto do crânio e da Deusa-Mãe e remontando à época da revolução neolítica. Como afirma o investigador:

Pelas suas características sugere a existência de um culto ao crânio, característico na Península Ibérica, da transição do Paleolítico para o Neolítico, segundo o Prof. Pericot (…). O início da agricultura está ligado ao culto da Deusa Mãe, privilegiando a germinação das plantas (….). Junto deste santuário localizei uma pequena cavidade em forma de concha, que poderá ter servido para recolha de sangue proveniente de sacrifícios.

Posteriormente, Jorge Trabulo Marques, natural da região, através da investigação e pesquisas efetuadas, demonstrou tratar-se de um calendário solar, tendo o homem pré-histórico aproveitado este monumento, adaptando-o (…). O culto ao Sol é fundamental nas sociedades primitivas e o conhecimento do calendário das estações para poderem fazer as sementeiras. O culto à Deusa Mãe e ao Sol dos primeiros agricultores está relacionado.

O santuário tem sido visitado por diversas pessoas, instituições e investigadores, de entre eles, Moisés Espírito Santo que, recentemente, escreveu um artigo sobre a região, associando os nomes solares à toponímia dos Templos Pré-Históricos dos Tambores e à aldeia de Chãs. Nesse artigo, após uma análise dos topônimos “Chãs” (nome da aldeia), “Tambores” (nome do monte), “Pedra da Cabeleira” (o santuário), “S. Caetano” (padroeiro da aldeia de Chãs), entre outros, o sociólogo das religiões chegou à conclusão de que «o monte dos Tambores, em Foz Côa, foi um santuário lusitano/fenício ao Sol».

Assim, a Pedra da Cabeleira articula-se com o culto de Baal, deus solar tantas vezes referido na Bíblia, e cujo culto se associa à deusa fenícia sua consorte – Astarté. É ainda de destacar a possibilidade de se terem realizado ritos de sacrifício em honra da Deusa-Mãe. Por outro lado, a ligação fenícia demonstra a influência e os contactos dos povos do Mediterrâneo com os povos da Lusitânia. Muitos desses sacrifícios seriam, certamente, provas de gratidão à divindade na manutenção da paz, da saúde e da fertilidade. A Pedra da Cabeleira, na aldeia de Chãs, seria, inicialmente, um local de culto da deusa Trebaruna, a senhora das montanhas, «a verdadeira deusa da fertilidade dos Lusitanos».19

19 O. da Veiga Ferreira; S. da Veiga Ferreira, A Vida dos Lusitanos no Tempo de Viriato, p. 128.

Posteriormente, com o contacto com o Mediterrâneo, e dando-se um sincretismo religioso, Trebaruna daria lugar ao culto de Baal e Astarté (o deus Sol e a deusa Lua). É de referir que, desde épocas ancestrais, os cultos ao Sol tinham uma estreita relação com a cura, «a fisiolatria (ou culto dos fenômenos naturais) era uma das facetas desta religião: divinização da terra, do sol e da lua, das águas, dos vegetais».

A Pedra da Cabeleira articula-se também com os cultos celtas ligados ao Sol. Nos registros de César, Mercúrio, protetor dos viajantes, era um dos mais importantes deuses. Era uma divindade solar, cujo correspondente celta era Lug. Este deus era cultuado em duas épocas do ano, em celebrações importantes do mundo celta. Beltaine (dia 1 de Maio), e Lugsnasad (dia 1 de Agosto). Na primeira celebração, os rituais eram essencialmente de fogo, como forma de representar a divindade no seu aspecto luminoso e dando lugar a grandes fogueiras, época das grandes reuniões dos druidas.

Em Agosto, o culto já remete para a abundância das colheitas a celebrar, posteriormente, na época do Outono.

Os cultos ligados à natureza remetem também para a adoração do Sol e da Lua, celebrando-se os ciclos da Natureza, onde algumas pedras tinham um papel fundamental no calendário agrário, tal como teria também a Pedra da Cabeleira.

Contudo, posteriormente, com o surgimento do Cristianismo, o local é cristianizado, como indica, atualmente, o nome da Pedra na lenda por nós recolhida através de um informante, habitante da aldeia de Chãs: Nossa Senhora, para fugir dos judeus, refugiou-se na concavidade da pedra, razão pela qual ficaram as marcas dos seus cabelos na rocha, dando origem ao nome de Pedra da Cabeleira de Nossa Senhora.

Neste sentido, a pintura rupestre no interior da concavidade da pedra transformou-se nos cabelos de Nossa Senhora e a rocha ao lado, espaço onde colocaram uma imagem da Virgem dentro de uma das concavidades – uma forma bem visível da cristianização de um espaço outrora ligado a outras divindades, sendo, ao mesmo tempo, local de sacrifício.

A alguns metros da Pedra da Cabeleira de Nossa Senhora, e mais próximo de um antigo castro, existe a pedra ligada ao solstício de Verão, cujas celebrações anuais estão também a cargo da Comissão Organizadora das Celebrações nos Templos Pré- Históricos dos Tambores. No dia do solstício, é feito um cortejo com pessoas vestidas com túnicas e a cabeça coroada que, entre a multidão que assiste ao evento, se deslocam da aldeia de Chãs até à pedra do solstício. Em 2008, tivemos oportunidade de assistir ao evento que contou ainda com a participação da Associação Cultural Pagã, convidada para participar no evento, juntamente com um grupo de pauliteiros de Duas Igrejas e Miranda do Douro e do grupo das Gaiteiras (Las Tralailarailas).

O ritual foi realizado à tarde, antes do pôr-do-sol, para que na hora certa todos pudessem observar o Sol em sintonia com o eixo da pedra. Antes dessa ocasião, espetacular, foram evocadas algumas palavras ao som dos pauliteiros e, posteriormente, com a colaboração da Associação Cultural Pagã, foi entoado um hino de evocação à deusa Trebaruna.

O ritual do solstício de Verão é considerado uma manifestação do sagrado, ligando-se também ao culto de S. João. O tempo do solstício de Verão é considerado como uma hierofania ao qual se associaram diversas crenças e rituais populares de origem pagã, nomeadamente, o culto de S. João e dos santos populares em geral. As fogueiras, as plantas, flores, águas, cantos, danças ficaram associadas ao culto de S. João. Este santo tornou cristãos os cultos pagãos e mágico-religiosos do solstício de Verão. Citando Aurélio Lopes: «e neste contexto simbólico São João irá ser identificado com a hierofania pagã da manifestação solar. É por isso que o Santo é visto muitas vezes como representando o astro diurno. É o precursor. É a grande Luz!».

Saliente-se ainda o fato de S. João ser um santo cultuado em diversas culturas, nomeadamente entre os muçulmanos, como refere a quadra popular:

S. João é festejado
Mais na véspera que no dia
Em Espanha, no Algarve
Em Portugal, na Turquia.20

20 Fernando Pires de Lima, “O São João na Alma do Povo”, in Revista Etnografia, vol. 5, tomo II, Outubro, 1963.

Existem diversas quadras populares alusivas ao Sol e que remetem para o culto de S. João, celebrado a 24 de Junho, de entre elas:

Na manhã de S. João
Bailava o sol, bailava
Bailavam cordas de amores
No centro da minha alma.21

21 Aranhas, Ontem e Hoje, p. 73.

Ó divino S. João
Mesmo o Sol vos venera
Quando nasce vem bailando
Deitando raios à terra.22

22 Jaime Lopes Dias, Etnografia da Beira, vol. 6, p. 103.

O solstício de Verão representa o Sol no seu máximo esplendor. Contudo, o astro-rei continua a ser celebrado também no solstício de Inverno (declínio do Sol) através dos rituais do Natal, Ano Novo e Dia de Reis e dos respectivos madeiros de Natal. Porém, o solstício de Inverno está igualmente ligado a cultos pagãos, de entre eles, os nascimentos de Krishna, na Índia; de Mitra, na Pérsia; de Osíris no Egito; e de Melqart, na Fenícia.

Na cultura popular existem também quadras populares, rezas e orações alusivas ao Sol e à Lua. No que diz respeito ao Sol, algumas quadras expressam o seu caráter regenerativo, ele nasce (nascer do sol) e morre (pôr-do-sol) todos os dias, aspectos que remetem para a ciclicidade e renovação da Natureza:

Lá vem o Sol a nascer
Por entre nuvens sombrias
Quem diz que o sol é velho
Se nasce todos os dias.23

23 Quadra citada por Aurélio Lopes, in Tempo de Solstício, p. 36

Ainda em articulação com esse imaginário, o astro-rei é considerado um símbolo criador, doador de vida e conotado com a luminosidade, adquirindo as mesmas características dos deuses solares, nomeadamente do deus fenício Baal:

Bendita seja a luz do dia
Bendito seja o Sol que cria.24

24 Eduardo Amarante, Portugal Simbólico – Origens Sagradas dos Lusitanos, p. 119.

Admira-se o brilhante Sol
Que deita tanto calor
Anda no céu sem cair
Tal é o poder do senhor.25

25 Manuel Viegas Guerreiro, “Tradição Oral e Identidade Cultural Regional, Texto dos Camponeses de Querença”, in O Algarve na Antropologia Ecológica, p. 305.

O nascer do sol é também benéfico, ele simboliza o início do dia, da luminosidade e da claridade, sendo um tempo propício para a proteção do Anjo da Guarda que se deve invocar ao levantar:

Já lá vem o sol nascente, já lá vem o claro dia,
Já lá vem o Anjo da guarda pra minha companhia.
– Deus te salve, mê Anjo da Guarda, com o retrato do Senhor,
Nasceste mê grande, hás-de ser mê guardador.
Eu te peço, mê Anjo bendito que me guardes daquele cisne maldito.
Seja eterna a minha alma no céu com glória e graça de Nosso Senhor Jesus
Cristo. Pai Nosso, Avé Maria e Anjo da Guarda.26

26 Natália Maria Lopes Nunes da Graça, Formas do Sagrado e do Profano na Tradição Popular – Literatura de Transmissão Oral em Margem (Concelho de Gavião), p. 143.

α

Uma superstição muito antiga era o fato de se acreditar que o Sol poderia ser maléfico para o ser humano, razão pela qual seria necessário fazer uma reza de proteção contra os “golpes de Sol”. Apesar da visível influência pagã, o ritual apela à intercessão de Jesus, de Maria e de Santa Iria como protetores contra o Sol. É importante relembrar o caráter solar da Virgem herdado das antigas deusas e a associação de Santa Iria à deusa Astarté, na continuidade do culto da deusa da fecundidade e da Lua:

A versão ribatejana do culto de Astarté tem, a este respeito, uma particularidade interessante relativamente às suas congêneres, uma vez que, à semelhança de outras micro-realidades histórico-culturais, chama à deusa-mãe fenícia simplesmente «yâreâh», ou seja, em hebraico, «Lua».27

27 Luís Mata, “O «Cais» de Santa Iria – uma reflexão sobre uma velha questão”, in Revista Lusófona de Ciência das Religiões.

Jesus que é Santo Nome de Jesus
Onde está o Santo Nome de Jesus
Não entra mal nenhum;
– Meu Senhor, meu Salvador,
Tira esta calma este calor
Deste corpo pecador:
Da barriga, das costas,
De todas as conjunturas que este corpo tem!
Nossa Senhora por Maria e o Senhor encontrou
E lhe perguntou com que se curaria:
– Com a toalha do altar e um copo de água fria!
Em louvor de Deus e da Virgem Maria
Um Padre Nosso e uma Avé Maria à Senhora Santa Iria.28

28 Carlos Teiga, Romanceiro e Oracioneiro da Tradição Oral do Sudoeste Alentejano – Alcácer do Sal, Grândola, Santiago do Cacém e Sines, vol. 1, p. 282.

O caráter protetor de Santa Iria, uma continuidade do culto da deusa Astarté, como referimos anteriormente, está também presente numa oração recolhida no Torrão, concelho de Alcácer do Sal:

Santa Iria por o mundo andou
Nossa Senhora a encontrou e perguntou:
– Onde vais, Iria?
– Vou benzer o meu filho de sol e calmaria
Com um pano de linho e um copo de água fria!
Em louvor de Deus e da Virgem Maria
Um Pai Nosso e uma Avé Maria.
– Jesus que é o Santo Nome de Jesus
Onde está o Santo Nome de Jesus
Não entra mal nenhum
Eu te benzo F…
Deste golpe de sol deste golpe de calma deste golpe de calor!
– Com que se há-de curar
Este golpe de sol este golpe de calma este golpe de calor?
– Com sumo de parra
Na nuca da cabeça
Na flor dos olhos
Na maçã da face
Nos lombinhos das costas
Na roda dos joelhos
Na sola dos pés
E na palma das mãos!
Com o poder de Deus e da Virgem Maria
Pai Nosso e Avé Maria.
Alguns cânticos, loas ou hinos em louvor da Virgem Maria associam-na ao Sol.

Os cânticos de Frei Cláudio da Conceição demonstram a importância da Igreja no período liberal através do culto popular da Virgem. Nesses cânticos, o Sol é um símbolo do Bem, da Paz e do fim do período instável entre absolutistas e liberais:

Já raiou brilhante o Sol
No ditoso Portugal
Dissipando com seus raios
Todo o susto, todo o mal.29

29 Quadra citada por Lucília José Justino, in Loas a Maria – Religiosidade Popular em Portugal, p. 108.

A Virgem Maria, em alguns hinos retomou os mesmos atributos de Astarté/Tanit, apresentando todas as características de uma divindade solar/lunar, protetora e guia dos navegantes, “Sol resplandecente”, “matutina estrela”.

Maria, farol reluzente,
É luz que sempre alumia,
E o sol que não tem ocaso
Estrela que sempre guia.
Salvé! Sol resplandecente
De claridade a mais bela:
Salvé! Matutina estrela
Salvé! Farol reluzente.

α

No que respeita à presença da Lua na cultura popular, ela também é extensa e sobre ela, daremos alguns exemplos. A Lua pode ser malfazeja e benfazeja. Em alguns casos, é fundamental invocá-la contra o mal, outras vezes, é necessário benzer contra o seu poder. Assim, ela pode ser protetora e adorada com um ser divino:

Louvamos a Deus e à Lua Nova
A São Vicente e a São Clemente
Que nos livre de má gente
E das dores de cão doente.30

30 Consiglieri Pedroso, Contribuições para uma Mitologia Popular Portuguesa, p. 361.

Além disso, na cultura popular, é muito frequente a benzedura da Lua. Então, para “tirar a lua” existem, de Norte a sul do país, várias rezas, de entre elas, a seguinte:

Lua que por aqui passaste
A cor da nha menina levaste
Se aqui voltares a passar
A cor da nha menina hás-de deixar
E a tua cor levar.31

31 Reza recolhida no Ribatejo e citada por Aurélio Lopes, in O Percurso de Selene – A Lua na Tradição Popular, p. 35.

Acreditava-se (e ainda há pessoas que acreditam) que algumas reações das crianças, nomeadamente, dores de barriga, rir a dormir, revirar a vista eram indícios dos malefícios da Lua. Outro ritual que remonta a épocas ancestrais é “doar” a criança à Lua, para que esta seja sua protetora durante a infância. Além disso, é curioso o caráter maternal atribuído à Lua como mãe criadora, raízes que remetem para a aproximação entre a Lua a Deusa-Mãe:

Ó lua, ó lua
Pega lá o meu menino
Acaba de mo criar
Tu para mãe e eu para ama
Cria-o tu que eu lhe darei mama.32

32 Margarida Ribeiro, “Estudos sobre a Aldeia da Glória”, vol. 5, in Crenças e Superstições, Separata da Revista Ocidente, vol. LXII, Lisboa, 1954, p. 32.

Algumas rezas eram acompanhadas de outros ritos, de entre eles, o gesto de entregar a criança à Lua, defumadouros com determinadas plantas, esfregar a barriga da criança com azeite quente, etc. Em alguns casos, a benzedura da Lua surge associada ao mau-olhado:

Eu te benzo fulana
Da Lua e do Cobranto
Em nome de Deus Pai
Deus Filho e Espírito Santo
Dois to deram, três to tiram
São três pessoas da Santíssima Trindade
Em nome de Deus Pai
Deus Filho e Espírito Santo
Lua Nova que aqui passaste
Cor do mê menino levaste
Há-de tornar a passar
Cor do mê menino deixar
E a dela levar
Eu te benzo fulana
Da Lua e do Cobranto
Em nome de Deus Pai
Deus Filho e Espírito Santo
Dois to deram, três to hão-de tirar
São as Três Pessoas da Santíssima Trindade
Eu te benzo de todo o mal
Que te queira assombrar
Que nem homem nem mulher
Te possa fazer mal.33

33 Pina Rodrigues, Elementos para o Estudo da Etnografia do Concelho de Almeirim, Tomo III, ed. da Associação da Defesa do Património Histórico e Cultural do Concelho de Almeirim, p. 184.

Com base na Astronomia e, posteriormente, na Astrologia, o imaginário da Lua articula-se com a adivinhação, dando-lhe, deste modo, um caráter ocultista, neste exemplo, ligado a ritos de fertilidade através do ritual do casamento:

Hoje é Lua Nova
Amanhã é quarto Crescente
Quero saber se o casamento
De fulano irá por diante.34

34 Teófilo Braga, O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições, vol. 2, p. 224.

Em algumas composições poéticas do Romanceiro, os milagres atribuídos à Virgem (Nossa Senhora) têm a presença do Sol e da Lua, aproximando a Virgem das deusas predecessoras que eram, inicialmente, deusas solares e, posteriormente, passaram a divindades lunares:

Alevantei-me de manhã cedo Senhor ó cantar dos galos
Via andar Nossa Senhora com andar mmuito asseado
Duma banda trazia a Lua e da outra o Sol pintado
Da outra trazia a Cruz com o Senhor crucefecado.35

 35 Carlos Teiga, op. cit., p. 232.

O final da oração “Contra o Demônio e todo o Mal”, recolhida por nós no Concelho de Gavião, retoma a presença do Sol e da Lua como símbolos protetores contra o Mal e o Demônio, em parte, simbologia que passou a integrar o amuleto de proteção das figas:

– Custódio amigo meu, se sabes muito, diz-me os treze raivos (raios) leva o sol, treze raivos leva a lua, arreda (afasta) daqui o demónio qu’esta alma nã é tua.36

 36 Natália Maria Lopes Nunes, op. cit., p. 149.

Finalmente, em louvor do Sol e da Lua, não poderíamos deixar de citar dois santos medievais, um cristão – S. Francisco de Assis – e um islâmico – Rumi. O primeiro, S. Francisco de Assis, frade mendicante, fundador da Ordem dos Frades Menores ou dos Franciscanos (séculos XII-XIII) elogia o Sol, a Lua, as Estrelas, e todos os elementos da natureza – Água, Terra, Fogo e Ar, no “Cântico das Criaturas, ou Cântico do Irmão Sol”:

Altíssimo, omnipotente, bom Senhor
Teus são o louvor, a glória, a honra
E toda a benção.
Só a ti, Altíssimo, são devidos;
E homem algum é digno
De te mencionar
Louvado sejas, meu Senhor
Com todas as tuas criaturas,
Especialmente o senhor irmão Sol,
Que clareia o dia
E com sua luz nos alumia.
E ele é belo e radiante
Com grande esplendor:
De ti, Altíssimo, é a imagem.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pela irmã Lua e as Estrelas,
Que no céu formaste as claras
E preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Vento,
Pelo ar, ou nublado
Ou sereno, e todo o tempo,
Pelo qual às tuas criaturas dás sustento.
Louvado sejas, meu Senhor
Pela irmã Água,
Que é muito útil e humilde
E preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Fogo
Pelo qual iluminas a noite,
E ele é belo e jucundo
E vigoroso e forte.
Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a mãe Terra,
Que nos sustenta e governa
E produz frutos diversos
E coloridas flores e ervas.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelos que perdoam por teu amor,
E suportam enfermidades e tribulações.
Bem-aventurados os que as sustentam em paz,
Que por Ti, Altíssimo, serão coroados.
Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a Morte corporal,
Da qual homem algum pode escapar.
Ai dos que morrerem em pecado mortal!
Felizes os que ela achar
Conformes à tua santíssima vontade,
Porque a morte segunda não lhes fará mal!
Louvai e bendizei ao meu Senhor,
E dai-lhe graças,
E servi-o com grande humildade.37

 37 S. Francisco de Assis: “Cântico das Criaturas ou Cântico do Irmão Sol”.

O segundo, o sufi Mevlana Jalaluddin Rumi (século XIII), um dos maiores místicos do Sufismo (corrente mística do Islão), fundador da Ordem dos Derviches, num dos seus poemas, compara Deus ao Sol, sendo o médico e o guia do seu coração, da sua alma:

Yo soy un río.
Tú eres mi sol.
Eres la medicina
de mi corazón roto.
Vuelo por detrás de Ti, sin viento.
Yo soy una aguja.
Tú eres mi brújula.38

38 Rumi, Locos de Amor, p. 32.

Em conclusão, se o Sol era, inicialmente, a representação de divindades pagãs, no Cristianismo, as celebrações continuaram, embora com outras denominações.

Subjacentes a tais rituais estão os ritmos da Natureza e da sua constante renovação, articulando-se com cultos de fecundidade e de fertilidade. Utilizando a linguagem psicanalítica de Jung, o Sol será a representação do animus e a Lua a representação da anima: o princípio masculino (ativo) e o princípio feminino (passivo) ou, na interpretação da filosofia chinesa, representações do yang e do yin, sendo a Virgem do Apocalipse o símbolo máximo da união dos contrários e a representação do Sagrado Feminino herdado dos antigos deuses ligados ao Sol e à Lua.

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