O Sistema Astrológico como Modelo Narrativo

Maria Elisabeth de Andrade Costa

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo

Essa tese procura discutir uma matriz discursiva capaz de sustentar o aconselhamento astrológico tal como ele é oferecido e aceito em um setor restrito das camadas médias do Rio de Janeiro. Admitindo-se que a relação céu/terra, aceita pelo segmento-alvo, pode ser abordada como uma linguagem que detém uma sintaxe e uma semântica próprias, o sistema astrológico é primeiro examinado como um sistema de classificação, nos moldes dos sistemas ditos totêmicos. O objetivo é detectar os constituintes formais desse sistema simbólico antes de abordar a consulta astrológica, onde ocorre a leitura ritual de um mapa de nascimento. Por sobre a história que a pessoa conhece a respeito de si mesma, a leitura do mapa natal provoca a emergência de uma outra história, re-significando as experiências de vida. Este trabalho tenta demonstrar que o sistema astrológico oferece um peculiar modelo narrativo, caracterizando, à sua semelhança, as noções de tempo, espaço e agente. As implicações desse modelo na composição de narrativas de vida e o papel da intervenção de um astrólogo são algumas das questões discutidas.

A Consulta Astrológica I

No dia 20 de março de 2004, quando o Sol ingressou no signo de Áries, marcando o equinócio de outono no hemisfério sul, o Sindicato de Astrólogos do Rio de Janeiro promoveu um evento, com entrada franca, denominado “A Astrologia é para Todos”, no Centro de Convenções do Hotel Flórida, no Catete, bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro.

Esse evento, que comemorava os quinze anos de existência do Sindicato, visava atingir um público leigo, em um esforço para divulgar a possível contribuição da astrologia para diferentes campos de saber. Em palestras curtas, abertas a perguntas, pares formados por um astrólogo e um profissional de uma determinada área expunham seus respectivos enfoques sobre uma questão comum a um auditório de cerca de 150 lugares, que se manteve repleto desde as 10 horas da manhã até as 6 horas da tarde. Em uma sala ao lado do auditório, um grupo de cinco a seis astrólogos oferecia um plantão astrológico. Ficavam à disposição do público para responder perguntas, tirar dúvidas e dar orientações.

Além do já clássico debate entre Astrologia e Astronomia, que abriu a série de palestras, ainda estiverem em pauta a relação entre a Astrologia e a História, a Medicina, a Psicologia, a Administração de Empresas, a Educação e a Orientação Vocacional. Os temas, portanto, fugiram do tripé Amor-Saúde-Trabalho que Barthes (1993) aponta como o interesse predominante da clientela, voltando-se, desta vez, para as possíveis áreas de atuação profissional dos astrólogos. Um dos objetivos do evento “A Astrologia é para Todos” me pareceu ser justamente apresentar ao grande público a oferta de bens e serviços disponíveis a eventuais interessados, visando atingir uma clientela ainda sem demanda. A maior parte do público, porém, era composta por astrólogos, estudantes e simpatizantes da astrologia, já convencidos da pertinência da astrologia para suas vidas.

De modo geral, as parcerias ali formadas entre astrólogos e profissionais de outros campos do saber não suscitaram grandes discordâncias. A exceção, já prevista, seria a parceria entre Astrologia e Astronomia, e foi isso mesmo que aconteceu. À pergunta da plateia sobre como astrólogos e astrônomos poderia colaborar mais de perto, o astrônomo confessou que ainda não via como isso poderia acontecer, muito embora o Planetário, na qualidade de instituição pública, estivesse aberto a qualquer interessado em observação do céu ou em palestras e cursos sobre astronomia.

Um tom dissonante foi novamente ouvido na última parceria que se apresentou. A psicóloga convidada para confrontar as técnicas de orientação vocacional com a visão astrológica sobre vocação mostrou-se desnorteada com os critérios e definições de que a astróloga se valia para enfocar o tema. Repetidas vezes afirmou que talvez estivessem falando sobre coisas diferentes, que os conceitos de que ela dispunha sobre vocação e profissão não eram aqueles que a astróloga empregava. Essa astróloga é uma das mais conhecidas na cidade, com mais de 20 anos de atuação no meio astrológico, frequentemente entrevistada em programas de rádio e de televisão e autora de livros de grande tiragem. Em certo momento, a astróloga afirmou que, quando uma pessoa encontra sua vocação, ela fica mais feliz, mais equilibrada, mais saudável. A psicóloga interrompeu-a para perguntar se Van Gogh poderia ser citado como exemplo de alguém dedicado à sua vocação e, consequentemente, equilibrado, saudável e feliz. Ao que a astróloga retrucou que Van Gogh era um dos gênios da humanidade e que os astrólogos, como ela e os colegas que se encontravam na plateia, não atendem gênios. Eles só lidam com pessoas comuns.

É importante salientar que todos os temas discutidos neste ciclo de palestras pressupunham o exame de um mapa astrológico, seja o de uma pessoa física ou de uma pessoa jurídica. A astrologia voltada para um público de massa, tipicamente representada pelas colunas de horóscopos publicadas nos meios de comunicação, não encontrava lugar naquelas discussões. Portanto, as pessoas comuns a que a astróloga se referia não seriam os leitores de almanaques e colunas de horóscopos, mas sim os clientes que nós atendemos, o que implica uma consulta individualizada.

O preço médio de uma consulta astrológica gira em torno do preço de uma consulta médica. Ao final da sua palestra, essa astróloga convidou a plateia para uma semana promocional de consultas a preços populares, no valor de setenta reais. Uma política de preços que restringe o atendimento a uma classe abastada lembra uma crítica que as terapias psicológicas já receberam. Mas, tal como na clínica psicológica, a questão não se limita aos aspectos financeiros. Ela atinge também a prática do atendimento.

Analisando o atendimento psiquiátrico oferecido às classes trabalhadoras, Duarte (1985) salienta a inadequação de se transpor os parâmetros de um atendimento individualizado a pessoas individualizadas para outros segmentos sociais que não se pautam por esses princípios e valores. Conforme Duarte, esses outros segmentos sociais resistem às versões e explicações da realidade oferecidas pelos sistemas simbólicos compartilhados pelos responsáveis pelo atendimento, tais como a medicina ou a psicanálise. É possível supor que, inversamente, o segmento social que se percebe e se entende sob princípios individualizantes resistiria a absorver versões padronizadas e generalizantes, tais como as colunas de horóscopos oferecidas pelos meios de comunicação, que dificilmente poderiam ser acomodadas em seu esquema de valores.

Não é extraordinário, então, que o recurso ao sistema astrológico por parte das camadas médias e altas das sociedades modernas ocorra por meio de consultas às cartas natais, as quais constituem um atendimento individualizado a pessoas individualizadas.

A restrição a segmentos sociais específicos não só formata o atendimento, mas também se insere no corpo teórico da disciplina. Um rápido exame dos manuais astrológicos que existem no mercado deixa entrever o perfil dos clientes em potencial. Eles estudam, trabalham, contratam empregados, agendam compromissos sociais, interessam-se por novidades tecnológicas, fazem terapia, cultivam hobbies, namoram, casam-se, têm filhos, usufruem de atendimento médico regular, têm planos de carreira, não dispensam atividades de lazer e costumam viajar. As técnicas astrológicas descritas nesses manuais conduzem a respostas para dilemas e questionamentos que tipicamente se apresentam aos segmentos sociais que dispõem de recursos financeiros, capital cultural e mobilidade social.

A demanda de plausibilidade nas interpretações astrológicas resulta em uma conformidade aos modos leigos de pensar desses segmentos sociais atendidos pelos astrólogos, segundo o conhecimento de mundo que essas pessoas utilizam em suas vidas cotidianas e do qual se valem para compreender, justificar, explicar suas próprias ações e as ações dos outros. Talvez seja esse o prisma que constrói a percepção dos clientes da astrologia como pessoas comuns. Suas trajetórias pessoais refletem os possíveis cursos de vida em um dado contexto social.

Vale observar que, nos tratados antigos, a referência a diferentes segmentos sociais (pobres, escravos, nobres, etc.), em um contexto de pouca mobilidade social, visava exemplificar a força de atuação de uma estrela, capaz de elevar um escravo a alturas jamais sonhadas ou, pelo contrário, provocar a queda de uma figura de poder.

Hoje em dia, os astrólogos relutam em admitir variações tão fortes nas trajetórias de vida, na esteira de uma ideologia que delega ao indivíduo a responsabilidade por sua biografia e, consequentemente, renuncia a impactantes golpes do destino. A julgar pelo comentário da palestrante, aqueles que se destacam por uma vida fora do comum não costumam fazer parte de sua clientela nem da clientela de seus colegas de profissão.

Assim circunscrito, o discurso astrológico explicita, enuncia, nomeia a experiência pessoal em termos do que os discursos sociais apregoam e em termos das competências pessoais requeridas para satisfazê-los. Este é o caráter nominalista atribuído à astrologia por Barthes, que a descreve como a literatura degradada do mundo pequeno burguês.

No entanto, o paradoxo surge em virtude do sucesso alcançado pela leitura do mapa. São frequentes os testemunhos de que a pessoa se sentiu muito bem descrita por alguém que nunca me tinha visto antes, como é que ela podia saber aquilo tudo?!”

A leitura ritual de um mapa de nascimento é realizada em uma consulta astrológica. A descrição de uma consulta astrológica, proposta pelo astrólogo Cid de Oliveira, se mostra perfeitamente afinada com as posições assumidas pelas pessoas com as quais convivi e é dela que vou me valer.

“A consulta astrológica consiste na interpretação e explicação do tema de nascimento. A consulta é uma viagem interior muito proveitosa na direção de uma tomada de consciência dos mecanismos internos, que são a base mesma dos comportamentos. Dentro dela, a interpretação deve ser vista como uma proposta do astrólogo, que será discutida com o cliente, e não como uma resposta autoritária, fatal e acabada, imposta a ele. Na sua forma atual, a consulta astrológica, ainda incipiente e imperfeita, é cópia da consulta médica e se compõe da descrição do caráter, baseada nas posições dos astros obtidas por cálculos astronômicos, unida a um aconselhamento psicoterápico, ao qual se junta uma complicada componente oracular”.

Percebe-se, então, que a consulta astrológica assume uma lógica similar à dos processos terapêuticos, propiciando o exercício da reflexividade com vistas à conscientização de padrões comportamentais que bloqueiam maneiras alternativas de ser e de agir.

Na vertente psicológica do individualismo moderno, investigada por Gilberto Velho, o eu se torna um projeto que demanda dedicação, empenho criativo e avaliação em bases sistemáticas. Essa auto-avaliação promove esforços de autoconhecimento que estão subordinados ao objetivo preponderante de modelar um senso de identidade satisfatório.

Este senso de identidade requer: (a) uma coerência, que decorre de um mapeamento cognitivo dos diferentes domínios da vida social pelos quais o indivíduo transita, e (b) uma coesão, que deriva da integração das várias fases e passagens da vida, englobando essas descontinuidades em um todo conexo (Velho, 1985). Em prol da coerência, o indivíduo é instado a avaliar suas condições de vida, cabendo-lhe planejar um direcionamento pessoal na rede de relações sociais. Em prol da coesão, o indivíduo é levado a se perguntar, a intervalos regulares, o que está acontecendo com ele e qual o sentido do que está vivendo.

Para as camadas médias urbanas, a psicologização da vida cotidiana cria também a exigência moral da auto-realização. O desenvolvimento pessoal implica vencer bloqueios e tensões que impedem a pessoa de desvencilhar-se de um falso eu, criado a partir de sentimentos e atitudes impostos pelos outros, principalmente na infância. Assumir o verdadeiro eu torna-se assim um fenômeno moral porque se respalda na premissa de que o valor pessoal está vinculado ao que se é, e não ao que os outros nos julgam ser ou nos impelem a ser.

“Sob a perspectiva de camada média intelectualizada, nada mais natural do que a ideia de que cada indivíduo tem um conjunto de potencialidades peculiar que constitui sua marca própria e que a sua história (biografia) é a atualização mais ou menos bem sucedida daquelas”.

O desvelamento do eu verdadeiro, uma revisão do passado atrelada a um futuro antecipado, a atribuição de sentido às experiências de vida, este parece ser justamente o material de uma consulta astrológica.

A Consulta Astrológica II

De modo geral, quando um postulante ao ofício de astrólogo começa a atender, seus primeiros clientes são amigos e familiares. Essas são as pessoas cujos dados de nascimento ele consegue obter com facilidade e cujas histórias de vida ele conhece relativamente bem. Servem assim, de início, como cobaias para seu aprendizado. Os primeiros atendimentos são informais e geralmente resultam de pedidos dos próprios amigos e familiares que costumam perguntar “E, aí? Você viu alguma coisa no meu mapa?”; “Que negócio é esse de Ascendente Capricórnio? Eu não sou Sagitário? O que significa isso?”; “Que desenho é esse aqui? Ah, é Netuno! Então, é isso que está emperrando minha vida? Quando é que ele vai embora?”

As informações extraídas de uma interpretação do mapa costumam suscitar comentários do tipo: “Você está dizendo isso porque me conhece. Quero ver você falar sobre uma pessoa que nunca viu antes”. O primeiro atendimento de “uma pessoa que você nunca viu antes” é marcado por um longo preparo que inclui consultas minuciosas aos manuais disponíveis e muitas folhas com anotações. Quase todos os que entrevistei alegam que, de início, não conseguiam examinar mais do que um ou dois mapas por mês. Muitos requerem vários dias para se prepararem, até mesmo depois de muita prática.

Por isso, de modo geral, a consulta astrológica é agendada com pelo menos uma semana de antecedência. Abordar um mapa natal sem esse detalhado preparo é entrar em um “esquema de risco”, expressão usada por vários astrólogos, nas discussões do pré-simpósio de 2004.

“Tem gente que diz que bate o olho no mapa e sai falando. Não pode ser assim. Isso é um tremendo esquema de risco. Acaba saindo besteira e a astrologia é que perde”. (comentário de um astrólogo na plateia, endossado e repetido por outros ao longo do debate).

Para poder levantar um mapa de nascimento, o astrólogo precisa saber o dia, a hora e o local de nascimento do cliente. Não é raro que um cliente de primeira viagem pergunte se é necessário dar o nome completo. Os astrólogos que me relataram isso entendem essa pergunta como uma confusão da astrologia com a numerologia. Alguns astrólogos lidam com outros sistemas simbólicos (como a numerologia ou o tarô), além do sistema astrológico, em uma mesma consulta. Mas, o grupo que acompanhei não aprecia essa mistura.

“Tem gente que mexe com tudo, astrologia, tarô, runas, até anjos. Nem sei como eles dão conta. Eles dizem que é por causa da clientela. Que é por causa do mercado. Acabam não fazendo nenhum deles direito. A astrologia já é difícil, muito complexa. A gente não pára de estudar. Não dá para parar. Esse negócio de abraçar o mundo com as pernas não pode dar certo”.

“Eu fico muito chateada com a imagem que as pessoas fazem da astrologia, misturando-a no mesmo saco com uma porção de outras coisas. Uma vez, a Revista Veja fez uma matéria sobre astrologia e botou, na foto que ilustrava a matéria, um gnomo em cima de um computador. Não tem nada a ver. É por esses pequenos detalhes que a gente vê a confusão que existe na cabeça das pessoas que estão por fora”.

“Tem gente que pergunta “prá fazer a consulta com você, eu preciso tirar o sapato?” Vê se pode! Parece até que é preciso um clima, como se eu fosse receber um santo…”.

A necessidade de colocar a astrologia à parte de outros sistemas divinatórios é sistematicamente reafirmada na maioria dos depoimentos colhidos.

Os astrólogos que entrevistei salientam dois tipos de regularidade na clientela. O primeiro diz respeito a uma rede social derivada da divulgação boca a boca. Sônia, que trabalha no Tribunal de Justiça, diz que atende majoritariamente funcionários da Justiça, juízes e desembargadores.

“Quando meus colegas lá no Tribunal descobriram que eu fazia mapas, comecei a receber alguns pedidos, pouco de início. Depois, a coisa foi aumentando. Teve um desembargador que me disse que demorou muito a ter coragem para me pedir isso. Ele estava com medo que eu fosse sair por aí, contando coisas dele. Mas, quando ele viu que eu atendia outras pessoas e nada era comentado, foi aí que ele resolveu marcar a consulta. Fiz o atendimento na hora do almoço, na sala dele. Ele fechou a porta e, depois de ouvir um pouco, começou a falar. Conversamos bastante e acho que ele se sentiu bem, com confiança. Eu gosto de deixar a pessoa falar. Botar prá fora, sabe. Faz bem Se isso ajuda a pessoa, eu também me sinto bem”.

Renata conta que, certa vez, atendeu uma psicanalista e recebeu, depois, uma leva de clientes terapeutas, recomendados por essa psicanalista. Um atendimento bem sucedido, no sentido de que o cliente saiu satisfeito com a consulta, costuma deflagrar outros atendimentos a partir da rede de relações desse cliente.

Uma segunda regularidade na clientela, muito citada pelos astrólogos, diz respeito a uma coincidência nas ativações no mapa do próprio astrólogo e nos mapas de seus clientes.

“Estou com Urano quadrado ao regente do meu Ascendente e tenho recebido um monte de clientes com Urano pra todo lado: conjunto ao Sol, cruzando o MC, oposto à Lua. Você tem uma coisa acontecendo no seu mapa e aquilo parece um imã. Vai atraindo quem está com aquilo também”.

Essa situação é explicada pelos astrólogos por meio do princípio junguiano da sincronicidade e vai engrossar a polissemia na interpretação do mapa. Um trânsito forte de Urano, no mapa do astrólogo, pode também indicar que ele vai lidar diretamente com uranianos ou pessoas que estão passando por uma forte ativação de Urano em seus próprios mapas.

De modo geral, os astrólogos atendem em suas próprias casas. Não são muitos os que dispõem de um consultório, especialmente reservado para atendimento.

Os requisitos para o local de atendimento são poucos. É preciso que seja um cômodo reservado, preferencialmente a portas fechadas, que disponha de uma mesa onde possa ser colocado o mapa e, via de regra, um gravador.

O uso de um gravador nos atendimentos é bastante frequente. A consulta é inteiramente gravada e o cliente leva a fita com ele. Alguns dos astrólogos entrevistados gostam que a consulta seja gravada por medida de segurança. Eles comentam que é muito comum o cliente dizer que o astrólogo afirmou algo que o astrólogo nega e, por isso, a fita funciona como prova documental, para evitar mal entendidos. Porém, para a maioria dos astrólogos, esse recurso se justifica pela quantidade de informações que o cliente precisa assimilar. Tendo tudo gravado, ele volta e meia escuta a fita de novo e vai “compreendendo melhor” o que foi dito.

Dentre os poucos contatos que tive com clientes que não se envolvem no estudo da astrologia, um deles (diretor de uma empresa aérea, casado, sem filhos, 48 anos) me contou que guarda a fita da Revolução Solar (que ele faz todos os anos, há cerca de 8 anos) no porta-luvas do carro. Volta e meia, quando fica preso em um engarrafamento, ele a escuta. Diz ele que sempre percebe uma coisa nova, alguma coisa que não tinha entendido direito, mas que, a partir do que já foi acontecendo durante o ano, ele se dá conta do que significa.

Quando Vilhena analisa as práticas leitoras em sociedade, ele salienta que a avaliação do impacto social da escrita não pode prescindir de uma avaliação correlata do ato de leitura. A escrita e a leitura não podem ser equacionadas a um processo mecânico de codificação e decodificação sem a interferência do contexto no qual ambas ocorrem. O fato de que a leitura seja realizada solitariamente, ou em voz alta, diante de um grupo de pessoas convoca os aspectos extra-textuais que interferem na produção de sentido.

Quanto à gravação da consulta astrológica, a questão que nos interessa no momento não é tanto estabelecer como a gravação registra a consulta, mas sim o que ocorre no ato de ouvir. Vilhena comenta que a ambiguidade é uma das características de uma obra literária, principalmente na modernidade, permitindo múltiplas interpretações. Assim como a obra literária se abre a uma leitura interminável, submetida a diferentes sistemas de significação, a prática de ouvir e re-ouvir a gravação de uma consulta se configura como uma escuta interminável. Isso implica que o material desta gravação não é compreendido nem aceito, pelos clientes, como um acervo de dados informativos os quais, uma vez conhecidos, se limitariam a fazer da gravação um auxiliar da memória. Trata-se bem mais de um material que supõe contínuas exegeses. A leitura ritual do mapa de nascimento está longe de se cristalizar em uma versão “original”, materializada e preservada idealmente por meio da fita de gravação. As constantes escutas não ocorrem sem acomodações.

Por outro lado, o caráter de confidencialidade da consulta fica comprometido com a existência da fita gravada. Fiquei sabendo de dois incidentes desagradáveis relacionados à escuta da gravação. Uma aluna da escola Espaço do Céu me contou que tinha convencido o marido a fazer uma consulta com uma das astrólogas mais reputadas dentre as que costumam se apresentar em eventos públicos. Ele voltou da consulta sem comentar o que havia sido dito, mas confessou que adorou a experiência. Tempos depois, ela encontrou a fita gravada em uma gaveta, escutou-a e descobriu que o marido havia tido um caso com uma colega de trabalho (que já terminara, ao que parece). Mas, o que mais a incomodou, segundo ela, foi ter ouvido a voz da astróloga afirmando que “é muito bom você conseguir essas escapadas de vez em quando porque estou vendo aqui no mapa que sua vida de casado é muito chata”. Pelo que entendi, ela jamais contou ao marido que ouvira a fita, mas “fiquei com horror dessa astróloga. Nunca mais quero nada com ela”.

O outro incidente envolveu uma astróloga que eu não cheguei a conhecer. Durante uma conversa no intervalo entre duas aulas, a turma comentava sobre “a Fulana, você não conhece? Ela andou perdendo muitos clientes. Também pudera! Outro dia, o marido de uma cliente foi atrás dela, acho até que queria bater nela. Tudo porque ele ouviu a fita, onde ela recomendava à mulher que se separasse dele. Foi um Deus nos acuda! Mas ela é assim mesmo. Não quer nem saber. Diz logo o que acha, vai dizendo às pessoas o que devem fazer. Não é brincadeira, não. Já teve muitos clientes, mas hoje quase não tem mais. A turma foi ficando apavorada”.

Uma consulta dura cerca de uma hora e meia a duas horas. Há astrólogos que suportam uma consulta de até quatro horas de duração, mas esse não é o padrão. Os que oferecem uma consulta assim tão prolongada contam que sentem dificuldades para encerrar o encontro.

“É difícil, para mim, dar a entender que a consulta acabou. A pessoa fica falando, falando, contando seus problemas, suas preocupações, e eu não consigo cortar. Acho que esta é uma ajuda que eu posso dar. A pessoa tem um certo alívio quando ela pode falar sobre o que a incomoda. Mas reconheço que é uma dificuldade minha. Eu devia fazer como os outros astrólogos, que marcam uma hora e pronto. Mas não consigo.”

“Tem cliente que eu tenho praticamente que expulsar do meu consultório depois de três horas. Não quer sair”.

Apesar disso, alguns dos astrólogos entrevistados acreditam que o modelo da consulta astrológica, tal como ela funciona hoje em dia, não é adequado para a ajuda efetiva que a astrologia pode dar.

“É impossível, numa consulta de uma hora, dar conta daquilo que uma leitura de mapa pode oferecer ao cliente. Talvez o ideal seja aquilo que o Cid falou no pré-simpósio: ter, no mínimo, seis sessões, ou, então, uma sessão a cada dois meses. Ir aos poucos, deixar a pessoa absorver as informações antes de continuar. Despejar um monte de coisas de uma só vez está longe de ser o ideal”.

Fiquei sabendo de um atendimento repartido em várias sessões. Uma de minhas amigas frequenta um centro espírita em Botafogo. Em fins de 2004, sua mãe encontrava-se em estado precário de saúde, exigindo extremos cuidados, e ela procurou um médium lá no centro, buscando uma orientação sobre o estado da mãe. Ao contrário do que ela esperava, o médium pediu que ela fizesse uma leitura cármica de seu próprio mapa, pois, afinal de contas, era ela a responsável pelos cuidados com a mãe. Foi-lhe recomendada uma astróloga cármica. Logo depois da consulta, ela me procurou para dizer que ficou impressionada. As cargas e atribuições que ela tem enfrentado nessa vida foram todas bem descritas pela astróloga. O combinado era que ela levaria o mapa, com a devida interpretação, para o médium. A entidade que este médium recebe discutiu com ela diversos aspectos do mapa em várias sessões semanais. Cada sessão abordava um tema relacionado com alguma pessoa importante de sua vida (irmão, pai e mãe, marido, filhos, etc.). Ela me contou que toda vez que ela tentava estender o assunto que estava sendo discutido, a entidade se recusava a fugir do tema enfocado na sessão e lhe dizia que isso seria conversado em uma sessão posterior. Foram, ao todo, quatro sessões de consulta.

A escola de astrologia que frequentei não costuma oferecer diretrizes para o atendimento a não ser quanto aos aspectos substantivos do discurso astrológico.

“Não se pode tomar a decisão pelo cliente, ele é quem deve agir. O nosso trabalho é só de orientação. Você não deve dizer: “olha, não faça isso, ou não aceite esse emprego. O máximo que você pode dizer é olha, se você for para São Paulo, é possível que seja uma mudança difícil, que você enfrente isso e aquilo, mas é só. Ele é quem decide”

Há também uma recomendação sistemática no sentido de não se usar o “astrologuês”.

“Não adianta ficar falando Saturno conjunto a Vênus, ou Plutão em trânsito sobre Marte, coisas assim. O cliente não entende e não tem obrigação de entender. Isso só deixa as coisas confusas e ele acaba não tirando nenhum benefício da consulta. Tem astrólogo que fala o tempo todo em astrologuês para dar impressão de muito conhecimento. Tem que deixar as coisas claras para o cliente. Falar com ele numa linguagem que ele entenda”.

Porém, o trato com o cliente em uma situação de intimidade, capaz de gerar vínculos de apego e dependência não é abordado. Fica entregue ao bom senso de cada um.

No grupo de supervisão que frequentei, as astrólogas reclamavam dos clientes que as procuram repetidamente, que telefonam perguntando detalhes sobre situações específicas que ocorrem ao longo do ano.

“Eu escuto um pouco e depois tento cortar. Sugiro que ele escute a fita de novo porque o que eu tinha para dizer eu já disse. Consulta não é terapia. Isso é preciso deixar bem claro. Quando o cliente fica muito ansioso, me procurando sempre, não dá para continuar”.

Esse grupo também comentou que é comum o cliente deturpar um pouco as informações prestadas pelo astrólogo. Foram contados vários casos de telefonemas de clientes, tempos depois da consulta, para agradecer uma orientação dada e confirmar um prognóstico bem sucedido.

“Olha, você acertou em cheio. Consegui o emprego em novembro, exatamente quando você disse que eu conseguiria”.

E a astróloga me dizia: “Só que eu não tinha falado nada disso. Se eu falei em novembro, deve ter sido uma coisa do tipo ‘lá para o final do ano, esse período tenso vai se desanuviar, coisas assim. Eu jamais afirmaria uma coisa tão taxativa assim: você vai conseguir o emprego em novembro. Não sei de onde ele tirou isso, mas só respondi ‘ah, que bom, fico feliz por você”.

Comentários desse tipo me foram relatados por quase todos os astrólogos que entrevistei.

“A gente não sabe como aquilo que a gente diz vai bater no cliente. Tem o que você diz e o que ele entende. São duas coisas diferentes. E depois ele te procura e diz que você acertou, e só aí você percebe que ele entendeu tudo do jeito dele. É incrível!”

Verifica-se então uma contradição muito interessante. Aquilo que os astrólogos se mostram mais relutantes em fazer – uma previsão objetiva, factual, precisa – acaba sendo o resíduo da consulta astrológica. Se é isso que o cliente busca, é isso que ele encontra, nem que seja por seus próprios méritos.

Para os astrólogos, porém, o valor da consulta astrológica está bem menos em solucionar problemas particulares e muito mais em contribuir para a compreensão geral do mundo, enriquecendo a experiência e a personalidade.

“É importante você não deixar o cliente conduzir a consulta. Se não, ele vai tentar te obrigar a resolver o problema dele”.

“A questão não é se ele deve aceitar o emprego em Furnas ou na Petrobrás. Essa é uma questão pequena. O mais importante é que ele compreenda quais são os valores envolvidos nessa decisão. Se é questão de status, pressão familiar, interesses específicos, dinheiro. O que o mobiliza. Traçar um quadro maior daquilo que ele deseja”.

Para a maioria dos astrólogos entrevistados, a função principal do astrólogo é ampliadora – cabe a ele apresentar ao cliente questões mais abrangentes do que o próprio cliente está se colocando, abrir horizontes (para usar uma expressão que ouvi repetidamente). A orientação astrológica se converte na melhor opinião sobre um problema imediato justamente porque insere o problema em seu justo lugar, dentro de um panorama mais vasto.

Mostrar a situação sob uma nova luz, reduzir a ansiedade do cliente, tirar o foco do problema que o aflige e alargar o leque de alternativas são as diretrizes para o papel do astrólogo mais citadas pelos entrevistados.

“Se o trabalho do astrólogo é simbólico, o papel da gente é fazer com que o cliente se afaste e veja tudo numa perspectiva mais ampla, perceba oportunidades que ele não tinha visto antes por estar muito preso ao problema dele. A gente tem que dizer “olha, lembre de uma situação parecida que você já tenha vivido antes. Veja como você resolveu, sobreviveu e ficou mais maduro”. É assim que a gente pode ajudar. Qualquer profissional que trabalhe com o simbólico pode ajudar – astrólogo, psicólogo. Muitas vezes, o problema dele não é bem o problema que ele pensa que tem, mas a maneira como ele está se colocando o problema”.

Ajudar a pessoa a conscientizar-se de padrões de comportamento ineficazes e contribuir para uma mudança de atitudes também é mencionado com frequência.

“Às vezes a gente tem que ser desagradável e botar um espelho na frente da pessoa. Ela fica repetindo comportamentos que não dão certo e, depois, reclama que a vida é difícil”.

No reverso das críticas mais fortemente explicitadas, é possível perceber um modelo idealizado do intérprete de um mapa natal. Este deve exibir:

-simplicidade, evitando o jargão técnico da astrologia;

-praticidade, auxiliando o cliente a avaliar as alternativas que se lhe apresentam;

– bom senso e prudência, apresentando os temas desenvolvidos na consulta sem alarmar o cliente e sem sobrecarregar a astrologia com mais do que ela pode oferecer.

Esse último ponto foi bastante enfatizado por alguns astrólogos, que procuram deixar bem claro que o mapa não revela TUDO sobre o nativo. Durante o debate sobre a regulamentação da profissão, no pré-simpósio de 2004, Cid de Oliveira argumentou:

“Para começar, o mapa sequer diz se é uma pessoa. Pode ser um evento, uma pergunta, um cachorro. E, se for mesmo uma pessoa, o mapa não diz se é homem ou mulher, se tem bom caráter ou não, nem qual o seu nível de conscientização. A gente tem que parar com esse negócio de achar que a astrologia pode mais do que ela realmente pode. É preciso estipular os limites dessa ciência”.

Esse aparte foi recebido com simpatia pela plateia. Várias pessoas assentiram com a cabeça e Maria Eugênia Castro, vice-presidente do SINARJ para o mandato que se iniciou em 2005, tomou o microfone para confirmar:

“É isso mesmo. Tem cliente que chega e pede para eu dizer tudo que vai acontecer com ele nos próximos anos. E aí eu pergunto: “Olha aqui, você tem certeza que marcou consulta com uma astróloga ou com Deus?”.

Mesmo que o astrólogo acredite ser o melhor juiz do que deve ser abordado em uma consulta, ele precisa ceder às perguntas feitas pelo cliente. As mais temidas são aquelas que exigem uma marcação fechada de tempo “me diz aí quando é que eu vou me casar” ou uma marcação fechada de potencialidades “então, quer dizer que eu nunca vou ficar rico?”.

Denise me contou que recebeu, certa vez, um cliente, dono de postos de gasolina, que veio confirmar uma previsão feita há mais de 15 anos por uma astróloga com a qual ele perdeu o contato. Quando ele fez o seu mapa naquela ocasião, a astróloga tinha afirmado que ele iria enriquecer por volta dos 50 anos de idade. Como ele tinha acabado de completar 49 anos, ele queria saber se isso era mesmo verdade, porque ele estava deliberando sobre uma mudança nos negócios. Ou expandiria a cadeia de postos de gasolina ou reassumiria uma função executiva numa distribuidora para a qual tinha sido convidado. Devolver a decisão para o cliente é tarefa árdua.

“Até parece que o mapa é uma bola de cristal. (O cliente) fica ali perguntado: “diz aí o que você está vendo. Eu devo fazer isso ou aquilo?”. Como assim, o que eu estou vendo? Não é bola de cristal, não. São indicações, que servem de orientação. Mas a decisão não é minha, é dele. Depois, esse negócio de você vai ficar rico aos 50 anos, que negócio é esse? Tem gente que diz, “ah, você vai se casar depois dos 30 anos”. E diz isso quando a pessoa tem 22 anos. Joga pra frente, você entende. Porque aí não tem mais nada a ver com ela. Até lá, muita água já rolou debaixo da ponte e o astrólogo acha que não vai ser cobrado. O astrólogo, não. Mas, a astrologia, sim. Porque o cliente lembra. Aquilo, na vida dele, é importante. Ele lembra. E vai atrás da previsão”.

Mariana é mais incisiva:

“A astrologia não pode responder nenhuma pergunta sobre o que se deve fazer. Devo me mudar para São Paulo ou ficar aqui? Devo me casar com Fulano ou não? Devo aceitar esse emprego ou aquele outro? Nada disso a gente pode responder. Os “devos ou não devos” não são da alçada da astrologia. Tem a ver com valores, ética, objetivos de vida, essas coisas. E isso não é determinação astrológica. É determinação moral. O cliente tem que decidir por si.”

Então, de que maneira se pode aproveitar a orientação astrológica? Célia me dá um exemplo:

“Uma das minhas clientes se divorciou e, na partilha, insistiu em ficar com a casa. Urano estava passando por ali e eu sabia que ela teria que abrir mão daquilo. A casa era enorme, super dispendiosa, ela não teria como arcar com a manutenção, mas ela criou o maior caso. Quando o aspecto de Urano se completou, ela foi transferida para Brasília, teve que se desfazer da casa de uma hora para outra, cedeu ao marido pela quantia que ele ofereceu. Acabou fazendo um péssimo negócio, ficando com bem menos do que poderia para montar um apartamento em Brasília. A gente avisa, olha, é melhor você pensar melhor… Urano pede desapego, decisões mais racionais do que emocionais. Urano também mostra que a situação vai se transformar rapidamente, de maneira inesperada. Mas, nem sempre adianta. É um conselho. O cliente pode aceitá-lo ou não. Porque sempre o mapa se cumpre. Pode ser de um jeito que dá para a gente aguentar bem, se prevenir, ou pode ser aos trancos. Mas o mapa se cumpre”.

Portanto, percebe-se também a construção de um modelo idealizado de cliente. O cliente ideal parece ser aquele aberto a novos enfoques, empenhado em tomar consciência de si e de sua maneira de agir e, o mais importante, disposto a tomar a si a responsabilidade pelo curso da ação.

“Eu disse a eles (os sócios da empresa) quando examinei os mapas dos candidatos a gerente da loja. Esse aqui tem Plutão pra todo lado. Se ele entrar, vai entrar pesado. E foi esse que eles escolheram. E entrou pesado mesmo. Trocou funcionários de cargo, demitiu gente, mudou toda a maneira de administrar a loja. E parece que deu certo. A firma precisava mesmo de uma reestruturação. Mas, foram eles que escolheram esse gerente. Você pode ajudar, mas o cliente é quem tem que decidir”.

A valorização da responsabilidade pessoal vem acompanhada de ênfase semelhante em esforço, reflexão, disciplina e, daí, ações bem sucedidas. Embora esse composto de empenho e mérito possa ser remetido ao projeto de auto aprimoramento tipicamente encontrado nas camadas médias urbanas, o grupo pesquisado faz uso de uma expressão peculiar que empresta a esse auto aprimoramento uma inflexão particular. O nativo tem que “fazer o planeta”.

Fazer um Planeta

A expressão fazer um planeta é ouvida com frequência: “Ela não está fazendo o Saturno dela”; “Para saber o que pode acontecer, é preciso ver como ela faz esse Netuno”; “Não adianta ficar fugindo dessas situações porque, mais cedo ou mais tarde, ele vai ter que fazer esse Sol/Plutão”.

Fazer um planeta parece ter duas vertentes: a) assumir o planeta como seu e não apenas como significador de outras figuras em sua vida (como o pai, a mãe, o cônjuge); b) assumir de bom grado as demandas típicas do planeta, transformando o obrigatório em desejável, para usarmos uma expressão durkheimiana.

Quando um cliente não está fazendo um planeta, isso pode implicar que ele o está delegando a outra pessoa, projetando-o no outro, conforme a expressão mais usada pelos meus informantes.

“Ela está projetando esse Sol em Leão no marido. É ele o bem sucedido, é ele que ocupa sempre o centro do palco, e ela fica ali, de plateia, fazendo a vida dela girar em torno dele. Mais cedo ou mais tarde, ela vai ter que fazer esse Sol, vai ter que brilhar por conta própria”.

No mapa de nascimento, os planetas indicam inclinações e aptidões pessoais, funcionando como uma tipologia de traços de personalidade. O corpus astrológico se torna uma psicologia, que admite uma linha tênue e maleável entre o inato e o adquirido.

Graças à justaposição de códigos, os planetas também encarnam figuras sociais (os pais, os irmãos, o chefe no trabalho, os amigos, etc.) e, assim, transitam livremente entre uma gama de atitudes pessoais e uma rede de relações sociais. É nesse sentido que os modos-de-ser do nativo incluem suas relações com o mundo.

“Uma vez, a Revolução Solar dessa minha cliente tinha o Sol na Casa 8, muito tensionado, e eu achei melhor alertar sobre algum problema com o marido dela. Dez dias depois, o problema apareceu. Foi descoberto um roubo na empresa do marido, parece que sério. E aí o marido veio me procurar, querendo saber como é que eu podia ter visto isso no mapa dela. É porque afeta ela. Como ela não trabalha, e depende inteiramente dele, eu acho que o marido é quem faz aquele Sol dela”.

Pode-se admitir, no pensamento astrológico, uma ambiguidade com relação à definição de fronteiras entre o eu e o outro.

As figuras representadas no meu mapa são o meu pai, o meu irmão, o meu marido, o meu inimigo, e assim por diante. Como tal, elas só adquirem sentido e valor em função de sua relação comigo, o nativo.

Em um sentido, ser meu é a maneira pela qual supero a cisão que me separa do mundo, apropriando-me dele, internalizando-o. Nesse caso, ser de constrói uma noção de estado-do-ser, decorrente do contexto de vida (Ela não trabalha e depende inteiramente desse marido, então, ele é o Sol dela). Em sentido inverso, ser meu configura a maneira pela qual eu me defino, me separando daquilo que não sou. Esse Sol é o marido dela, logo, não é ela. Nesse caso, ser de constrói uma noção de alteridade, que mantém, contudo, um caráter intrinsecamente relacional.

Fazer um planeta, nessa primeira vertente, implica transpor essa alteridade, sem, contudo, neutralizá-la. Cada planeta permanece sendo o outro, embora um outro que pode ser transformado no mesmo, se assumido como constitutivo, ou seja, quando é feito.

Numa segunda vertente, fazer um planeta está ligado à justaposição de um terceiro código por sobre o código psicológico das aptidões pessoais e o código sociológico das figuras representadas. Em função desse terceiro código, detecta-se nos planetas uma significação moral, entendendo-os como virtudes ou vícios. O corpus astrológico se torna uma filosofia e uma ética, de caráter normativo.

Na consulta astrológica, ajudar um cliente a fazer um planeta implica descortinar um panorama das boas qualidades oferecidas pelo planeta – os seus dons – e persuadir o cliente de que ele possui essas qualidades sob a forma de aptidões.

“É preciso re-identificar o sujeito o tempo todo, lembrá-lo das potencialidades dele. Olha, você tem essa qualidade, você tem essa capacidade, você pode isso, você sabe fazer isso. Trazer o sujeito para a riqueza dele”.

Por outro lado, cabe também alertar o cliente de que, caso ele não as incorpore como dons, as qualidades do planeta podem funcionar como que à deriva, transformando-se em obstáculos. Em um mapa de nascimento, por exemplo, um Netuno bem feito pode oferecer uma sensibilidade refinada, dada às artes e à imaginação, e uma postura idealista e compassiva. Entretanto, um Netuno mal feito pode implicar um comportamento altamente influenciável, mentalmente confuso, emocionalmente dependente, facilmente dado a vícios, como as drogas e o álcool. As condições para se fazer um planeta dependem sempre do domínio de significações daquele planeta.

“Eu tenho uma cliente com Saturno de 10 que vive reclamando do chefe, do trabalho, da inveja dos colegas, não consegue as promoções que ela acha que merece, essas coisas. Enquanto ela não entender que precisa fazer aquele Saturno e se dedicar ao trabalho com o esforço que ele exige, vai continuar reclamando à toa. Vai ficar para trás mesmo. Mas, é difícil fazer as pessoas entenderem Eu não gosto de ser grosseira, criticar as pessoas, não acho que isso ajude muito. Mas, dá vontade de dizer: olha, eu posso imaginar que você não cumpre os prazos, dá sempre uma desculpa para explicar porque não deu conta do que te pediram, falta muito ou chega atrasada, e depois vem reclamar da falta de reconhecimento. Porque Saturno ali, na 10, exige muito, dá uma carga pesada de obrigações. Se a pessoa se recusa a fazer esse Saturno, então não vai sair dali do chão. Esquece esse negócio de subir a montanha. Vai ficar no chão mesmo”.

Se Saturno implica responsabilidade, disciplina e esforço, deixar de fazer Saturno, isto é, esperar que as coisas venham sem esforço ou deixar tudo para a última hora, aciona o lado vicioso de Saturno, sua espécie de mão esquerda. E o nativo vê-se diante dos impeditivos tipicamente saturninos: atrasos, demoras, carência de recursos, falta de reconhecimento.

Logo, os modos pelos quais um planeta se manifesta podem ser modulados por causas internas, dentre as quais a conscientização é a mais relevante, pois libera o nativo para contribuir voluntariamente para um delineamento específico do determinismo presente na astrologia. A orientação astrológica se pauta na sistematização das múltiplas variedades pelas quais um planeta pode se manifestar, com vistas ao exercício de uma vontade aliada ao entendimento.

Um dos efeitos da consulta astrológica é, portanto, fazer do mapa natal não só um modelo da pessoa, mas, também, um modelo para a pessoa, no sentido de Geertz. Na qualidade de modelo da pessoa, o mapa funciona como uma topografia da  interioridade, que circunscreve as múltiplas facetas do nativo, integrando-as em um todo consistente. Quando, porém, o mapa de nascimento é encarado como um modelo para a pessoa, salienta-se as atitudes que tirariam melhor proveito de uma sobre determinação multifacetada.

Ao descrever as características dos signos, a astróloga Márcia Mattos, uma palestrante assídua nos eventos públicos, que costuma lotar o auditório para suas palestras, associa o trânsito do Sol por um signo como uma oportunidade para toda as pessoas exibirem as atitudes valorizadas deste signo que o Sol atravessa. Segundo ela, os taurinos se dedicam a realizações concretas, sólidas e acabam alcançando tudo que pretendem através de uma invejável e determinada paciência. Portanto, quando o Sol atravessa o signo de Touro (no período entre 21 de abril e 21 de maio), ela sugere que todos, taurinos ou não, aproveitem a faceta taurina do poder solar e recomenda: não abandone nenhum projeto, tenha paciência, seja prático. Já no período entre 21 de maio e 21 de junho, quando o Sol atravessa o signo de Gêmeos, todos devem trocar ideias com os outros, fazer contatos, interessar-se por mil coisas, e assim por diante, na esteira das qualidades geminianas.

Essa espécie de catálogo das atitudes astrologicamente corretas oferece um esquema de perfectibilidade da conduta humana pela via da integração das múltiplas qualidades encarnadas pelos planetas na sua caminhada pelo Zodíaco.

Cabe aqui uma observação. Embora a metáfora e a metonímia constituam os tropos fundamentais da retórica astrológica, a ironia, como tropo que implica o oposto do que parece dizer, desempenha também um papel relevante. No aspecto que estamos discutindo, a ironia reside em que, ao remeter à totalidade, a retórica astrológica se contradiz e afirma, simultaneamente, que o mapa de nascimento é apenas uma parte de um todo recortado. E a perfectibilidade, caso a caso, passa a depender da detecção das qualidades específicas que o mapa oferece, de modo que, eventualmente, o modelo da pessoa e o modelo para a pessoa coincidam.

Em vista disso, a leitura astrológica se pauta no campo das experiências de vida, que tende a demarcar comportamentos coadunados com facetas pessoais. O comportamento adequado é avaliado à luz das predisposições individuais que se encontram sedimentadas e tornam a pessoa mais propensa a certo tipo de conduta e não a outra. Em termos de regras prescritivas da ação, a fidelidade a si constitui a norma primordial de conduta. Modulada por uma ideologia individualista, que enfatiza a singularidade e, como corolário, a autenticidade, a orientação astrológica propõe ao cliente balizar seu modo de ser e de agir conforme a sua natureza específica.

“Na nossa sociedade machista, fica difícil para um homem com uma Vênus forte mostrar uma grande sensibilidade para os relacionamentos. Geralmente, ele prefere fingir que tem um Marte forte e isso quase nunca dá certo. Tem muito pisciano também que se força a ser virginiano. E ficam travados. Mas, quando você entende e está disposto a assumir o seu mapa, parece que a vida deslancha. A astrologia ajuda você a entrar em contato com você mesmo”.

José Reginaldo Gonçalves chama atenção para a categoria da “autenticidade” no pensamento moderno. Em contextos onde predominam as concepções individualistas de self, a noção de autenticidade diz respeito a como o selfrealmente é”, independentemente dos papéis sociais desempenhados ou da maneira como nos apresentamos aos outros. Se o protótipo do homem moderno é o indivíduo capaz de emancipar-se de constrições externas e assumir um controle autoral na construção de si, a autenticidade passa a constituir a forma de expressão deste self definido como uma unidade livre e autônoma em relação ao todo social.

Contudo, essa espécie de legitimação do eu não é o único fator que responde por uma leitura do mapa natal que o cliente considere bem sucedida. Embora o reconhecimento de si possa contribuir para dissolver um mal estar, muitas vezes silenciado, tributário de injunções morais sobre como a pessoa deveria ser, este não me parece o único viés que costura o alívio experimentado.

Na maioria dos depoimentos colhidos, o primeiro recurso a uma consulta astrológica me foi associado a uma situação de crise pessoal. De modo geral, a pessoa dava sinais de ter experimentado alívio ao tomar conhecimento de que, por pior que tenha sido a experiência vivida, ela estava, de certa forma, incluída em sua vida. A concepção astrológica materializa o mundo da experiência, encarnando-o em acontecimentos factuais e objetivos (a perda do pai na infância, um divórcio, uma cardiopatia precoce, a dificuldade para engravidar, etc.), em personagens bem desenhados (os pais, os irmãos, o cônjuge, os amigos e aliados, os inimigos) e em áreas de atividades discriminadas e diversificadas (a vida familiar, a vida profissional, as viagens e o lazer). Parte do alívio parece decorrer de uma afirmação do mundo, erigindo uma concretude que suaviza o esforço daqueles que são levados a assumir a responsabilidade por suas trajetórias de vida.

A consulta astrológica oferece meios e procedimentos pelos quais o desenrolar da vida pode ser pensado, construindo um modelo inteligível, em seus próprios termos, das trajetórias de vida.

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