A Astrologia em Portugal no Século XVI

Adalgisa Botelho da Costa

Mestrado em História da Ciência
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Resumo

Esta dissertação estuda a história da astrologia portuguesa no século XVI, tomando como exemplo central uma obra do final do século, escrita por André do Avelar e procurando compreendê-la comparativamente, dentro do contexto da época. Inicialmente, este trabalho apresenta uma visão geral sobre a situação da astrologia europeia nessa época, dando atenção especial à situação de Portugal. Depois, passa a analisar o Reportório dos Tempos (1585) de André do Avelar. Trata-se de um manual que abrange temas variados, mas grande parte dele é dedicada a temas astrológicos. A obra de Avelar é comparada em seguida com um Reportório dos Tempos espanhol anterior, escrito por Jerônimo de Chaves, pesquisando-se semelhanças e influências. Depois, são estudadas outras duas obras astrológicas anteriores – uma delas do Frei António de Beja, e outra de Abraham Zacuto – para exemplificar a variedade da literatura astrológica e permitir uma melhor compreensão da especificidade do Reportório.

A análise realizada permitiu concluir que Avelar não se baseou exclusivamente na obra de Chaves, como sugerido no século XIX por Innocencio Francisco Silva. Trata-se de uma obra pouco original, uma compilação de textos anteriores, mas que tem aspectos distintos do trabalho de Chaves.

A parte astrológica do livro de André do Avelar não inclui discussões sobre a validade da astrologia nem sobre seus limites e compatibilidade com a religião. Também não aborda a astrologia judiciária individual, destinada a prever o futuro de uma pessoa. Talvez Avelar tivesse feito certas escolhas como essas porque quisesse evitar conflitos com a Igreja. Não foi bem sucedido, no entanto, pois mais tarde foi julgado pela Inquisição e seu livro foi proibido pelo Index Librorum Prohibitorum.

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A Astrologia e a Situação Cultural em Portugal e na Europa, no século XVI

Bandeira Nacional da República Portuguesa

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A Astrologia Européia Medieval

A astrologia não parece ter desempenhado um papel importante na Europa medieval, até a época das cruzadas. Somente a partir dessa época, o intercâmbio cultural com árabes e judeus levou à introdução das práticas astrológicas na Europa. No final do século X já estavam sendo traduzidas obras astrológicas do árabe para o latim.

A astrologia havia estado em voga na Espanha e em Portugal desde a Idade Média. No século XIII, o rei Alfonso X, o sábio, encomendou a tradução de muitas obras astronômicas e astrológicas.

O rei Pedro III de Aragão, que reinou entre 1336 e 1386, ordenou a elaboração de tabelas astronômicas e a redação de um tratado de astrologia. Em 1390, João I de Aragão mandou elaborar um almanaque astronômico, válido por três anos, com as posições dos astros a cada dia, para fins astrológicos1.

1 Joaquim Bensaude, L’Astronomie Nautique au Portugal a l’Époque des Grandes Découvertes (Bern: Akademische Buchhandlung von Max Drechsel, 1912), 44-45.

No início do século XIV o astrólogo da corte já era uma figura oficial na Itália. Pouco depois, o mesmo fenômeno se repete na França e em outros países2. Os reis possuíam astrólogos em suas cortes, e não tomavam decisões importantes sem consultá-los. Na França, Carlos V ordenou a tradução de tratados astrológicos e acumulou em sua biblioteca 180 volumes sobre o assunto3.

2 Dom Cameron Allen, The Star-Crossed Renaissance (London: Frank Cass, 1966), 50-51.
3 George Minois, Histoire de l’Avenir – des Prophètes à la Prospective (Paris: Fayard, 1996), 313.

Nesse mesmo século, a astrologia médica tornou-se extremamente influente. Desde o século XIV, apesar de uma certa resistência oficial da Igreja, alguns astrólogos são consultores dos papas. Alguns deles são médicos, como Arnaldo de Vilanova, Guy de Chauliac e Raymond Chalmel de Viviers.

Apesar da tolerância, certos abusos não eram tolerados. Cecco d’Ascoli, astrólogo da corte de Florença, que havia lecionado sobre astronomia e astrologia em Bolonha, foi queimado como herege no dia 16 de setembro de 1327. Aparentemente o maior erro de Ascoli foi aplicar a astrologia ao estudo do nascimento e morte de Cristo, bem como à vinda do Anticristo e ao fim do mundo4. Ascoli teria divulgado um horóscopo de Cristo, no qual dizia ser possível prever seu nascimento em um estábulo, sua sabedoria e sua morte na cruz.

4 Jim Tester, A History of Western Astrology (Woolbridge: Boydell, 1990), 193-194.

Embora estivesse em voga, a astrologia estava sujeita a críticas – como, por exemplo, em uma obra publicada em 1389 por Philippe de Mézières. Em 1398, a Sorbonne condenou a opinião segundo a qual “nossos pensamentos e desejos internos são causados diretamente pelos céus e podem ser conhecidos por uma arte mágica, e que é lícito a partir dela formular juízos certeiros”.

Segundo George Minois, “No século seguinte (século XV) os astrólogos passaram a ocupar uma posição quase oficial na corte pontifícia”, e papas como Sixto IV, Júlio II, Leão X e Paulo III não tomavam decisões importantes sem consultar seu “matemático”. Este último papa teria chegado a nomear como bispo o astrólogo Luc Gauric. Reis como Louis XI da França e Henry VII da Inglaterra possuíam à sua volta muitos “matemáticos”, que consultam constantemente.

Em Portugal, igualmente, os acontecimentos importantes eram acompanhados por previsões dos astrólogos. O sucesso de Nuno Álvares e a morte da rainha Filipa de Lencastre teriam sido previstos. Quando Dom Duarte ia ser coroado, em 1433, o astrólogo real, chamado Guedelha, alertou que o momento escolhido não era propício e pediu que o evento fosse adiado. Dom Duarte e seu pai não acreditavam na astrologia. O pedido do astrólogo não foi atendido, e o reinado de Dom Duarte foi curto e infeliz. Em 1438, após a morte do rei, o regente Dom Pedro pediu ao mesmo astrólogo que escolhesse a data do coroação do novo rei Afonso V, para evitar desgraças.

Há informações de que o próprio Infante Dom Henrique teria escrito um livro denominado Secreto de los secretos de la astrología5.

5 Abel Fontoura da Costa, A Marinharia dos Descobrimentos (Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1939), 13.

Nas universidades, a astronomia e a astrologia eram ensinadas lado a lado. Antes de ser ensinada na universidade portuguesa, a astronomia já era ensinada há muito tempo em Toledo e, posteriormente, em Salamanca. O seu estudo servia de base à astrologia judiciária e à astrologia médica, que tinham grande importância desde a Idade Média. Hipócrates já havia associado as enfermidades a influências celestes e relacionado o aparecimento de certas constelações a momentos críticos, que decidiam a morte ou cura dos pacientes. Galeno, vários séculos depois, relacionou os dias críticos à Lua.

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O Renascimento, a Imprensa e a Astrologia

Durante o Renascimento, os intelectuais se voltaram para os autores da Antiguidade, procurando ultrapassar o pensamento medieval. Sob o ponto científico, esse período foi caracterizado pela redescoberta dos clássicos, incluindo Galeno, Ptolomeu e outros autores.

O século XV foi, na Europa, um período de redescoberta de fontes científicas antigas. A astrologia havia penetrado no mundo culto europeu, durante a Idade Média, através da tradução de textos árabes. Em 1414, Poggio Bracciolini (1380-1459) descobriu em um mosteiro de Konstanz um manuscrito da obra astrológica de Marcus Manilius, do qual fez uma cópia6. Essa obra foi publicada ou 1471 ou 1472 (sem data), depois da morte de Poggio, por Regiomontanus – ou seja, Johann Müller (1436-1476). Esta talvez tenha sido a primeira obra relativa à astronomia a ser impressa7 – trinta anos após invenção da imprensa de tipos móveis por Guttenberg. Poucos anos depois apareceram outras edições e comentários dessa obra, que antes era desconhecida. Houve, paralelamente, uma busca de outros textos gregos e romanos antigos, e sua publicação no final do século XV e início do século XVI.

6 Ellen McCaffery, Astrology. Its History and Influence in the Western World (New York: Charles Scribner’s Sons, 1942), 242.
7 Jerôme de Lalande, Bibliographie Astronomique (Paris: Imprimérie de la République, 1803), 9.

Ao mesmo tempo, foram descobertos textos místicos antigos, como as obras atribuídas a Hermes Trimegisto, que foram estudadas por Ficino8. O Corpus Hermeticum teve enorme influência no final do século XV e início do século XVI, levando a uma veneração pela alquimia, pela astrologia e pela magia natural. A visão de uma correspondência entre o macrocosmo e o microcosmo, que foi uma das bases da astrologia, foi reforçada pelos textos herméticos.

8 Allen G. Debus, Man and Nature in Renaissance (Cambridge: Cambridge University Press, 1978), 133-134.

A redescoberta dos clássicos trouxe aos homens cultos da época o conhecimento das obras astrológicas de Ptolomeu, Manilius e Firmicus Maternus. Em contrapartida, Cícero havia criticado as artes adivinhatórias no De Divinatione. No entanto, os defensores da astrologia diziam que Cícero apenas negava um tipo especial de astrologia – a dos Caldeus – e não os outros tipos. Outros autores romanos, como Virgílio, Ovídio e Plínio pareciam defensores da astrologia. E o próprio Timeu de Platão foi considerado como fornecendo uma base para a astrologia, pela relação estabelecida entre a alma do universo e a alma humana. A própria redescoberta da mitologia clássica também contribuiu a favor da astrologia, já que existia uma forte relação entre o simbolismo mitológico e a astrologia.

Examinando-se a Bibliographie Astronomique de Jerôme de Lalande, nota-se que durante as últimas décadas do século XV houve a publicação de dezenas de livros astrológicos – um número superior ao das obras astronômicas “puras” do período.

Em 1482 foi publicada pela primeiro vez o Poeticon Astronomicon de Hyginus, e em 1484 foi impressa uma tradução latina do Tetrabiblos (Liber Quadripartiti) de Ptolomeu. Em 1485 foi também publicada uma obra sobre astrologia médica atribuída a HipócratesDe medicorum astronomia. O Centilóquio, outra obra astrológica atribuída a Ptolomeu, foi publicado em 1493. Em 1497 saiu a primeira edição do De Nativitatibus de Julius Firmicus. Seguiram-se as publicações de diversas edições, traduções e comentários dessas obras.

Além de obras astrológicas gregas e latinas, foram também publicadas traduções de diversos tratados árabes (Alcabitis, Albohazen, Abenragel, Albumasar e outros), no final do século XV. Aparecem também obras de crítica e defesa da astrologia, como o Disputationum adversus astrologos de Pico della Mirandola (1498), a resposta publicada no mesmo ano por Lucio Bellanti, Liber de astrologica veritate, e o Invectiva contra astrologos (1499) do frade Thomas Murner, professor de Paris. A obra de Pierre d’Ailly, Concordantia astronomiae cum theologia, escrita em 1414, foi publicada duas vezes durante o século XV: em 1490 e 1494.

Além de edições de obras antigas, aparecem produções novas. Em 1474 Regiomontanus (ou seja, Johannes Müller) publicou suas Ephemerides astronomicae, que são as mais antigas tabelas astronômicas conhecidas, contendo as posições dos astros para o período 1475 a 1506. Dois anos depois, ele publicou uma tabela do movimento da Lua, com previsões de eclipses e desenhos dos mesmos.

Costuma-se descrever Regiomontanus como um astrônomo. Na verdade, ele era um astrônomo-astrólogo, que praticou especialmente a astrologia médica e que, graças a isso, teria salvado a vida do rei Mathias Corvinus. Ele escreveu uma obra, o Temporal, com instruções sobre o momento mais adequado para as sangrias, para purgas, para o casamento, para cortar o cabelo, para se banhar ou tomar remédios, levando em conta a posição dos astros.

Logo em seguida começaram a aparecer calendários e prognósticos com previsões astrológicas para um ou mais anos, como o Prognosticatio anni praesentis LXXVII de Jean de Laet.

As Efemérides calculadas por Regiomontanus foram reeditadas várias vezes. Em 1499, foram publicadas com um tipo de complemento, por Johann Stöffler e Iacob Pflaum, com o título: Almanach nova plurimis annis venturis inseruientia per Ioannem Stoefflerinum Iustingensem et Iacobum Pflaumen Vlmensem accuratissime supputata: et toti fere Europe dextro sydere impartita. Além de tabelas astronômicas, esta obra se constituía em uma pequena enciclopédia de conhecimentos astronômicos, com informações sobre o calendário e festas religiosas, sobre marés, sobre as fases da Lua, sobre meteorologia e outros temas associados aos céus.

Esse Almanach, que foi reeditado muitas vezes, é considerado por Joaquim de Carvalho como o ponto de partida para a criação de muitas obras populares de astrologia do século seguinte, como os Repertórios ou Reportórios dos Tempos9. No entanto, cabe mencionar que o espanhol Andrés de Li já havia publicado antes disso, em 1495, o seu Repertorio de los Tiempos, que parece ser a fonte original das obras espanholas (e, depois, portuguesas) desse gênero de literatura.

9 Joaquim de Carvalho, “O Livro ‘Contra os Juízos dos Astrólogos’ de Frei António de Beja e as suas Fontes Italianas,” in Obra Completa, vol. 2, pp. 385-403 (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1982), 385.

Atitudes em Relação à Astrologia no Século XV

Dentre os autores italianos importantes do final do século XV que escreveram sobre astrologia, devem ser destacados: Marsilio Ficino (1433-1499), Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494) e Giovanni Pontano (c. 1420-1503).

Marsilio Ficino

O movimento filosófico dos pensadores italianos do Renascimento era um retorno a Platão, ao Neo-Platonismo, ao Neo-Pitagorismo, ao Estoicismo, aos Pais da Igreja, a Agostinho e a muitos outros autores clássicos. Marsilio Ficino (1433-1499), com o patrocínio de Cosimo de Medici, foi o responsável por importantes traduções diretas do Timeu de Platão, de textos neoplatônicos (como os de Plotinus) e do Corpus Hermeticum. A atitude de Ficino era ambivalente e mudou durante sua vida, mas de um modo geral pode-se dizer que ele era contrário à astrologia judiciária e tinha grande interesse pela astrologia médica.

Marsilio Ficino tinha uma postura ambígua em relação à astrologia. Como médico e filho de médico, ele tinha um bom conhecimento sobre a astrologia médica. Em seus escritos, muitas vezes ele se inclina para o pensamento astrológico, mas alguns conceitos básicos dessa doutrina entravam em conflito com o pensamento neoplatônico adotado por Ficino, que ensinava a autonomia do espírito em relação ao mundo material.

No seu livro Theologia Platonica, Ficino admite que existem no céu 12 naturezas diferentes, associadas às constelações, que podem influir sobre o mundo inferior. O corpo pode estar subordinado a esse poderes e ao destino, mas a alma está acima de tudo isso. O corpo pode influenciar a alma, mas esta é livre.

Don Allen descreve o De Vita de Ficino como um manual escrito por um médico para outros médicos, em que são expostas ideias astrológicas úteis à profissão. Não há indicações de que ele aceitasse a astrologia judicial, ou que imaginasse que os astros podem influenciar a alma. No entanto, Allen notou nas cartas de Ficino a presença de inúmeras indicações de que suas crenças iam mais longe. Ele se preocupava muito com seu próprio horóscopo, e via uma influência das estrelas em seus próprios estudos, em seus escritos, em suas amizades, em suas falhas. Antes de escrever o De Vita ele consultou as estrelas para ver se a época era auspiciosa. Por outro lado, Ficino iniciou na década de 1470 a redação de um livro em que criticaria a astrologia judiciária. Isso mostra claramente sua ambivalência.

Giovanni Pico della Mirandola

Pico della Mirandola, contemporâneo de M. Ficino, adotou ideias mágicas trazidas da cabala hebraica, introduzindo a importância de talismãs e transcrições de letras com números que se podia empregar para controlar o fluxo dos acontecimentos e ainda tinha uma atitude contundente quanto à questão do livre arbítrio do homem. Esse pensador entendia que as estrelas forneciam luz e calor que produziam as variedades na natureza10. Depois de repreendido por teses consideradas heréticas, Pico della Mirandola se tornou um adversário ortodoxo dos processos de adivinhação do futuro. Ele escreveu o livro Disputationes adversus astrologiam, que é considerado o primeiro estudo contra a astrologia em tempos modernos, tornando-se modelo para muitos outros ataques semelhantes impressos durante o século XVI11.

10 Ele apresentou uma interpretação cabalística do universo e a relação do ser humano nele, na obra Oratio de hominis dignitate. Para Pico della Mirandola Adão estava no centro do universo, não era terrestre, celestial, mortal ou imortal, ele tinha ‘livre-arbítrio’ para escolher a esfera de sua existência.
11 Para se ter uma idéia consta que em 1486 foram publicadas em torno de novecentas teses, o que motivou a punição de Pico della Mirandola pelo papa Inocêncio VIII.

Durante séculos houve críticos da astrologia, mas os doze livros das Disputationes adversus astrologiam divinatricem publicados em 1494 constituíram o ataque mais sistemático contra ela. A base filosófica da obra é neoplatônica, e o autor contesta que o mundo material – com os céus e os astros – possa determinar o caminho do mundo espiritual. Pico alinha muitos tipos de argumentos: Os astrólogos são charlatães cujo único interesse é a riqueza; eles não concordam uns com os outros; suas previsões estão sempre erradas; possuem conhecimentos científicos medíocres; as relações mais espetaculares entre acontecimentos celestes e terrestres são estabelecidas apenas depois que os fatos acontecem; não há acordo sobre se os astrólogos devem fazer suas previsões baseados no momento do nascimento ou da concepção de uma criança; e muitos outros argumentos.

Alguns argumentos eram religiosos. Esse autor lançou mão das Escrituras, pois entendia que Deus havia dito a Adão que não limitara os seus poderes: ele dispunha dos outros objetos da criação para tomar suas próprias decisões por meio do livre-arbítrio que Deus lhe concedeu.

De acordo com Don C. Allen, estudioso da cultura do Renascimento inglês, a obra Disputationes não é bem ordenada e não possui uma ideia central, e isso pode ter ocorrido por ser uma publicação póstuma. Mas esclarece ainda, que Pico della Mirandola conseguiu formar uma enciclopédia sobre astrologia, pois procurou abordar todos os tipos de assuntos em que ela estava envolvida.

De acordo com George Minoir, a obra de Pico foi como “um golpe de espada na água”. Os argumentos não eram novos, os astrólogos ficaram indiferentes e o público preferiu continuar acreditando na astrologia.

Giovanni Pontano

Tem-se que o primeiro a realizar uma obra para defender a astrologia foi Lúcio Bellanti. Sua obra, De astrologica veritate, et en disputationes Joannis Pici adversus astrologos responsiones foi publicada em Veneza, no ano de 1502. Esse autor foi complacente na sua defesa, com relação a Pico della Mirandola, pois critica e insinua que Girolamo Savoranola, um pastor que acolheu Pico Mirandola, o havia influenciado não acreditando que aquele pensador teria publicado essa polêmica em vida.

Giovanni Pontano é um autor de atitude moderada que defende a astrologia e aceita as influências das estrelas na matéria do ser humano. Ele acredita na necessidade do horóscopo individual com a finalidade de saber quais serão as configurações planetárias e descobrir antecipadamente as boas disposições e as fraquezas. Em sua obra De Fortune relacionou a astrologia com a doutrina das virtudes.

As Críticas contra a Astrologia

A Astrologia Judicial, que procurava prever a vida de um indivíduo a partir do horóscopo de seu nascimento, era um ponto que gerava objeções entre os oponentes desse corpo de conhecimentos12.

12 Não se confundia a Astrologia com a astronomia. A maioria dos escritores entendia que a astronomia era o estudo das órbitas dos planetas e o sitius das estrelas fixas e a astrologia era uma arte que se dedicava a determinar o futuro vindo das estrelas. Vide também Roberto de Andrade Martins, “A influência de Aristóteles na obra Astrológica de Ptolomeu (Tetrabiblos)”.

Sabe-se que as acusações iam das motivações mais sinceras às que apenas atendiam interesses pessoais. Algumas das críticas referiam-se a conotação considerada nacionalista dos diferentes povos como, caldeus, mouros, árabes, judeus, gregos e latinos tinham teorias diferentes. Uma outra era o fato dos astrólogos insistirem na universalização de suas teorias. Constata-se que as críticas tornavam-se cansativas e repetiam-se indefinidamente.

Adotava-se três métodos para defender-se a astrologia. No primeiro selecionava-se um inimigo e seus argumentos para refutação. No segundo apresentava-se um ensaio geral a favor e seguia-se um manual astrológico. No terceiro o objetivo era comprovar as predições, o que era realizado por meio da exposição de horóscopos históricos.

Don Allen destacou que os proponentes de astrologia no Renascimento eram mais eruditos e investigadores mais hábeis da natureza que muitos de seus oponentes.

Percebe-se que as argumentações tanto dos que são defensores quanto dos que são oponentes da astrologia não atingem uma expressão de criatividade muito além do que já havia proposto Pico della Mirandola. A contribuição quanto aos novos acontecimentos na astronomia, da época, dá a impressão de passar longe dessas discussões.

D. C. Allen afirma que após o contato com obras de defesa e ataque à astrologia constata-se que os escritos mais inteligentes são dos astrólogos e esclarece que o motivo disso se deve ao fato de que para exercer a profissão de astrólogo no século XVI necessitava-se saber astronomia e matemática.

As Grandes Navegações e a Astrologia

O século XV é o período em que os portugueses iniciam uma série de grandes navegações oceânicas. Em 1419 e 1430 os portugueses descobriram a Ilha da Madeira e os Açores, navegando em pleno oceano, longe da costa. Nessa época eles se guiavam pela bússola e pela estrela polar. Mas aos poucos foram se dirigindo para o Sul e cruzaram o equador em 1471. A partir de então, sem poder utilizar a estrela polar, precisaram introduzir novos métodos de navegação, utilizando a medida da altura do Sol para determinar a latitude.

Como não era possível utilizar a estrela polar ao Sul do equador, Dom João II teria encarregado uma junta de matemáticos de procurarem um outro modo de determinar a latitude. Eles aconselharam o uso da medida da altura do Sol ao meio-dia, conforme um método exposto nos Libros del Saber de Astronomia do rei Alfonso X. Para isso, seria necessário conhecer o movimento do Sol, e medir sua altura através de um instrumento como o astrolábio, muito empregado pelos árabes e já descrito na obra de Alfonso X13.

13 Francisco Gomes Teixeira, História das Matemáticas em Portugal (Lisboa: Academia das Ciências, 1934), 66-67.

O método para determinação das latitudes com o astrolábio, utilizando as tabelas astronômicas de posição do Sol, foi experimentado pela primeira vez em navios portugueses por José Vizinho, médico judeu de Dom João II, que fez parte dessa junta de matemáticos, em uma viagem realizada à Guiné em 1485.14

14 Filipe Duarte Santos, “Portugal na História da Ciência,” História e Desenvolvimento da Ciência em Portugal. I Colóquio – até ao Século XX, vol. 1, 292-302 (Lisboa: Academia das Ciências, 1986), 294.

A tabela utilizada por Vizinho foi obtida a partir de cálculos de Abraham Zacuto, judeu espanhol de Salamanca.

Parece ter havido um grande número de astrônomos/astrólogos judeus na península ibérica. Abraham Zacuto teria redigido um conjunto de efemérides – seu Almanach Perpetuum – entre 1473 e 1478, embora esse trabalho só tenha sido publicado posteriormente. José Vizinho utilizou as tabelas do movimento do Sol que constavam no manuscrito de Zacuto para determinar a latitude geográfica, por meio de um astrolábio. O teste, realizado na viagem que fez à Guiné, a mando do rei, para testar o método, teve sucesso.

Em 1492, fugindo da perseguição aos judeus na Espanha, Zacuto se refugiou em Portugal, e com apoio de Vizinho tornou-se astrônomo de Dom João II. Pouco depois, José Vizinho traduziu o Almanach para o latim e o publicou em 1496, em Leiria.

Alguns autores afirmam que a obra de Zacuto era destinada a navegantes15. Na verdade, o Almanach Perpetuum de Zacuto não havia sido composto para fins náuticos. Trata-se de um manual astronômico com tabelas para uso astrológico, que se transformou em um instrumento de navegação sem que essa fosse sua finalidade original16.

15 Armando Carneiro da Silva, “Almanaques e folhinas conimbricenses,” Arquivo de Bibliografia Portuguesa 1 (1955): 13-23; 136-145; 239-252, 13.
16 Joaquim de Carvalho, “Dois Inéditos de Abraham Zacuto,” Obra Completa, vol. 2, pp. 41-113 (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1982), 49.

Sabe-se que Zacuto desempenhou o papel de astrólogo junto a Dom João II, e depois junto a Dom Manuel, que o encarregou de preparar o horóscopo da viagem de Vasco da Gama à Índia. Apesar de seus serviços, Zacuto precisou fugir de Portugal pouco tempo depois, quando Dom Manuel deixou de dar apoio aos judeus, expulsando do reino todos os que não abandonassem sua religião.

Almanach Perpetuum

Desde essa época, a astronomia náutica e a astrologia estiveram fortemente relacionadas. Aliás, conta-se que Colombo utilizou uma previsão de um eclipse lunar do dia 29 de fevereiro de 1504, constante do Almanach Perpetuum, para impressionar e influenciar os nativos da Jamaica, em uma de suas viagens.

Os navegantes do período das grandes navegações utilizavam as estrelas tanto para se orientar no mar quanto para fazer previsões astrológicas. As anotações de Colombo mostram que ele acreditava na astrologia. Fernão de Magalhães enviou um navio para reconhecer uma região, e quando o navio demorou a retornar, pediu ao astrólogo Andrés de San Martin que fizesse um prognóstico, pelo horário de partida do navio. O astrólogo respondeu que o navio havia retornado à Espanha, e que o capitão havia sido feito prisioneiro.

Além do Almanach Perpetuum de Zacuto, outras obras de natureza astrológica tiveram utilidade nas navegações, como o Reportório dos Tempos publicado por Valentim Fernandes em 1518. Essa obra seria, segundo Gomes Teixeira, uma “tradução em português de um livro com o mesmo título escrito em castelhano por André Li de Saragoça, mas aumentada, melhorada e adaptada pelo tradutor às conveniências de nosso país”. O livro continha, além de um conteúdo astrológico, diversas informações sobre as festas religiosas e o modo de determinar suas datas a partir do estudo das fases da Lua, instruções aos agricultores sobre as épocas mais adequadas para realizar os vários tipos de trabalhos do campo (semear, colher, podar, etc.), informações sobre as divisões do tempo e sua história, e regimentos que os pilotos precisavam conhecer para navegar. O Reportório dos Tempos publicado por Valentim Fernandes contém tabelas astronômicas (eclipses, declinação do Sol) que teriam sido preparadas por Gaspar Nicolas a partir do Almanach Perpetuum de Abraham Zacuto.

Os dias e momentos exatos dos eclipses da Lua constavam das efemérides e de outras obras astrológicas do final do século XV e início do século XVI, como o Reportorio de los Tiempos de André de Li e sua tradução por Valentim Fernandes. Essas informações passaram a ser utilizadas pelos navegantes para tentar fazer comparações sobre horários em locais distantes, permitindo assim avaliar a latitude do ponto onde estavam.

Rejeição da Astrologia pelos Historiadores Portugueses

Apesar de sua importância histórica – inclusive quando avaliada apenas sob o ponto de vista de aplicações náuticas – a astrologia portuguesa tem sido negligenciada pelos historiadores. Nota-se nos estudos sobre história da ciência portuguesa uma certa vergonha em aceitar no glorioso passado de Portugal esse conhecimento que foi posteriormente rejeitado. O ponto de vista é quase sempre anacrônico.

Francisco Gomes Teixeira, por exemplo, no seu livro História das Matemáticas em Portugal, inclui a contragosto menções à astrologia, como esta:

Escreveu ainda Ptolomeu, sob o título de Sintaxe astrológica, um código de juízos para uso dos astrólogos, tirados dos aspectos do céu. Mencionamos aqui este livro, a-pesar-de carecer de bases cientificas, porque a Astrologia influiu consideravelmente no progresso da Astronomia, dando aos astrônomos os meios pecuniários de que careciam para viver e trabalhar em assuntos sérios de ciência.

Em outro ponto do mesmo livro, Gomes Teixeira louva a astronomia náutica como a superação da astrologia:

As grandes viagens do século XV e XVI tiveram sobre as ciências influência notável. A astronomia, que na Idade Média se aplicava só à indústria astrológica, teve na Náutica uma aplicação sã e digna.

Uma atitude negativa em relação à astrologia é notada em outros historiadores da ciência portuguesa. Segundo Joaquim Bensaude, a partir do livro Leal Conselheiro escrito por Dom Duarte entre 1428 e 1438, nota-se que ele não acreditava em previsões astrológicas, “o que denota um espírito científico pouco comum no início do século XV”. Bensaude faz o elogio dos portugueses que se afastaram da astrologia:

Nessa época (1540) encontramos em Portugal homens como Barros e Pedro Nunes que já se haviam libertado dos preconceitos astrológicos. Nos escritos de Nunes não se encontra nenhum traço dela, e Barros nos mostra seu ceticismo com relação a ela ao tratar da astrologia de Ruy Faleiro e das consultas que Magalhães fez a Andrés de S. Martin no oceano Pacífico. Em 1523, Fr. A. de Beja imprimiu em Lisboa um tratado contra os juízos dos astrólogos.

Ao descrever o Tratado de la Esfera y del Arte de Marear de Francisco Faleiro, Francisco Gomes Teixeira comenta:

Nos quatro capítulos da Primeira Parte são expostas fantasias de Física peripatética, admitidas naqueles tempos, e quimeras astrológicas em que Faleiro parece acreditar; nos outros capítulos são descritas a Esfera celeste e os seus movimentos de um modo elementar e simples, apropriado aos pilotos.

E, mais adiante, Gomes Teixeira completa:

Surpreende ver nesta obra de ciência duas páginas consagradas à astrologia, onde se fala da influência de Saturno sobre os melancólicos, de Venus sobre os fleugmáticos e de outras quimeras bebidas na Sintaxe astrológica de Ptolomeu.

É que, no tempo em que foi escrita, estava muito enraizada no espírito do povo inculto e mesmo de muitas pessoas cultas a crença na influência dos astros sôbre o que se passa na terra, quer no domínio físico, quer no domínio animal e vegetal. Não há que estranhar; tinham sido sumos sacerdotes de tais crenças Aristóteles e Ptolomeu.

Gomes Teixeira descreve a obra de André do Avelar ocultando ao máximo seus aspectos astrológicos ou, ao mencioná-los, descrevê-los como um pequeno defeito em uma obra que, em outros aspectos, seria louvável:

André do Avelar escreveu, sob o título de Cronografia ou Reportório dos tempos (Coimbra, 1585) um livro consagrado à descrição da esfera celeste, à cosmografia e à exposição de todas as regras para o cômputo dos tempos e para os usos da náutica.

(…) Analisando estas obras, vê-se que não há nelas pontos de vista originais, que tenhamos de assinalar. São obras escritas em gabinetes de estudo por autores que nem tinham o espírito filosófico de Pedro Nunes, nem a finura de senso prático que possuíam os primitivos cosmógrafos lusitanos. Além disso, em diversas passagens de alguns destes escritos, as doutrinas científicas vêm misturadas em amálgama incongruente com textos do Velho Testamento, com fantasias de física peripatética e com abundantes quimeras astrológicas, que as deformam e desfeiam.

Nós pensamos que, de todos os Reportórios dos tempos que se publicaram em Portugal nos século XVI e XVII, só merecem figurar na história da matemática em Portugal o de Valentim Fernandes, que foi o primeiro, a fonte dos outros, e o de André do Avelar. Abstraindo do que nele há de metafísico e astrológico, fica um livro erudito, rico em fatos interessantes e instrutivos, e sabiamente organizado.

Quem lê tal tipo de descrição não poderia imaginar que o objetivo central da obra de André do Avelar era astrológico.

É curioso encontrar o mesmo tipo de atitude em Joaquim de Carvalho, que se dá ao trabalho de resgatar dois manuscritos astrológicos de Abraham Zacuto, mas comenta:

Só a erudição ou a ilustração filosófica do espírito desenterrariam hoje as concepções puramente astrológicas deste Tratado, onde não seria difícil encontrar o eco de Arnaldo de Vilanova. Dos desvarios da razão humana nenhuns despertam tão compassiva ironia como estas quiméricas superstições, que apenas guardam o valor pragmático de brandamente aconselharem uma discreta humildade intelectual17.

17 Carvalho, “Dois Inéditos de Abraham Zacuto”.

Segundo Joaquim de Carvalho, o século XVI teria servido para preparar o surgimento da ciência moderna, “despertando o espírito crítico (…) e, sobretudo, expurgando o saber medieval de erros e superstições”18.

18 Joaquim de Carvalho, “Influência dos Descobrimentos e da Colonização na Morfologia da Ciência Portuguesa do Século XVI,” Obra Completa, vol. 2, pp. 355-372 (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1982), 358.

Eliminar erros equivale frequentemente a rasgar o caminho da descoberta da verdade, e não era porventura missão instante da modernidade despojar o saber das crendices arábigas, tão vivazes ainda no princípio do século XVI, para o regenerar na clareza harmoniosa, embora nem sempre exata, das criações helénicas?

No que respeita, por exemplo, à astrologia, de tão fundas raízes, atente-se no apelo de bom-senso lançado por Frei António de Beja no libelo ético-religioso, que não científico nem filosófico, do Contra os juyzos dos astrologos (lisboa, 1523), na troça salutar de Gil Vicente, cujas desenvoltas risadas ajudaram a desatar imaginários liames da credulidade na influição astral, na lufada de ar limpo que emanara dos escritos e do ensino de Henrique Cuelhar e de Tomás Rodrigues da Veiga, desprendidos da tradição arábiga mas ligados a Hipócrates e Galeno, e compreender-se-á melhor a problematicidade que incitou Pedro Nunes assim com ao conexão que no seu espírito se estabeleceu entre a erudição clássica, inseparável do Humanismo, e a exatidão inerente às explicações de feição matemática.

J. Pereira Osório, ao descrever a história da astronomia em Portugal, procura ocultar ou minimizar o papel da astrologia:

Entre os astrónomos e cosmógrafos contemporâneos de Pedro Nunes, destacam-se ainda Frei Nicolau Coelho, que o substituiu algumas vezes na regência da sua cadeira, André do Avelar, que lhe sucedeu em 1592, no cargo de professor da Universidade de Coimbra e Manuel de Figueiredo, que lhe sucedeu no cargo de cosmógrafo do reino.

Frei Nicolau Coelho publicou o livro Cronologia dos tempos (Coimbra, 1554), dedicado ao cômputo dos tempos.

André do Avelar, a que já fizemos referência, escreveu, sob o título Cronografia ou Reportório dos Tempos um livro, publicado pela primeira vez em 1585, e consagrado à descrição da esfera celeste, à cosmografia e à exposição de todas as regras para o cômputo dos tempos e para os usos da náutica. Esta obra teve uma grande aceitação, como o comprova as suas sucessivas edições.

Manuel de Figueiredo escreveu um Reportorio dos tempos, semelhante ao de André do Avelar, mas menos interessante e mais imperfeito19.

19 J. Pereira Osório, “Sobre a História e Desenvolvimento da Astronomia em Portugal,” História e Desenvolvimento da Ciência em Portugal. I Colóquio – até ao Século XX, vol. 1, 111-142 (Lisboa: Academia das Ciências, 1986), 120-121.

Nenhuma menção ao conteúdo astrológico da obra de Avelar.

Nessas condições, não espanta que nunca se tenha escrito a história da astrologia portuguesa. As informações que se pode encontrar são poucas, espalhadas em escritos com outras finalidades e em geral explicitamente críticos do pensamento astrológico renascentista.

A Astrologia em torno de 1500

Apesar de refinamentos de detalhe, a astrologia que era conhecida no século XVI ainda era muito semelhante à que havia sido exposta por Marcus Manilius no século I d.C. e por Ptolomeu no seu Tetrabiblos, no século II d.C. Nessa época os astrólogos europeus começaram a popularizar em vernáculo suas doutrinas, mas o conteúdo apresentado era tradicional20.

20 Keith Thomas, Religion and the Decline of Magic (New York: Oxford University Press, 1999), 284.

Em torno de 1500 muitos conhecimentos astrológicos faziam parte da cultura das pessoas instruídas. O mundo sublunar era explicado pela teoria aristotélica dos quatro elementos (terra, fogo, ar, água) e das quatro qualidades (quente, frio, úmido, seco). O funcionamento do organismo humano era explicado pelos quatro humores (bílis amarela, bílis negra, sangue, fleugma), que por sua vez produziam os quatro temperamentos humanos. Os astros, embora não fossem constituídos pelos quatro elementos e sim por uma quinta essência (o éter), podiam atuar sobre as qualidades e influenciar os corpos inferiores. A astrologia era uma parte de uma visão de mundo ampla, integrada.

A astrologia era necessária para a compreensão da fisiologia e, portanto, era uma das bases da medicina. Supunha-se que as estrelas influenciavam as plantas e minerais, e por isso a astrologia era também parte integrante do estudo da agricultura e da metalurgia. As marés e o clima também seriam influenciados pelos astros, e por isso os navegantes precisavam igualmente conhecer astrologia. Durante o século XVI ninguém negava a influência dos astros sobre o clima, ou colocava em discussão a relevância da astrologia para a medicina ou a agricultura.

Por esses aspectos e muitos outros, a astrologia era uma parte essencial da estrutura intelectual na qual o homem renascentista era educado. Tão forte era essa estrutura, que mesmo quando o pensamento científico moderno começa a substituir a ciência antiga, a astrologia se mantém viva, como um sistema isolado de crenças.

A astrologia judiciária, que fazia previsões, tinha várias modalidades ou ramos. Havia previsões gerais sobre o clima, colheitas, mortalidade, epidemias, política e guerras, baseadas nos movimentos do Sol, da Lua e dos planetas, levando em conta eclipses e conjunções. Elas indicavam o destino do mundo material e da sociedade como um todo, mas não de indivíduos particulares. Em segundo lugar havia as natividades, que eram destinadas a prever as características e os acontecimentos da vida de uma pessoa a partir do estudo da configuração dos astros no momento do seu nascimento (por meio de um horóscopo). Em certos casos, quando não havia o registro do momento exato do nascimento, o astrólogo poderia tentar reconstruir esse instante, pelo conhecimento da vida da pessoa. Um terceiro tipo era constituído pelas escolhas ou eleições, destinadas a escolher o melhor momento para realizar certa ação, pela comparação entre o horóscopo de uma pessoa e a situação futura dos céus. Era possível assim identificar se certa ação (guerra, viagem, casamento, coroação de um rei), iniciada em certo momento, teria consequências positivas ou negativas. Além das eleições individuais, havia também as eleições mais genéricas, baseadas em elementos não-individuais – como o momento para plantar – ou coletivos – o momento para realizar sangrias, que dependia do temperamento, mas não do horóscopo individual. Havia também as questões horárias, que procuravam responder a qualquer pergunta colocada ao astrólogo com base na configuração celeste no
exato momento em que a questão era formulada21.

21 Essa modalidade astrológica não existia na Antigüidade, tendo sido desenvolvida pelos árabes.

A astrologia médica tinha muitas modalidades específicas. Incluía o estudo do temperamento e das tendências médicas do indivíduo pelo seu horóscopo, a escolha dos momentos adequados para ministrar certos tratamentos, a realização de prognósticos a partir da análise de certos dias críticos, a análise da urina do doente levando em conta o momento em que o paciente urinou ou o momento em que a urina foi levada ao médico, e análise da doença pela configuração celeste no momento em que a pessoa adoeceu (decumbitura) – um tipo de horóscopo da enfermidade.

Consultar um astrólogo para qualquer dessas finalidades estava, evidentemente, fora do alcance do povo. Apenas pessoas ricas e poderosas podiam consultar um astrólogo para obter previsões sobre temas de seu interesse. A maioria das pessoas tinha pouco contato com a astrologia, até o século XV.

A Popularização da Astrologia no Século XVI

Uma mudança importante ocorreu no final do século XV: a astrologia, que estava confinada à corte desde a Idade Média, tornou-se popular, espalhando-se pelo povo. Em grande parte, isso se deveu à invenção da imprensa, que tornou acessível a um público mais amplo os conhecimentos que antes ficavam restritos àqueles que podiam pagar os serviços de um astrólogo particular.

Em alguns lugares, como a Alemanha, a Itália e a Inglaterra, a forma de popularização da astrologia foi a publicação de almanaques.

As cidades alemãs presenciaram um grande desenvolvimento na indústria tipográfica por volta do período de 1470 a 1520 e tal fato envolve a publicação de folhetos de gênero mais barato e comum, portanto muito popular, como os calendários astrológicos e prognósticos anuais22. As publicações astrológicas para um mercado urbano leigo foram o produto principal dos negócios de impressão desde o início.

22 Robin B. Barnes, “Astrology and Popular Print in Germany, c. 1470 –1520”, Robin. B. Barnes (Kirksville: Thomas Jefferson University Press, 1998), 17-26.

Robin Barnes associa algumas estimativas para se ter noção da importância que essas publicações populares representavam para a indústria da impressão.

Ele afirmou:

Se adicionarmos a essa estimativa o número de prognósticos anuais mais conhecidos e impressos na Alemanha neste período alcançaremos um total de quase seiscentos trabalhos. Visto que esses trabalhos efêmeros provavelmente foram perdidos, uma estimativa muito conservadora do número real publicado poderia adicionar um terço a esse número o que elevaria a um total especulativo de pelo menos novecentos calendários. (…) sendo conservadores e considerando um número de quinhentas cópias por edição, podemos concluir que (…) para o período anterior a 1520 chegava-se muito próximo de quase um milhão de cópias de tais trabalhos em circulação nas cidades alemãs. Não estão inclusas as várias edições de calendários ou prognósticos para mais de um ano. (…) são números surpreendentes especialmente quando consideramos que as taxas de alfabetização ainda eram extremamente baixas, mesmo nas grandes cidades.

Outro fato importante é notar que na Alemanha de antes do ano de 1501 mais de 80% dos livros de qualquer tipo de impressos estava em latim. Já os estudos dos primeiros “folhetos” populares do século XVI demonstraram que a partir de 1520 os escritos em língua nacional começaram a superar os escritos em latim.

Eine Literarische Astrologie

Essas obras tinham uma parte astronômica, indicando os acontecimentos importantes do próximo ano: conjunções, eclipses, fases da Lua e festas religiosas móveis. Continham um calendário mostrando os dias da semana de todos os meses e as festas religiosas fixas (por exemplo, os santos associados a cada dia). E a tudo isso se adicionava o prognóstico, ou previsão astrológica dos acontecimentos notáveis previstos para o ano seguinte: previsões gerais, nacionais ou regionais sobre clima, política, colheitas, doenças, etc. Além desses elementos, todos eles específicos de cada ano e que precisavam ser atualizados constantemente, os almanaques podiam conter informações variadas – distâncias entre as cidades, épocas de realização de grandes feiras, cronologia de acontecimentos notáveis desde a Criação, receitas médicas, indicações dos momentos adequados para fazer sangrias, conselhos aos agricultores, etc. Os almanaques mais sofisticados incluíam tabelas com efemérides – indicação das posições de todos os astros em cada dia do ano – permitindo assim traçar horóscopos e fazer previsões detalhadas.

Ao contrário dos tratados astrológicos (que eram publicados em latim), essas obras eram escritas em vernáculo e, portanto, eram acessíveis a uma população ampla, não erudita. Os livros eram pequenos e finos, podiam ser carregados de um lado para o outro e consultados em qualquer momento. Muitas pessoas carregavam seus almanaques consigo constantemente – eles foram verdadeiros vade-mecum.

Como os calendários, os prognósticos eram frequentemente calculados para cidades específicas. Às vezes, os prognósticos anuais eram incluídos no calendário impresso apenas de um lado, porém o calendário direcionava o leitor mais frequentemente para os prognósticos complementares. Tinham como características mencionar as fontes autorizadas gregas e árabes de Ptolomeu, Aristóteles, Albumasar e Al Kindi, recorrendo aos novos dados astronômicos publicados. Continham, como folhetos, de quatro a dezesseis páginas, com um formato básico, flexível, contendo três partes principais: prefácio, previsões sobre vários aspectos da vida cotidiana e para várias classes sociais e grupos, além de previsões de tempo mais ou menos detalhada para o próximo ano.

A partir da segunda metade do século XVI o calendário e os prognósticos começaram a ser publicados juntos regularmente, formando, assim, um trabalho acessível de informação cronológica e orientação prática que associamos ao termo “almanaque”23.

23 Na década de 1470, os tipógrafos de muitas cidades alemãs consideravam os guias astrológicos anuais como um modo seguro e garantido nos negócios. Um exemplo disso é mencionado por Robin Barnes sobre Anton Korberger de Nuremberg que conseguiu estabelecer parcialmente sua prensa com a impressão de tais trabalhos e assim pode imprimir vários escritos humanísticos que era seu objetivo principal.

No início do século XVI os almanaques vendidos na Inglaterra eram estrangeiros. Durante aproximadamente quarenta anos do século dezesseis, os prognosticadores estrangeiros mais conhecidos eram Thibault, Parron e os Laet. Os Laet que fundaram uma dinastia que produziu pelo menos a metade dos almanaques publicados na Inglaterra entre 1492 e 1550.24

24 Interessante notar que todos eles se apresentavam como doutores em física e astronomia. Ao contrário das práticas editoriais do continente, favoráveis à publicação de prognósticos e almanaques em formato grande, as traduções inglesas dos almanaques dos Laet geralmente eram publicadas em formato menor, de um quarto ou um oitavo de página. Geralmente a página inicial ou página título desses livros era normalmente seguida pela descrição de eclipses futuros, prognósticos sazonais indicando as enchentes e as secas, previsões do tempo e cada fase lunar e até anúncio de guerras e pragas. Em suas seções finais geralmente efetuavam previsões para os líderes ou governantes, para as nações e as principais cidades.

O primeiro prognóstico inglês conhecida data de 1545. Logo as produções locais se multiplicaram, estimando-se que até 1600 foram produzidos 600 almanaques diferentes no país. No século seguinte o número parece ter chegado a cerca de 2.000, produzidos por cerca de 200 autores diferentes. No pico de popularidade desse gênero de literatura, eram vendidos centenas de milhares de exemplares por ano, ultrapassando em muito a venda de bíblias.

Os almanaques eram baratos, e como se desatualizavam a cada ano, eram renovados constantemente. Alguns eram específicos, destinados a cidades ou regiões particulares. Outros eram voltados para agricultores, ou para navegantes.

Além dos almanaques válidos apenas por um ou poucos anos, havia obras como o Prognostication for ever, de Leonard Digges, publicado pela primeira vez em 1555 e reeditado numerosas vezes. Essas obras não continham previsões para os anos seguintes, mas sim informações e regras gerais e tabelas válidas para várias décadas.

Na Itália, a publicação de prognósticos anuais começou muito antes do que na península ibérica. Durante todo o século XVI houve dezenas de publicações desse tipo, naquele país. Na Espanha circulavam principalmente os almanaques italianos, mas houve uma obra publicada em 1509 ou 1510, mas que parece ter constituído uma exceção:

Juan Alvarez. Vaticinio para el año de nuestro redenptor de mill y queinientos y diez dirigido al muy magnifico señor el conde de Oropesa mi señor. Suspeita-se que esta obra tenha sido publicada em Toledo, por um tipógrafo sucessor de Pedro Hagenbach, em 1509.

Esses prognósticos indicavam as variações do clima, época das colheitas, doenças que serão mais comuns para cada faixa de idade, guerras, acontecimentos políticos mais importantes – enfim, tudo o que podia interessar a população em geral. Apresentavam os fenômenos astronômicos mais importantes do ano (eclipses e conjunções), informavam as festas religiosas, indicavam as épocas mais propícias para sangrias ou para cortar o cabelo.

Um papel importante era atribuído aos efeitos da Lua sobre o clima, os animais, plantas e sobre os humores do corpo humano. Assim, as obras astrológicas mais populares indicavam as fases da Lua de cada mês do ano seguinte, e informavam que momentos eram propícios ou inadequados para diversas ações, levando em conta apenas (ou principalmente) as fases da Lua, sendo conhecidas popularmente como Lunários. A Lua crescente era considerada propícia, por exemplo, para casamentos e para mudar-se para uma nova residência. O surgimento da Lua nova era o mais adequado para vestir roupas novas ou iniciar novas atividades. Alguns manuais populares especificavam datas para iniciar viagens, comprar, vender, começar estudos.

Esse tipo de literatura se populariza fortemente na Itália, depois na Alemanha, na França e na Inglaterra. Surgem críticas a esses prognósticos, tanto por parte de opositores da astrologia quanto dos próprios astrólogos. Este últimos consideravam que essas obras populares iriam produzir o descrédito de sua arte.

É de conhecimento que a oposição às pretensões da escola dos astrólogos judiciários continuou por parte dos homens de letra ingleses, com firmeza devido ao farto material documentado em almanaques e prognósticos que se encontravam amontoadas nas estantes dos livreiros. Os astrólogos mais sérios entendiam ser necessário fazer frente às tolices e os embustes que continham esses materiais. Como não se baseavam em análises individuais, essas regras eram consideradas sem fundamento.

Os escritores da época tinham dois pontos de vista sobre esses almanaques e previsões: alguns entendiam que serviam como fonte de zombaria, para outros tratava-se de fonte duvidosa de fé e de conhecimento para inúmeros ingleses simplórios e tolos. Os homens de letras não atacam o almanaque e os prognósticos – apenas usam-nos como assunto para diversão. Foram escritas muitas paródias desses almanaques, como a famosa obra de Rabelais, Pantagrueline prognostication certaine, véritable et infaillible pour l’an perpétuel, nouvellement composée au proffict et advisement des gens estourdis et musars de nature par maistre Alcofribas  (1533).

Os reis também começaram a se preocupar com os prognósticos, pois eles poderiam ser utilizados para produzir revoltas políticas. Previsões específicas sobre os reis também podiam ser perigosas, enfraquecendo-os. Em 1581, o Parlamento inglês votou uma lei proibindo a elaboração de qualquer horóscopo relativo à rainha.

Já durante o século XVI começou a surgir um ceticismo popular contra a astrologia – pelo menos contra a sua forma mais popular, representada pelos almanaques. Somente no século XVII, no entanto, a astrologia judiciária começou realmente a ser abandonada e a perder seu status entre as pessoas poderosas e cultas.

A Astrologia no Século XVI

No início do século XVI a astrologia continuava forte, nas cortes. São conhecidos os nomes dos astrólogos de Catarina de Médice (Cosimo Ruggieri), Henry VII (Guillaume Parron), Henry VIII (John Robins) e outros.

O astrólogo Luca Gaurico previu que Alessandro Farnese se tornaria papa; e quando ele, de fato, se tornou Paulo III, chamou Gaurico a Roma, deu-lhe um título de nobreza e posteriormente o transformou em bispo de Giffoni. Em 1493, Gaurico anunciou que Giovanni de Medici se tornaria papa dentro de 20 anos, e isso de fato aconteceu em 1513, quando ele se tornou Leão X.

Durante o século XVI, de acordo com Keith Thomas, não houve desenvolvimento da astrologia na Inglaterra. Os trabalhos que circulavam eram provenientes de outros países. Mesmo em momentos de grande importância, como o que precedeu uma grande conjunção de planetas no signo de Peixes em 1524, levando à previsão de um dilúvio, não parecem ter surgido contribuições inglesas. Essa ausência de trabalhos astrológicos no país contrasta com os períodos anterior e posterior (a partir do final do século XVI), quando a astrologia inglesa floresceu. Thomas assim interpretou essa decadência temporária da astrologia na Inglaterra: “A falta de escritos astrológicos ingleses durante este período refletia o torpor geral da ciência inglesa”.

Apesar disso, a prática astrológica estava presente na Inglaterra. “Tanto Henrique VII quando aqueles que tramavam contra ele mantinham relações com o astrólogo William Parron”. Henrique VIII teve dois astrólogos importantes, Nicholas Kratzer e John Robins, e impediu que seus bispos censurassem a astrologia. Alguns religiosos também se dedicavam a essa arte. O cardeal Wolsey analisou o horóscopo de Henrique VIII para saber como lidar com o soberano e escolheu o dia de partida de sua viagem à França em 1527 de modo a coincidir com um momento propício.

A astrologia triunfou nas cortes, e também entre os astrônomos, médicos, filósofos e outras pessoas cultas. Cardano e Campanella, por exemplo, acreditavam na astrologia. É uma época onde muitos eruditos se interessam pela “arte”, mas também existiam muitos charlatães. Tem-se que a descrença na hipótese essencial dos astrólogos, a influência das estrelas no ser humano, era exceção, não regra.

Durante o século XVI houve muitos ataques à astrologia, e igual número de tratados em sua defesa. Nos dois casos, havia pouca originalidade. Os argumentos de Pico della Mirandola era repetidos sempre, e os métodos básicos da defesa eram também monótonos. Alguns astrólogos tomavam uma obra de um crítico e a analisavam destrutivamente, ponto por ponto. Outros apresentavam uma série de casos históricos de sucesso, para mostrar que as estrelas permitem fazer previsões corretas. Outra atitude era a de escrever uma defesa genérica da astrologia, e logo depois apresentar um manual astrológico.

A polêmica contra as previsões em astrologia judicial é constante. Nas discussões, a justificativa de que se utilizavam era mais de fundo religioso e terminava sempre de alguma forma incluindo o livre-arbítrio – um assunto que será discutido mais adiante.

Mas as críticas de alguns ingleses raramente eram originais como os continentais25. As acusações à Astrologia são semelhantes aos métodos dos continentais: a inconstância dos acertos nas previsões, medo causado por profecias coletivas, como as produzidas por Michel de Nostradamus. Há questionamentos quanto a doutrina da natividade, partindo da ideia de que haveria horário certo para nascerem as crianças que seriam “todas” reis ou ladrões? A qualificação dos dias como sendo bons ou ruins é também algo criticado.

25 O autor refere-se aos autores como ingleses e continentais. Continentais são os que vivem no Continente Europeu e não na Grã-Bretanha. As discussões nesses espaços se desenvolvem de forma diferenciada. Para Don Cameron Allen os astrólogos do continente eram mais eruditos e com uma exceção compunham as polêmicas no vernáculo. Entretanto, os ingleses se posicionavam de forma mais aberta quanto a compartilhar se conhecimento com a massa.

São realizadas críticas ainda ligadas a anatomia astrológica, poder dos signos, doutrina das eleições, condições sobre a natureza das casas astrológicas, dignidade dos planetas, teoria da combustão, que seriam consideradas estereótipos nas discussões, mas para o inglês comum, que não tinha acesso às polêmicas continentais isso significava algo de novo a respeito da astrologia.

Registravam-se muitos problemas e críticas voltadas para as questões de cálculos das conjunções para previsões, destino de gêmeos, atitudes de reis e filósofos antigos. Algumas refutações dos defensores são desenvolvidas a partir da ideia de contrapor a cada capítulo do oponente um capítulo, contendo, inclusive, similar número de páginas26.

26 Isso ocorreu com a obra de John Chamber – A Treatise against Judicial Astrologie, publicado em 1601. Sir Christopher Heydon, um membro do Parlamento, realizou uma defesa por meio de sua obra A Defence to Judicial Astrologie, in Answer to a Treatise lately published by M. John Chamber. Entretanto, alerta D. C. Allen que a obra de J. Chamber levou vantagem pois está com uma linguagem mais voltada para o público, enquanto que a obra de C. Heydon impressiona pelos argumentos mas se tornou uma obra densa e aproximadamente quatro vezes maior que a do seu oponente.

Um dos mais importantes defensores da astrologia no século XVI foi Phillip Melanchthon, uma figura chave da Reforma protestante. No prefácio a uma edição da Esfera de Sacrobosco, em 1531, ele defendeu a astrologia contra seus caluniadores. Durante toda sua vida Melanchthon parece ter mantido a mesma crença. Ele não tinha dúvidas sobre a influência dos astros no clima e no temperamento humano, chegando a afirmar que um indivíduo nascido durante uma conjunção da Lua e do Sol seria provavelmente um lunático.

Johannes de Sacro Bosco

No final do século XVI, o jesuíta português Benito Pereira (Pererius) publicou um livro atacando a astrologia: De magia, de observatione somniorum, et de divinatione astrologica (1593). Pereira utilizou a Bíblia, os pais da Igreja e os concílios contra a astrologia, além de empregar diversos argumentos científicos e filosóficos, chegando a insinuar que algumas vezes os astrólogos podem ter sucesso em suas previsões por terem um pacto com o demônio.

A astrologia médica era uma corrente muito forte, durante o século XVI. Nessa época, ninguém duvidava de sua validade e importância – embora no século seguinte esse ramo da astrologia tenha entrado em decadência, na Inglaterra.

Alguns médicos chegaram a se orientar exclusivamente pela astrologia, como Simon Forman, que em 1593 informou que podia reconhecer as doenças baseando-se apenas nas efemérides. Forman também fazia análises astrológicas para prever se seus pacientes iriam pagar seus serviços ou não. Outro médico da época, Richard Napier, tratava as doenças de seus pacientes como meras questões horárias. No entanto, atitudes tão radicais como essas eram raras.

Na Inglaterra (como em outros países) não havia uma legislação que regulamentasse ou proibisse a prática da astrologia. Em certos momentos, leis contra a feitiçaria ou contra cartomantes podiam ser interpretadas como abrangendo também a astrologia, mas isso dependia da interpretação. Houve perseguições e alguns astrólogos foram presos e julgados, mas isso era excepcional. No final do século XVI o Royal College of Physicians de Londres proibiu a prática da medicina astrológica por pessoas não autorizadas, mas isso não representou uma crítica à astrologia, e sim sua valorização como uma especialidade médica vedada aos leigos.

A Uuniversidade e a Cultura no Portugal Quinhentista

O Renascimento europeu tem duas componentes opostas: o classicismo, que representa uma volta ao passado, o ideal de uma formação literária adquirida mediante a leitura, o comentário e a imitação dos grandes autores da Antiguidade; e os descobrimentos marítimos, que se projetam para o novo, o inaudito, o futuro, um mundo a ser conhecido pela experiência27. No entanto, esses dois movimentos tiveram pouca influência mútua. Eram mundos separados, até no idioma utilizado. A língua das escolas era o latim. O humanismo ligado aos descobrimentos adotou a língua vulgar.

27 António Rosa Mendes, “A Vida Cultural”, José Mattoso (ed.), História de Portugal, vol. 3, “No Alvorecer da Modernidade (1480-1620), ed. por Joaquim Romero Magalhães, 375-421 (Lisboa: Editorial Estampa, 1993), 375.

O humanismo proveniente do estudo dos clássicos surge primeiramente na Itália, e se espalha rapidamente. No entanto, demorou a penetrar na península ibérica, que conservou por mais tempo uma mentalidade medieval. A imprensa, que pode ser considerada um importante instrumento de transformação cultural no Renascimento europeu, serviu pelo contrário de instrumento de manutenção da antiga situação cultural, em Portugal.

Em Portugal, durante a Idade Média, o sacerdote era o representante do saber. A teologia e a filosofia estavam integradas e o pensador diante da primeira obscureceu-se. A filosofia tinha por missão mostrar que o mundo era o cosmos, um conjunto ordenado e coerente de conformidade com um plano divino transcendente. Ocorre a importação e assimilação de diversas correntes do pensamento escolástico28. Predomina nesse contexto não a explicação da realidade, mas o dever-ser, de harmonia com as verdades reveladas.

28 Joaquim de Carvalho, Estudos sobre a Cultura Portuguesa do Século XVI (Coimbra: Universidade de Coimbra, 1947), vol. 1, 1-3.

Há um predomínio pelo combate aos erros e vícios que desviam o espírito no caminho da perfeição e a aprendizagem que se espalha é baseada na contraposição a exemplo de apresentar-se ao mal e ao erro ressalta-se a virtude o bem e a verdade. Nesse país o pensamento e sua formação lógica partem de que a arte de refutar era prioritária às artes de inventar e demonstrar. O estímulo principal e constante no pensamento medieval português é o teocêntrico.

No início do século XVI, a universidade portuguesa ainda seguia o currículo medieval das artes liberais, às quais se superpunha a teologia como rainha de todas as ciências. Até 1520, segundo António Rosa Mendes, ainda existia em Portugal uma desvalorização das letras, sem assimilação do humanismo italiano.

No mundo político, comercial, técnico e científico, as grandes navegações trouxeram novidades e um grande desenvolvimento, mas essa originalidade prática não foi assimilada pela universidade. Os homens de letras, com uma mentalidade livresca, não tinham muito interesse por esse mundo que era percorrido por homens brutos e iletrados. O mundo cultural acadêmico e o mundo aberto pelas explorações se desenvolveram à margem um do outro.

A única universidade portuguesa funcionava nesta época em Lisboa. Seus estatutos, de 1431, foram reformados por Dom Manuel I em 1500-1504, sendo criadas novas cadeiras, como a de Astronomia.

Os estatutos manuelinos mudaram a universidade portuguesa e introduziram o estudo da astronomia. Porém, António Rosa Mendes lamenta que essa novidade não tenha tido relação com o desenvolvimento náutico, e sim com a tradição astrológica da época. Como sinal de atraso cultural em Portugal no início do século XVI, António Rosa Mendes descreve que, em 1504, Dom Pedro Meneses ainda estava preso ao pensamento astrológico:

Nem o fidalgo (Pedro Meneses) nem o seu mentor italiano (Cataldo Sículo) se deixaram, todavia, impressionar pelos avanços técnico-científicos propiciados pela empresa dos mares: ignoram crassamente a astronomia náutica, que há bem pouco guiara as viagens de Gama e de Cabral, e ficam-se, à maneira medieval, pelo elogio da astrologia, que “previne com êxito seguro o futuro próspero ou infeliz, providência esta com que se podem facilmente evitar os males patentes, e esperar os bens com mais segurança”.

Não deve surpreender a indiferença, atendendo a que a astrologia judiciária continuaria a ter aceitação generalizada nas camadas cultas do tempo, apesar da impugnação que, numa perspectiva apologética, dela fez frei António de Beja no seu Contra os juízos dos astrólogos, de 1523. Ainda em 1541, no prefácio do De crepusculis, o sábio Pedro Nunes se via na necessidade de exarar que a obra tratava da “teórica da Astronomia, isto é, da ciência que se ocupa do curso dos astros e da universal composição do céu, que não da crendice vã e já quase rejeitada que emite juízos sobre a vida e a fortuna”.

Os historiadores portugueses se deliciam com a indicação dos autores do século XVI que apontam novos caminhos, que se afastam da tradição e que dão mais valor à experiência adquirida pelo contato pessoal do que àquilo que se encontra nos livros. Assim, encontramos um enorme volume de estudos dedicados à cartografia portuguesa, à náutica das navegações, ao trabalho de Garcia de Orta sobre as plantas medicinais da Índia e outros avanços semelhantes, mas pouquíssimos trabalhos que explorem a tradição medieval e renascentista, pouco inovadora, que dominava a cultura portuguesa durante o mesmo século.

Joaquim de Carvalho, por exemplo, procura indicar que o quadro medieval se altera em Portugal no século XVI:

O século XVI traz-nos uma profunda transformação da mentalidade e sobretudo na direção dos problemas, (…) Pedro Nunes e Garcia de Orta, se notará que esses pressupõem e exprimem conhecimentos diversos, novo ideal científico diferente atitude metodológica e, sem quebra da tradicional ortodoxia religiosa, um sentido antropocêntrico da vida. A subitaneidade e expansão dos grandes acontecimentos produzidos nos domínios da Geografia, da História Natural, da Astronomia, da erudição da técnica e das mundividências, cuja correlação simultânea constitui um dos mais sutis problemas da sociologia da ciência…30

30 Carvalho, Estudos sobre a Cultura Portuguesa do Século XVI, 10-11.

Desde o século XV observa-se que Portugal importava mestres estrangeiros – sobretudo italianos – e que um certo número de portugueses se dirigia a outros países para realizar seus estudos. No entanto, o intercâmbio cultural era pequeno, até a década de 1520. Em 1526 foi firmado um acordo entre Dom João III e Diogo de Gouveia, criando 50 bolsas de estudo no Colégio de Santa Bárbara, em Paris, para que estudantes portugueses pudessem estudar naquela cidade com mais facilidade, com o objetivo de educar no exterior uma elite intelectual, que poderia depois retornar a Portugal para lecionar.

Paralelamente, ocorreu um aumento da influência do humanismo em Portugal. Em 1534, André de Resende pronunciou na universidade de Lisboa uma oração inaugural em que criticava o atraso intelectual português: “(…) nelas (as nações cultas da Europa) todos os dias aparecem homens doutos, que com os monumentos do seu engenho alcançam renome para si, e imortalidade para a pátria. Quando lemos os seus escritos, em boa verdade devíamos envergonharnos da nossa barbárie e do nosso desleixo”.

Em 1537 Dom João III transferiu a Universidade, de Lisboa para Coimbra. A maioria dos professores antigos se recusou a mudar-se para lá, e o rei precisou procurar novos docentes, tanto portugueses quanto estrangeiros. Foram trazidos professores da Espanha, como Martín de Azpilcueta, Martinho de Ledesma e Alfonso do Prado.

O médico Pedro Nunes ensinou a partir de 1530 na Universidade de Lisboa, lecionando filosofia moral, lógica e metafísica. Em 1544 Nunes passou a Coimbra, para ensinar matemática na faculdade de medicina.

Dom João III criou também em Coimbra o Colégio Real das Artes, que tinha o objetivo de preparar os estudantes para a Universidade. O Colégio das Artes, que tinha um projeto humanista, foi inicialmente dirigido por André de Gouveia, chamado da França para esse fim. Após a instrução primária passava-se ao ciclo intermediário das “humanidades” e daí ao ciclo da filosofia (que incluía os estudos naturais), adicionando-se o estudo de Latim, Grego, Hebraico e matemática.

Ocorreu, no entanto, que o ano de fundação do Colégio das Artes (1547) coincidiu com a organização em Portugal do Tribunal do Santo Ofício e a edição do primeiro índice de livros proibidos. Havia terminado a primeira fase do Concílio de Trento (1545-1547), e as normas bastante rígidas de combate à reforma protestante começaram a ser aplicadas.

Gouveia e vários professores que com ele tinham vindo para Portugal foram considerados suspeitos de luteranismo, sendo perseguidos pela Inquisição. Após alguns anos, a estrutura inicial de desfez. O Colégio das Artes acabou por ser entregue em 1555 aos Jesuítas, “máxima expressão do espírito contra reformista” da época.

A Companhia de Jesus já dirigia o Colégio de Santo Antão, em Lisboa, e o do Espírito Santo, em Évora. Em todos esses colégios, o ensino foi direcionado de forma prioritária para a religião. Os autores clássicos eram estudados, mas em versões “limpas”, eliminando-se os aspectos que pudessem entrar em choque com o pensamento católico. A base filosófica do ensino era a escolástica medieval codificada por Tomás de Aquino.

Nas escolas, o ensino se imobilizou em doutrinas que não podiam ser colocadas em discussão. Fora das escolas, a Inquisição cuidou para que não se difundisse nenhum pensamento novo, que pudesse representar um perigo para a Igreja.

A Imprensa Quinhentista em Portugal e a Astrologia

Jorge Borges de Macedo fez uma análise de 1904 obras publicadas em Portugal durante o século XVI. Cerca de um terço do total (651) era constituído por obras religiosas, tratando sobre a função da Igreja, sua organização, serviços e doutrinas. Em ordem decrescente de número de obras, os principais grupos temáticos eram, de acordo com essa análise:

• Obras religiosas – 34%
• Trabalhos relacionados ao ensino – conclusões, questões e asserções para aulas – publicados nas três últimas décadas do século – 19%
• Obras sobre a função, organização e serviços do Estado – 12%
• Literatura (poesia, teatro, etc.) – 7%
• Relatos do presente (biografias, panegíricos, orações fúnebres, etc.) – 5%
• Manuais para ensino ou aprendizagem (gramática, aritmética, retórica) – 4%
• História civil e militar – 3%
• História da Igreja e dos santos – 3%

Excluindo-se as obras de ensino, os textos técnicos e científicos eram raros. Borges de Macedo encontrou 38 obras de filosofia (2%), 31 de astronomia, matemática e reportórios dos tempos (1,5%), 23 relatos de viagens e descrições de lugares (1,2%), 18 sobre medicina (0,9%) e 14 sobre artes e técnicas (0,7%).

Uma parte das obras publicadas durante o século XVI em Portugal representaria, segundo Borges de Macedo, um enriquecimento dos conhecimentos humanos – por exemplo, as obras relacionadas às navegações, aos contatos com novos povos e lugares. No entanto, outras publicações mostram um aspecto estático da cultura daquela época.

A esse respeito, o conjunto dos livros impressos, em Portugal, no século XVI, fornece dois temas de evolução contrastante. Um que se revela no estiolamento cultural das publicações designadas por reportório dos tempos, manifestado nas suas quase inalteráveis versões ao longo do século. Outro que se revela no constante enriquecimento dos conhecimentos humanos, tanto no campo da pessoa como acerca da sociedade portuguesa e das áreas onde os portugueses permaneceram.

Borges de Macedo afirma que, no início do século XVI, além das indicações astronômicas gerais e informações astrológicas, os reportórios dos tempos tiveram um papel útil para a atividade náutica. No entanto, com o avanço do século, essa utilidade iria diminuindo, “enquanto se ampliam os dados astrológicos e outros de aplicação irresponsável às oportunidades da vida sedentária ou do futuro incerto, através dos conselhos astrológicos e regras de convivência, juntamente com avisos agrícolas e informações caseiras”.

Ao longo das décadas, os regimentos vão sendo reeditados com o mesmo texto, com as mesmas figuras, introduzindo apenas mudanças nas tabelas. “Nem a experiência náutica adquirida, nem o conhecimento de novos mundos teve qualquer influência naquele texto, dado como tão importante relativamente aos conhecimentos astronômicos iniciais”. Posteriormente, a situação teria piorado, em vez de melhorar, com a publicação de almanaques e lunários mais superficiais. A situação refletiria, segundo Borges de Macedo, uma atitude geral da cultura portuguesa da época: estagnação, “nenhuma criação interpretativa”.

Na mesma época em que aparece a obra de André do Avelar analisada nesta dissertação (1585) surgem outros reportórios na Espanha:

Tornamira, Francisco Vicente de. Chronographia y Repertorio de los tiempos, a lo moderno: el qual trata varias y diversas cosas, de Cosmographia, Sphera, Theorica de Planetas, Philosophia, Computo y Astronomia, donde se conforma la Astrologia con la Medicina … Con el Lunario q dura veynte y ocho años, desde el principio del año de M.D.Lxxxiij hasta el fin del Año de M.DCX. Y con los Eclypses que aura en el dicho tiempo, y con los Cathalogos de los Reyes. Pamplona: Thomas Porralis de Sauoya, 1585.

Zamorano, Rodrigo. Cronologia y reportorio de la razon de los tiempos El mas copioso que hasta oi se a visto. Sevilla: Andrea Pescioni y Iuan de Leon, 1585.

Hera y de la Varra, Bartolomé Valentin de. Repertorio del mundo particular, de las spheras del cielo y orbes elementales y de las significaciones y tiempos correspondientes a su luz y moviento. Madrid: Guillermo Druy, 1584.

Um outro reportório dos tempos espanhol, que não pudemos examinar, parece ter estrutura semelhante aos que foram estudados. Trata-se da obra:

Aleman, Juan. Sumari o repertori del temps / compost per lo molt abil Astrolec Joan Aleman y Bacheller en arts. Trad. Frei Juan Salom. Barcelona: Jaime Cendrat, 1580.

Esta obra começa por uma discussão a respeito do tempo e sua divisão, explicando o que são o ano, o mês, etc. Depois explica os planetas e cada um é acompanhado por uma gravura que representa o personagem que simboliza o planeta. Em seguida, descreve os signos do zodíaco. Seguem-se regras para saber as horas. Depois descreve as quatro partes do ano, os quatro humores e as quatro idades. Continua com um calendário dos meses, com gravuras que representam a ocupação mais adequada para cada um deles, e alguns conselhos aos agricultores. Vêm depois uma tabela e a análise das festas móveis. Segue-se uma descrição do corpo e suas veias principais, com duas gravuras indicando as partes do corpo em que devem ser praticadas as sangrias. Os capítulos seguintes tratam de medicina astrológica, descrevendo o tempo adequado para cada prática médica e apresentando uma figura humana com as cavidades torácica e abdominal abertas, rodeada dos planetas e signos do zodíaco, indicando as relações entre os órgãos e os astros. Depois há capítulos tratando sobre os ventos, sobre terremotos e astrologia meteorológica. Segue-se uma parte sobre “prognóstico natural das mudanças do tempo, quer dizer, de serenidade, chuvas, ventos, tempestades e frios, juntamente com sinais de terremotos, pestes e carestia”.

Os Reportórios dos tempos não tinham ainda o mesmo caráter dos almanaques, lunários e prognósticos anuais. Esse tipo de obra somente se tornou comum em Portugal no início do século XVII. Tratava-se de livros pequenos, válidos apenas para um ano (ou poucos anos), que continham previsões astrológicas específicas sobre o que iria ocorrer em cada época. Distinguiam-se assim dos Reportórios, que apresentavam regras astrológicas gerais, aplicáveis a qualquer ano – embora suas tabelas astronômicas e previsões de eclipses, evidentemente, só tivessem validade para alguns anos. Em 1614, Gaspar Cardoso de Sequeira publicou um Pronostico geral e lunario perpetuo onde afirmou: “(…) andam tanto em uso os pronosticos de cada hum anno, que quem o não tras consigo, acha que anda desacompanhado (…)”32.

32 Armando Carneiro da Silva, “Almanaques e Folhinas Conimbricenses,” Arquivo de Bibliografia Portuguesa 1 (1955): 13-23; 136-145; 239-252, 136. Observação: a numeração das páginas desta publicação contém vários erros. A página 136 apareceu numerada como 64, estando impressa e encadernada em local errado.

É importante mencionar que os Reportórios mantinham um contato bastante estreito com outro tipo de literatura: as obras que se destinavam ao cômputo das festas religiosas.

O cálculo dos dias em que cairiam, em cada ano, as festas religiosas mutáveis (como a Páscoa) era bastante complexo, pois dependia do conhecimento das fases da Lua. O Concílio de Nicéia, no ano 315 d.C., estabeleceu a seguinte regra para a determinação da Páscoa: essa festa deveria ser celebrada no primeiro domingo seguinte à primeira Lua cheia posterior ao equinócio de primavera (21 de março).

Existiram durante o século XVI, em Portugal, obras dedicada unicamente ao calendário religioso e questões cronológicas semelhantes, como a Cronologia dos Tempos (1554) do frei Nicolau Coelho. Este autor substituiu Pedro Nunes, algumas vezes, na regência da cadeira de matemática na Universidade de Coimbra.

Para se prever exatamente quais os dias de Lua nova ou cheia em cada ano, era necessário conhecer os vários ciclos solares e lunares, com grande precisão. Além disso, foram desenvolvidos métodos práticos de determinar tais datas, com base em tabelas e técnicas mnemônicas. Em 1579, Gonçalo Fernandes Trancoso publicou um pequeno livro onde mostrava como era possível determinar as datas das festas mutáveis associando certas letras e números aos dedos da mão:

• Trancoso, Gonçalo Fernandes. Regra geral pera aprender a tirar pola mão as festas mudaveis, que vem no anno, a qual ainda que he arte antiga está per termos mui claros. Lisboa: Francisco Correa, 1570.34

34 O texto deste livro está reproduzido em: Gonçalo Fernandes Trancoso, “Regra geral pera aprender a tirar pola mão as festas mudaveis, que vem no anno, a qual ainda que he arte antiga está per termos mui claros,” Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra 7 (1925): 141-182.

Foram publicadas durante o século XVI outras obras destinadas ao cômputo das festas mutáveis da Igreja, cuja data se baseia nas fases da Lua. Podemos citar como exemplo:

Calendarium perpetuum, triginta sex tabulis comprehensum. Coimbra: Antonio de Mariz, 1581.

A mesma obra foi reeditada dois anos depois, com as correções necessárias devidas à introdução do calendário gregoriano:

Calendarium perpetuum, triginta sex tabulis comprehensum. Coimbra: Antonio de Mariz, 1583.

Os Reportórios dos tempos incluíam entre seus temas os cálculos do calendário religioso. Provavelmente isso era feito com o objetivo de tornar essas obras mais agradáveis e atraentes à Igreja.

Ω

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