Influxos do Céu na Existência dos Homens

Os Escritos Astrológicos na Península Ibérica
(Séculos XIII, XIV E XV)

Simone Ferreira Gomes de Almeida

Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais.

Resumo

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O saber sobre os astros retomado na Península Ibérica pelos judeus e árabes nos séculos XI e XII foi registrado em diversos escritos em língua vulgar a partir do século XIII. A propagação desse saber, comumente chamado astrologia, esteve quase sempre vinculada ao conhecimento do porvir, fosse pelo ensinamento das configurações astrais que propiciavam boas ou más influências, fosse pelo alerta da Igreja quanto à inadequação por se crer no determinismo astral. Assim, a partir das obras que trataram da astrologia, escritas entre os séculos XIII e XV, o objetivo deste trabalho é lançar luz sobre as formas de desvendamento dos segredos dos céus, através do estudo das premissas e do estatuto desse saber sobre as estrelas, bem como por meio da indagação sobre os homens que a ele se dedicaram. Os escritos empenhados em diferenciar o saber astrológico (arte liberal) de uma prática supersticiosa (augúrios que contavam com os efeitos das influências celestes) serão instrumentos para discorrermos sobre a constituição da astrologia no período, com destaque para o seu uso na adivinhação do futuro, melhor, com destaque para o lugar das previsões astrológicas na sociedade ibérica. Corte, Universidade e Igreja foram os espaços que propiciaram as indagações sobre o que havia de vir, deixando entrever angústias e preocupações que diziam tanto sobre o que se temia ou esperava do futuro quanto sobre o presente daqueles que viveram nos séculos XIII, XIV e XV. Nesta altura, as maneiras de governar e de estabelecer relações com outros homens, com a natureza, com o corpo e com a alma foram recorrentemente atribuídas à sorte das estrelas e, por isso, não foram poucas as vezes em que não se prescindiu das palavras de um astrólogo. À espera da eternidade, os cristãos viram na astrologia um caminho para adiantar questões mais palpáveis, ou seja, por intermédio daqueles que traçavam o mapa das estrelas, visavam alcançar alguma fortuna.

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Apresentação

“Alguns nascem com mazal e ventura; outros, com hérnia e quebradura”. Esse provérbio judaico é apenas um entre vários outros de origem hebraica que fizeram parte da linguagem comum dos peninsulares ibéricos no século XVI, provérbios que, a despeito de sua pouca originalidade, trazem à tona certas ideias triviais que podem permitir ao historiador uma aproximação dos valores irrefletidos partilhados em uma dada sociedade. Meditar sobre o peso dos provérbios judaicos na Península Ibérica ou sobre a dimensão da sua circulação nesse espaço, não é, contudo, o alvo deste estudo, ao contrário, o que importa, de saída, é observar a relevância de uma palavra contida nesse provérbio: mazal.

A etimologia dessa palavra do judeu-espanhol indica que ela foi um sinônimo de estrela, astro, sorte e destino, pelo menos desde o começo do século XV, e dela derivaram os adjetivos espanhóis mazaloso (bem afortunado, feliz) e desmazalado (desgraçado, infeliz), bem como as expressões mazal claro para expressar boa sorte ou boa ventura e mazal escuro para má sorte ou má ventura. Foram vários os provérbios judaicos correntes no Quinhentos que, a partir desse termo, estabeleceram uma íntima relação entre a ventura e as estrelas: “O mazal da feia, a formosa o deseja”; “Mais vale um grama de mazal que um baú de ouro”; “Quem bom mazal tem, nunca o perde”; “Dá-me um grão de mazal, e lança-me ao fundo do mar”; “Menina dormindo, o mazal desperto”. Todos esses, como se pode observar, apesar da diversidade dos focos, preservam em comum um aspecto significativo sobre o ponto que nesta tese será esmiuçado, a saber, a expectativa sobre o porvir e a possível interferência do céu nesse tempo irrealizado ou, como mais diretamente exprimem os provérbios, a importância de se ter boa sorte ou boa estrela em detrimento de possuir bens materiais, beleza e proteção – haveres então tidos por incertos e fugazes.

Dado o uso frequente da palavra quatrocentista mazal nessas advertências dos provérbios quinhentistas, podemos, portanto, cogitar que já vinham de antes as crenças na influência da sorte celestial na vida terrena. É possível até mesmo afirmar que o realce dado à sorte associado à contingência favorável das estrelas era bem mais remoto, a tomar pelo fato de que, desde o século XII, se desenvolvia um intenso trabalho para a tradução de textos escritos em grego e árabe, os quais, em sua maioria, ensinavam como estudar os astros para se beneficiar das melhores influências, e sobre como evitar influências danosas e perniciosas na busca desmedida de expandir ou reverter a própria sorte. Assim, se os primeiros séculos do medievo caracterizam-se por uma escassez de testemunhos escritos sobre o tema em questão, os séculos XII e XIII testemunharam um renascer do interesse pelos corpos celestiais – que tinha sido marca dos antigos – e, consequentemente, assistiram a uma multiplicação dos tratados sobre eles. Grande parte desse ressurgimento se deveu às traduções de obras árabes para o latim. Nessa primeira fase, os reinos europeus, de um modo geral, começaram a dispor de bons manuais astronômicos (como o Almagesto de Ptolomeu) e astrológicos (como o Introductorium maius de Albumasar e o Quadripertium de Ptolomeu), além de algumas obras de Aristóteles sobre astronomia, em particular o De Generatione et corruptione e os Metereológicos, nos quais se afirmava que as mudanças na terra se deviam às mudanças no Sol, na Lua e nos planetas.

Apesar da importância dessa retomada na definição do recorte temporal deste trabalho, o foco proposto não será propriamente como ela se deu nos séculos XIII, XIV e XV, e sim como os textos ibéricos desse período se dispuseram tanto a ensinar que a astrologia podia empreender vaticínios, quanto a advertir sobre os ricos de fazê-los; para o quê recorreram em abundância a esses escritos do passado em confronto com os escritos dos doutores da Igreja, estes, certamente, muito mais cautelosos acerca da prática. O ponto de partida selecionado para explorar a questão foi o século XIII, por ser este o momento em que os textos sobre a astrologia foram compilados em espanhol sob os auspícios da corte castelhana, aquela de Afonso X, o sábio. O trabalho realizado no seu scriptorium – como veremos melhor no primeiro capítulo – possibilitou que outras cortes ibéricas tivessem acesso a esses textos e desenvolvessem também atividades relacionadas ao saber das estrelas. Dessa forma, um desafio a ser superado para examinarmos o registro das previsões nos variados reinos da Península Ibérica é o da amplitude. Por mais que possa parecer ambicioso e delicado – e sem dúvida o é – contemplar textos procedentes de ambientes diversos (Portugal, Castela, Navarra e Aragão), as confinidades políticas e as conformidades culturais relacionadas à coexistência de cristãos, judeus e mouros justificam fazê-lo. Mas foi, sobretudo, uma certa unidade das tópicas sobre as previsões astrológicas que motivou a seleção dessas fontes de origem diversa. Tais escritos, à partida, deixam entrever mais um universo partilhado do que, propriamente, obras ímpares. As questões similares sobrepõem-se significativamente às singulares, tanto no que diz respeito ao que se aspirou prever quanto no que se propunha para ser evitado ou rejeitado. Mas, ainda assim, nesse universo nivelado, é inegável que os significados da astrologia sofreram variações que merecem ser examinadas, com atenção especial para os diferentes usos propostos: dos médicos, que ordenavam curas de doenças com base nos ciclos estelares e travavam o debate sobre o significado das estrelas para a vida humana, à gente comum, que pelos contos populares e poemas se informava sobre as melhores épocas para colher e semear, passando pelos letrados, que miravam o céu para dar sentido às coisas da Terra.

Dados os limites da pesquisa, contudo, a astrologia difundida nos costumes populares, apesar do seu interesse, não poderá ser explorada. Nosso foco serão apenas os escritos provenientes da corte e da universidade, nos múltiplos diálogos que mantiveram com os grandes pensadores antigos e da Igreja. Esse discurso, inclusive, parte de um preceito fundamental, que é o de que a prática astrológica demandava uma iniciação, ou melhor, ciência,11 de forma que não poderia ser praticada pelo povo – em geral, alheio aos riscos e tendente a fazer um uso supersticioso. Desdobraremos, pois, neste trabalho, fundamentalmente as orientações platônicas, aristotélicas e ptolomaicas retomadas nos escritos ibéricos, com a finalidade de perceber que lugar foi estabelecido para a previsão no uso da astrologia. Daí a inevitável recorrência aos árabes e judeus, que tinham antes optado por este caminho.

11 Desde Santo Agostinho, vigora na Idade Média a concepção de que a ciência é a compreensão da forma de uma coisa pelo intelecto ou pela imaginação. Quando a forma é apreendida pela imaginação, a ciência é sensível; quando é apreendida pelo intelecto, a ciência é inteligível. Para que haja ciência inteligível, é preciso que a forma se una ao intelecto que a apreende. Ora, a alma não pode apreender o sensível sem intermediário, pois seu modo de ser não é o mesmo; entretanto, ela pode apreender o inteligível sem intermediário, porque seu modo de ser é de mesma natureza; ao apreender a verdade relativa às coisas sensíveis, ela põe em ação seu intelecto e adquire a ciência; caso da astronomia.

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A propagação desse termo judeu-espanhol relacionado à sorte na Hispania do século XV, mazal, para além de sugerir suas ligações com as estrelas, abre também caminho para refletirmos sobre uma das especificidades da sociedade a ser aqui examinada: a convivência entre culturas diversas em um mesmo território, ou seja, o convívio dos povos das três grandes religiões monoteístas, judaísmo, islamismo e cristianismo, em especial nos espaços de saber, como no scriptorium do rei D. Afonso X, onde, como veremos adiante, foi ordenada a compilação de diversos textos que tratavam de astrologia. Para termos ideia de quão presentes eram as referências aos mouros ou judeus pelos ibéricos, na Primera Crónica General do rei sábio, finalizada na segunda metade do século XIII, surge uma referência a Maomé e à expansão de suas doutrinas, alusão que é, vale destacar, acompanhada de uma relação com os judeus e seu conhecimento dos astros, em um tom aparentemente depreciativo, ou seja, ali, adita-se que Maomé havia estudado com um judeu estrellero, que lhe havia ensinado alguns princípios das religiões cristã e judaica, dos quais ele teria se aproveitado para dar corpo à sua religião. A sugestão, a partir dessas relações, era de que a fé islâmica não teria nada de revelação divina, mas sim de maliciosa instrução. O judeu adivinho teria, segundo a crônica, vaticinado, mediante a observação dos astros, o importante papel que no futuro teria Maomé, prevendo, por meio da análise das estrelas e dos planetas, o seu nascimento e que futuramente seria um “homem muito esforçado, honrado e poderoso no reino e na lei.” Se o rei sábio, a quem se atribui a crônica, desmerece o islã ao tirar-lhe a prerrogativa da revelação, o mesmo não faz a propósito do astrólogo judeu, pois sua previsão sobre o futuro de Maomé é reconhecida como acertada; rastros, pois, de uma certa simpatia que Afonso X e outros letrados tinham por esses conhecedores dos céus vindos de outras religiões.

Na perspectiva deste estudo, focado no saber astrológico, a convivência entre os três povos que interessa é aquela que pode ser considerada pacífica, a despeito de algumas divergências recorrentes, que culminarão na gradativa afirmação da ortodoxia cristã no século XV. No século XIII, período em que a maioria das traduções dos textos astrológicos do árabe para o latim ou espanhol foram feitas, as contendas com judeus e árabes na Península não são frontais, entretanto, o temor de que a astrologia resultasse em uma limitação do livre-arbítrio se mostra desde os primeiros tempos da introdução da astrologia islâmica no ocidente, e se converte em tema central das controvérsias teológicas no século XIII16. Nesse período, os judeus, chamados de sefarditas, foram identificados por conservarem a pronúncia tradicional do hebraico bíblico, por falarem o judeu-espanhol e, por vezes, conhecerem o árabe. Por sua parte, os árabes que estiveram inseridos nos ambientes de saber da cristandade foram chamados de mudéjares e, por estarem orientados por outras normas, optaram, na maioria das vezes, por viver em ambientes de predominância árabe – como o de Granada, que pertenceu a uma dinastia árabe fundada por Yúsuf ben Názar (1332-1354). Da minoria desses muçulmanos que não puderam viver no reinado nazarí, o número daqueles que se converteram ao cristianismo foi pequeno, de forma que é possível aventar a hipótese de que, mesmo que vivessem sob reinados cristãos, esses mudéjares permaneceram presos aos preceitos de seu povo e de sua fé e compilaram os textos sobre o saber dos céus sem perder de vista esses valores.

16 AVILÉS, Alejandro García. Arte y Astrología en Salamanca a finales del Siglo XV.

Os impedimentos para a conversão foram variados, a começar pelo desconhecimento da língua árabe por parte dos padres. Os dominicanos até fundaram escolas de línguas visando “cristianizar” os árabes, mas isso não bastou para estimular as conversões voluntárias, dado tanto ao temor da exclusão definitiva e do rechaço da comunidade antiga, quanto à má acolhida dos cristãos, que designavam os convertidos como renegados ou tornadiços; enfim, converter-se ao cristianismo não significava necessariamente alcançar um bom relacionamento com a cristandade. Mas, ao contrário dos mudéjares, foi significativa a quantidade de judeus-conversos na sociedade ibérica, provavelmente porque para eles eram mais certos os benefícios trazidos pela conversão, como, por exemplo, a chance de assumir determinados cargos na governação. Esse tipo de benefício, entretanto, resultou dúbio, pois os cristãos acabaram por acusar os hebreus de terem se convertido buscando apenas esses benefícios pessoais, e de continuarem, por isso, a exercer secretamente sua antiga fé. El Corbacho (1438), texto do Arcipestre de Talavera, Afonso Martínez de Toledo, conhecido também como Reprobación del amor mundano, apontou vários pecados e ameaças à fé cristã, dentre elas a falsidade dos judeus convertidos: “Ah! alguns desses dissimulam o mal e fingem o bem com dissimulados hábitos e condições, com palavras mansas e gestos sossegados, os olhos para a terra inclinados como de honestidade, mirando de revés, de sua capa”.

Esse clima de desconfiança, tão bem exposto pelo Arcipestre, fez com que a Igreja constatasse a necessidade de vigiar os conversos para saber se eram, de fato, cristãos sinceros, o que estimulou o suporte a práticas inquisitoriais e posteriormente o estabelecimento de um Tribunal de Inquisição em 1478, o qual será mantido, em Castela, mesmo depois da expulsão dos judeus, em 1492. Esses ares de desconfiança e animosidade serão um dos principais estímulos para que vários religiosos ibéricos preocupem-se em regrar certas práticas e certos saberes que estavam associados aos árabes e hebreus, como era o caso da astrologia. Desse modo, como veremos no terceiro capítulo, ao tratarem da astrologia, os escritos desses homens de Igreja assumem um certo tom inquisitorial, determinando principalmente aquilo que, nesse saber, é licito e o que é ilícito para a vida do cristão.

Embora o objetivo deste trabalho não seja desdobrar propriamente a boa ou má convivência entre os três povos, não se pode deixar de mencionar sua intensa e difícil convivência na Península, pois as discordâncias em torno de princípios religiosos e morais, sem dúvida, pesou nas reflexões sobre a arte da astrologia e na forma como foi retomada e registrada na Península Ibérica dos séculos XIII, XIV e XV. A bem da verdade, é notável que os cristãos que viveram nesse período tiveram algum tipo de contato com certas concepções dos sefarditas e dos mudéjares – que contribuíram na reflexão sobre as formas de adiantamento do futuro pela astrologia. A contribuição dos letrados dessas origens na transmissão dos textos que ensinaram a prever não é negligenciável, sendo mesmo possível admitir, de saída, a improbabilidade da disseminação de prognósticos astrológicos sem esses contatos – tendo em conta certas restrições da moral cristã. Portanto, a escola de Tradutores de Toledo25 desempenhou uma função ímpar, não só para a Península Ibérica como para outros reinos cristãos europeus, ao retomar textos astrológicos clássicos e propagar um saber que até o século XV foi bastante debatido pelos pensadores da Igreja.

25 ALBARES, Roberto A; CASTILLO, Pablo G; MIGUEL, Cirilo F. La Ciencia del Cielo.

Para tratarmos da astrologia ibérica, o século XV foi escolhido como o ponto chegada, pois, a partir daí, as novas configurações históricas farão emergir novos preceitos, novos problemas e novos caminhos, motivados por uma mudança sem precedentes: a empresa das navegações. Mesmo que a astrologia viesse a carregar ainda por muito tempo seu caráter supersticioso – direcionado sobretudo para as previsões –, as necessidades que as navegações trouxeram desviaram a atenção dos prognósticos astrológicos para aspectos mais técnicos, ligados ao mapeamento das estrelas e às medições mais precisas, através dos astrolábios, das bússolas e das tábuas. O presente trabalho, apesar do interesse deste deslocamento, restringir-se-á a examinar apenas, no decorrer desses três séculos, a astrologia mais ligada às previsões, nomeadamente as promessas e as condenações.

Em torno desse eixo, no primeiro capítulo, intitulado “O saber inspirado nos indícios do céu”, será apresentado um balanço sobre a matéria astrológica tal como foi tratada nas cortes e nas universidades ibéricas. Embora seja conhecida a colaboração e a circulação de informações entre esses meios, o mapeamento será organizado em torno das retomadas mais frequentes da escrita astrológica, e em torno das justificativas da relevância, nesses âmbitos, disso que por vezes se denominará saber, por vezes ciência, por vezes arte. As diversas cortes da Península Ibérica serão tratadas, porém, acerca das universidades, apenas Salamanca será abordada, tendo em conta a raridade das informações sobre astrologia nas outras universidades ibéricas nesse período. A fundação da primeira cátedra de astrologia na Península Ibérica foi apenas em 1460, na universidade de Salamanca, o que colaborou para que esta matéria tivesse um caráter mais técnico, ligado às navegações. Consideramos principalmente a astrologia trabalhada ali antes disso, desde 1218, quando a universidade foi fundada e a matéria astrológica passou a ser estudada junto com os estudos matemáticos e de medicina. A ênfase será na produção astrológica neste ambiente, com destaque para a sistemática retomada de determinados pensadores clássicos, para a peculiaridade ibérica de embasar este saber nas fontes e nas interpretações árabes e judias, bem como para a retomada da divisão estabelecida por Isidoro de Sevilha entre astrologia natural e astrologia supersticiosa. No que toca aos textos cortesãos, interessa interrogar que papel tiveram na consolidação do saber astrológico e no estabelecimento das balizas condutoras desse saber para aqueles ibéricos preocupados com o futuro das dinastias e curiosos sobre o destino dos reinados.

O segundo capítulo será dedicado às “Influências astrais e previsões”. Desdobraremos, ali, quais foram os principais prognósticos relatados nos escritos astrológicos, bem como os juízos de valor feitos pelos homens de corte ao discutirem essas previsões e os principais temas relacionados aos prognósticos feitos a partir dos astros, a saber: fortuna e infortuna relacionadas ao poder, ao corpo, à natureza e aos lazeres.

O posicionamento dos grandes pensadores da Igreja será destacado no último capítulo, intitulado “A determinação dos astros sobre o que há de vir”. Através de escritos de religiosos ibéricos, principalmente dos séculos XIV e XV, desdobraremos quais foram as fronteiras do saber astrológico entre o lícito e o ilícito. Temas como o livre-arbítrio, a presciência e o determinismo astral serão examinados, dada a sua recorrência nos escritos desses religiosos quando se dedicam a analisar a validade do saber astrológico. Nesse sentido, o eixo fundamental do capítulo serão as discussões acerca da justeza da curiosidade sobre o porvir na vida dos cristãos.

A astrologia, conquanto fosse um saber que, dadas as concepções cosmológicas do tempo e as associações entre os homens e as estrelas, favorecia as crenças supersticiosas, ainda assim foi, sob a forma de astronomia – designação que alternou com aquela, sem se distinguir propriamente –, um dos ramos do quadrivium e, portanto, esteve inserida entre os saberes aceitos e virtuosos. Esta ambiguidade norteia, em grande parte, a interrogação do trabalho a seguir, cujo principal objetivo é estabelecer quais foram os limites, os usos, as vantagens e as desvantagens atribuídas a um saber relacionado à possibilidade de prognosticar nos reinos ibéricos dos séculos XIII, XIV e XV.

Sobre tais previsões astrológicas, D. Afonso X oferece-nos um sugestivo ponto de partida:

[…] são boas as demandas que se fazem de astrologia sobre as coisas, se se terá bem ou mal, pois se mostram danos ou mal, deve o homem afastar-se disso. Pois o que faz a demanda, assim é como se falasse com as estrelas ou lhes demandassem conselho, e os sinais que nelas estão são tantos como se respondessem falando com ele.

Se os sinais eram tão diversos e seu potencial equívoco, cabe sondar como os letrados de então encontraram tanto argumentos contrários quanto favoráveis a essas incursões pelas estrelas.

Capítulo 1

O saber inspirado nos indícios do céu

1.1 O modelo cosmológico e a retomada da scientia stellarum

“O Espírito Santo não tão somente quis que fossem as estrelas e planetas por formosura e luz, mas ainda quis que fossem sinais dos bons e maus tempos, que são conhecidos e repartidos por doze signos.” Enrique de Vilhena ao comentar passagens do Genesis em seu Tratado de Astrología, escrito em 1428 em Aragão, posteriormente às obras atribuídas à Afonso X, afirmou categoricamente a capacidade dos astros de sinalizarem o teor de acontecimentos nas etapas da criação do mundo. Tal afirmativa, corrente desde o século XIII, será desdobrada incansavelmente no século XV, pois, assim como Vilhena, seus contemporâneos, homens de saber, estudaram o céu por acreditarem na realização terrena daquilo que se delineava no plano das estrelas e, por isso, o conhecimento das configurações astrais e seus possíveis efeitos foram de grande valor para os homens em geral, mas especialmente para aqueles envolvidos com o poder, dadas suas responsabilidades e necessidade de se resguardarem.

Os astros, pelo que indicam as fontes do período, mereceram a atenção de vários letrados da Península Ibérica nos tempos em que as universidades e as cortes começaram a protagonizar a produção dos saberes. A forma como esta curiosidade ou inquietação se manifestou, entretanto, sofreu relevantes alterações com o passar do tempo, alterações assombradas em certos momentos por uma temida e condenada forma de crença, considerada excessiva, dispensável e fundada em elementos incertos, a superstição.29 Qual seria então a especificidade do saber astrológico na Península Ibérica dos séculos XIII, XIV e XV? Neste capítulo, merecem atenção as formas correntes, no âmbito cortês e universitário, de tratamento desse saber, seja como ciência, seja como arte.30 Antes, contudo, de desdobrarmos como os ibéricos desses séculos o definiram, bem como o que escolheram para dar prioridade na transmissão de premissas sobre ele, cabe uma breve explanação a respeito de alguns aspectos difusos, preconcepções, sobre as noções cosmológicas31 do período e também a respeito da crença em uma herança, vinda da antiguidade, que estimulou o gosto por tentar entender as combinações astrais; noções essas que se mantiveram como base da astrologia, quando esta foi, posteriormente, desvinculada da ciência astronômica.32

29 Segundo Jean Claude Schmitt, a definição de superstitio é romana e significa uma forma pervertida de religio, “muitas vezes manchada pelo exagero, segundo um outro sentido do prefixo super: o que é supérfulo”.
30 O hábito intelectual da ciência e da arte são aspectos intercambiáveis da mesma virtude racional da alma: a ciência cujo objeto é in facto esse é também a arte, cujo objeto está em devir. BOUDET, Jean-Patrice; COLLARD, Frank; WEILL-PAROT Nicolas. Médecine, astrologie et magie entre Moyen Âge et Renaissance: autor de Pietro d’Abano.
31 “[…] por modelo cosmológico se entende aquilo que é remoto e não verificável, e não o que está próximo e é verificável. Um matemático poderia dizer que os modelos cosmológicos antigos (e grande parte dos modernos) são as condições-fronteira, remotas no tempo e no espaço, que determinam as condições presentes e próximas de nós: o céu está sustentado por colunas, mas só Hércules consegue atingi-las; no oceano nadam os monstros; o ponto de apoio do mundo hindu é constituído por três elefantes que se apoiam numa gigantesca tartaruga. Ainda uma condição-fronteira é o modelo atomístico, se bem que mais sofisticado’’.
32 García faz uma introdução em seu estudo, na qual trata dos arquétipos astrológicos, ou de como se dá a dinâmica dos astros que resultam nas previsões. GARCÍA, Luis Miguel Vicente. Estrellas y astrólogos en la literatura medieval española.

A principal referência para entender a cosmologia do período, a mais retomada, foi a ptolomaica, esta ensinou a divisão do céu em doze casas celestes projetando três áreas sobrepostas para os céus. Nesta organização, quatro pontos importantes cruzaram o céu: o ponto ascendente da eclíptica no horizonte oriental, o ponto descendente da eclíptica no meridiano mais baixo, a intersecção da eclíptica com o meridiano superior, e o ponto de descida da eclíptica com o meridiano superior. Os planetas se moviam de uma casa para outra a cada duas horas, e cada combinação de planeta e casa poderia transmitir várias características de um recém-nascido. Assim, a partir dessas combinações era possível saber a natividade, ou os horóscopos e indicar perspectivas futuras de um indivíduo, que dependia fortemente do conhecimento do momento exato do seu nascimento.

Médecine, astrologie et magie entre Moyen Âge et Renaissance

O foco deste trabalho, no entanto, não é um aprofundamento das técnicas utilizadas para interpretar os astros no passado, e sim a astrologia como um meio de prever, de sintetizar as interrogações dos medievais acerca de um porvir “terreno”. Tais interrogações, na maioria das vezes, não foram relatadas como algo virtuoso pelos pensadores daquele tempo, mas ainda assim encontraram um espaço amplo nos escritos. O céu, por exemplo, passou a ser observado e estudado pelo seu suposto potencial de responder a algumas daquelas inquietações dos homens dos séculos XIII, XIV, XV e ainda parte do XVI. A crença corrente era de que a lógica do funcionamento dos céus tinha-se pautado na criação divina. A conjunção dos planetas, por exemplo, teria sido perfeita apenas no momento da criação, porém, após este instante inicial, os planetas desenvolveram velocidades próprias diferentes, provocando a mudança na configuração astral ou a desconjunção, o que veio a favorecer determinado planeta ou signo em um período específico. Este desequilíbrio entre os astros foi o que veio a favorecer o estabelecimento e aceitação do saber astrológico, pois passou-se a crer que este ajudava a firmar que certas coisas eram beneficiadas ou desfavorecidas por uma tal configuração ou por outra:

[…] porque dizem alguns que desde o primeiro tempo que começou o mundo, no qual começo juntamente se moveram estes planetas, que depois nunca assim em conjunção estiveram como então: porque a cada um deu-se o seu correr em desnivelados movimentos, e por isso não ficam eles a fazer sobre os corpos e tempos as coisas que faziam, porque eles entram cada um em um dia, e cada tempo em um signo, e algumas horas estão em tal signo, que fortalecem sua força, e em tal signo entram que lhes faz perder a sua força.

Essas oscilações, como adianta o Rei D. João I no Livro da Montaria, escrito entre 1415 e 1433, foram justamente a base no trabalho de realizar as previsões, pois a força de um planeta específico, relacionado à carta natal de alguém, indicaria sucesso ou insucesso para alguma ocasião que se desejava antecipar. O monarca, a partir desse movimento dos astros, explicava as melhores condições para a caça.

Sobre as configurações do cosmos, acreditava-se que havia não um, mas sete, oito ou nove céus, chamados também de esferas. Em virtude da correspondência numérica, o oitavo céu correspondia ao universo, isto é, havia sete esferas planetárias (as dos cinco planetas e as dos iluminados, Sol e Lua) e a esfera celestial (a das estrelas fixas), correspondendo esta última esfera, a das estrelas fixas, à vontade divina e ao destino das almas, como se afirmava inúmeras vezes nos textos sobre astrologia. Acreditava-se ainda em um nono céu, onde estava apenas Deus, assim, o oitavo, por estar mais próximo a Ele e não ser indecifrável como o nono céu, foi considerado o mais nobre, pois nele também estavam todas as estrelas que representavam as figuras existentes na terra36, as quais os astrólogos estudavam para desvendar a formação dos horóscopos, ou seja, o zodíaco.

36 RODRÍGUEZ. Ana Domínguez. Astrología y Arte en el Lapidario de Alfonso X el Sabio.

Sacrobosco, astrônomo e professor da universidade de Paris, escreveu o célebre Tratado da Esfera (1230), precisamente na época em que foi possível fazer uma combinação entre a velha astronomia literária da primeira Idade Média e a nova astronomia científica dos tradutores árabes do século XII, unindo Macróbio e Ptolomeu e adicionando referências de Alfragano. Dessa forma, o livro ficou em voga por cinco séculos,37 sendo uma referência para o estudo da arte dos astros nas universidades medievais como a de Salamanca. Afirma-se, nessa obra, que o zodíaco é um círculo que corta a oitava esfera e,

pelo movimento dos planetas debaixo dele, é a vida nas coisas que debaixo do céu estão. Pode também vir este nome zodíaco de zodion, que quer dizer animal, porquanto este círculo se parte em doze partes iguais, das quais cada uma se chama signo e tem nome de algum animal, e isto por alguma propriedade que convém ao signo e ao animal, ou porque as estrelas fixas daquelas partes fazem figura do tal animal.

37 THORNDIKE, Lynn. The True Place of Astrology in the History of Science. In: Isis, n. 46, 1955, p. 14-17.

Assim, a astrologia comprometeu-se em dar forma ao posicionamento dos planetas, das estrelas e constelações da oitava esfera pelas subdivisões dos doze signos chamados de casas ou graus. Para cada pessoa que quisesse fazer o horóscopo, prever seu futuro, seriam necessários cálculos que considerassem todos os aspectos descritos acima. As constelações zodiacais foram ainda vinculadas aos quatro elementos (fogo, ar, água e terra), e os planetas às qualidades elementares, seco, húmido, quente e frio. Além disso, os planetas recebiam características humanas, uma característica da astrologia grega que os relacionou com a personalidade da sua divindade homônima, assim, Marte foi associado à guerra, às rivalidades e disputas, Vênus presidiu os jogos, os divertimentos, os amores, e Mercúrio governou o que estava relacionado ao conhecimento. Também as estrelas errantes reagiam como os homens, ao alegrar-se em sua casa (exaltação) ou experimentarem o oposto, quando repelidas de suas casas. Os planetas ainda foram divididos em planetas favoráveis ou não, dependendo do seu grau de calor e umidade, exceto mercúrio, considerado neutro, pois poderia ser favorável ou não.

Tais referências permitem-nos afirmar que, até a formulação da lei da gravitação universal por Newton, em 1687, houve a permanência de vários aspectos de uma lei universal natural astrológica, que exigia dedicação dos estudiosos para os detalhes acerca dos céus e seus elementos, pois acreditava-se que o mundo da natureza era governado e dirigido pelo movimento dos céus e dos corpos celestiais, e o homem, como animal gerado naturalmente e vivendo no mundo da natureza, estava também sujeito a essas leis. Destarte, esse seria o significado mais amplo e mais aceito da astrologia, a lei universal que afirmava uma relação de todas as coisas do mundo (incluindo o movimento dos céus) e também destas com a vontade de Deus; contrariamente a um significado mais restrito e controverso que dizia respeito a determinadas previsões, como veremos no próximo capítulo. Nos textos medievais sobre astrologia, esses dois sentidos se conjugam para que certas temáticas ilustrativas das curiosidades mais presentes no período pudessem ser esclarecidas. Exemplarmente, Raimundo Lúlio (1232-1315), o doutor inspirado, tratou de várias instâncias que interessaram ao conhecimento cristão e filosófico, dentre elas a astrologia, fazendo uma descrição que contemplava o significado da previsão, ao propor todas as frentes de interesse para a astrologia no período, a saber:

[…] coisas que pertencem ao julgamento da astronomia, como a saúde, a enfermidade, a vida, a morte, a alegria, a ira, a riqueza, a pobreza, a abundância, o repouso, o trabalho, o empreendimento de uma viagem, o matrimônio, a procura de uma casa, o vento, a chuva, o gelo, o latrocínio, a guerra, a paz, o lucro, a perda, a vitória, a derrota, ir a uma terra e não a outra, buscar uma determinada coisa de um homem e não outro ou em um tempo e não em outro, banhar-se, fazer uma sangria, tomar um remédio, empregar-se em um ofício e não em outro, ou em um ofício mais do que em outro, pedir ou não pedir, o conselho, a segurança, o perigo, dar, falar, silenciar, ir, ficar, aprender e ensinar; e assim com as demais coisas que dizem respeito ao acaso e ao favorecimento, ou ao desfavorecimento.

Todos esses aspectos listados por Lúlio dão-nos uma indicação do grande alcance desse saber concebido pelos filósofos da Igreja, entretanto, para que textos como o de Lúlio circulassem na Península Ibérica, os textos árabes foram fundamentais, perpetuando os estudos astronômicos e astrológicos dos gregos.

Les Astrologues à la fin du Moyen Age

Os escritos anteriores ao século XIII serão pouco referidos neste trabalho, pois servem mais para aclarar o desenvolvimento das traduções dos escritos astrológicos do que como disseminadores, na Península, desse saber envolvido com as previsões. Contudo, não devem ser julgadas como de menor importância as ocasiões que propiciaram a retomada da astrologia, de forma que alguns pontos fundamentais dessa retomada merecem atenção no subtítulo seguinte, mesmo que o objeto principal seja a concentração e a propagação dos textos astrológicos em língua vulgar a partir do século XIII. Como se deu a retomada do saber astrológico nas cortes ibéricas será, pois, tratado a seguir, com ênfase não só na corte de Afonso X, que teve, sem dúvida, um maior destaque, mas em outras, como a de Aragão e de Portugal, pois a reunião de nobres e estudiosos que privilegiaram o saber das estrelas propiciou o estabelecimento das balizas condutoras desse saber para os ibéricos, em uma combinação entre escritos dessas próprias cortes e aproveitamentos dos ensinamentos árabes e judaicos.

Foi no século XII que a retomada da astrologia atingiu seu auge, em grande parte graças às traduções das fontes árabes e da preservação de certos escritos pelos clérigos da alta Idade Média, que não tinham se dedicado profundamente ao estudo deste saber. A astrologia tinha sido, pois, retomada desde o século VIII, contudo, apenas a partir do XII, nota-se uma preocupação em distinguir um uso louvável da astrologia, de outro condenável, ou melhor, uma preocupação em distinguir uma boa astrologia, aquela amparada nas artes liberais, de uma má astrologia, aquela de fundo supersticioso. Nesse sentido, como o termo astrologia foi utilizado para designar tanto uma ciência como uma prática supersticiosa, nomeou-se judiciária aquela astrologia que se ocupava propriamente de questões delicadas para a fé católica, ou seja, aquela que propagava o trâmite árabe de adivinhar pelos sinais do céus, e por isso era contraposta à ciência astrológica ou astronomia. A astrologia foi considerada a ciência das qualidades e propriedades dos mesmos corpos celestes – chamada de judiciorum scientia (ciência dos julgamentos ou ciência judiciária).47 A astronomia, por sua vez, passou a ser conhecida como a ciência dos movimentos dos corpos celestes, chamada de scientia motus ou motuum (ciência dos movimentos).

47 PRÉAUD, Maxime. Les Astrologues à la fin du Moyen Age. Paris: Ed. J.-C. Lattès, 1984, p. 54.

Essa terminologia opunha um saber necessário, a serviço de Deus, denominado astronomia, a um outro, incerto e de finalidade duvidosa, maquinado pelos demônios, designado astrologia. Entretanto, essa oposição não foi corrente em toda Península Ibérica, pois é bom esclarecer, à partida, que astrologia e astronomia, embora já no medievo fossem consideradas artes diferentes, se confundiram na maioria das vezes, dado que a astronomia foi maiormente utilizada para fins astrológicos.49 Difícil, por exemplo, é encontrar referências a um astrônomo que não fosse também astrólogo e, do mesmo modo, a distinção terminológica entre astronomia e astrologia não chega a esclarecer sobre a aplicação específica desses saberes. Assim, a scientia stellarum incluía ambas as partes, astronomia e astrologia, de tal modo que nenhuma delas podia considerar-se completa ou possível sem a outra.51

49 David Romano também afirma a coincidência dos termos, entretanto, destaca que quem se dedicava ao saber das estrelas era chamado de astrólogo e não de astrônomo. O autor explica que isto se daria porque para os medievais tudo o que foi relativo à astronomia era uma preparação para a astrologia.
51 SANTIAGO, Carmen Ordóñez. El pronóstico en astrología. Edición crítica y comentario astrológico de la parte VI del Libro Conplido en los iudizios de las estrellas de Aben Ragel. Memoria para optar al grado de doctor.

A astrologia judiciária, que vinha sendo cultivada com grande fervor pelos povos do Oriente, tinha como principal função o levantamento de horóscopos, incluindo também a astrologia genetlíaca, aquela que analisava o futuro a partir da data do nascimento, fazendo os seguintes juízos em torno das estrelas: 1) o estudo das conjunções e revoluções entre os planetas, que habilita a realização de predições gerais (clima, fome, pragas, etc.); 2) o sistema de interrogações, mediante o qual se formulam respostas precisas a perguntas concretas de diversa índole; 3) e, finalmente, o sistema de eleições, orientado a determinar o momento propício para o desenvolvimento de certa atividade: contrair matrimônio, iniciar uma guerra, empreender uma viagem. Foi anunciada nas terras hispânicas quando Santo Isidoro de Sevilha trabalhou para compilar, nas Etimologias, a diversidade dos saberes humanos. Contudo, nem na escola isidoriana nem nas escolas monásticas imediatamente posteriores, essa forma de saber encontrou terreno adequado para seu pleno desenvolvimento. Após a conquista muçulmana e o acesso à cultura árabe e hebraica, as condições para o incremento da astrologia mostraram-se mais adequadas e, mais adiante, a partir do século X, graças ao florescimento da cultura arábico-ibérica, assiste-se a uma certa abertura para a superstição astrológica, tanto nos domínios muçulmanos como nas regiões que continuavam sob o poder cristão. Nestas últimas, a corte de Afonso X teve, por estimular as compilações de escritos astrológicos, o papel mais fundamental, como veremos a seguir.

Capítulo 2

Influências astrais e previsões

2.5 O corpo inspirado nas compleições astrais

E quero primeiramente expor as compleições melhores e de maior excelência, segundo a natureza delas e a constelação de seus planetas; que certo é que os corpos sobrecelestiais dão aos corpos inferiores suas influências naturalmente e interferem neles com mais ou menos intensidade.

As profecias trecentistas e quatrocentistas tocaram, algumas vezes, em questões relacionadas ao corpo, como foi o caso da cirurgia para cataratas do rei João II anteriormente relatada. Contudo, o que não foi contado por Cresques Abnarrabí, na carta enviada ao rei, foi como ele elegeu a melhor data para a cirurgia. Essa escolha estava, sem dúvida, ligada justamente ao que foi apontado pelo Arcipreste de Talavera no citado trecho do Corbacho, ou seja, a consciência de que havia uma conexão entre a matéria e os astros e que esta conexão precisava ser desvendada para se saber o impacto da interferência astral nas vidas terrestres. Essa interferência nos corpos, pelo que anunciam as diversas fontes, dava-se sobretudo na chamada compleição, a qual os filósofos, principalmente Aristóteles, definiram também como temperamento e como sinônimo da relação entre os quatro primeiros e naturais humores, que se constituíam de quatro líquidos, relacionados aos quatro elementos da matéria: o sangue (ar), a fleuma (água), a bílis amarela (fogo) e a bílis negra (terra). A saúde, segundo essa concepção, resultava, portanto, da harmonia ou equilíbrio ideal interno desses quatro humores e de suas qualidades (quente, frio, seco e úmido). Além disso, para tratar do corpo, havia de se levar em conta também a intervenção dos doze signos do zodíaco nos elementos, pois cada grupo de três signos predominava a cada elemento e compleição: Áries, Leão, Sagitário eram atribuídos aos coléricos, correspondendo ao elemento fogo; Câncer, Escorpião, Peixes, aos fleumáticos, correspondendo ao elemento água; Gêmeos, Libra, Aquário, aos sanguíneos, correspondendo ao elemento ar; Touro, Virgem, Capricórnio eram, por sua vez, atribuídos aos melancólicos, correspondendo ao elemento terra. A compleição classificou-se, então, com o nome do humor que nela predominava e acreditou-se que os planetas tinham influência sobre os humores, posto que determinavam a força dos elementos, especialmente a Lua, por estar mais próxima da Terra.

Assim como o Corbacho, houve vários textos que deram esta ideia da astrologia como um instrumento para cuidar do corpo,439 pois era corrente, nos escritos, a aproximação entre as artes: astrologia e medicina.440 Defendia-se, por exemplo, que os médicos deveriam ter conhecimentos astronômicos e os astrólogos precisavam saber dos efeitos da influência astral nos corpos. Em outras palavras, a astrologia permitiria o conhecimento das coisas formais (astros) e a medicina, das coisas materiais ou corporais, resultando a combinação de ambas na possibilidade de alongamento da vida, pois, como o diagnóstico para aqueles homens que cuidaram dos corpos era procedimento delicado, o entendimento da conjunção dos astros e sua interferência nos corpos, gerando os sintomas no doente, era um caminho importante para levantar possíveis causas dos males. Mas para além do diagnóstico, o tratamento e a cura também não deveriam ser alheios à Astronomia, afinal, deviam visar restituir um estado inicial de equilíbrio e harmonia do corpo que igualmente precisavam ser desvelados para com o ambiente geral. Era por isso, por exemplo, que Roger Bacon recomendava que, para a execução da prática médica, eram necessários “conhecimentos de astronomia, para não obrar ao acaso ou por sorte”, e igualmente era imperioso o saber sobre as “mais secretas aplicações da geometria, da harmonia e da música”, já que, no governo do corpo ou no governo da coisa pública, era necessário saber sobre as “influências astrais” que “agem neste mundo como um todo, e sobre as coisas singulares”.

439 O corpo era uma parte das manifestações culturais da corte no período, fazendo parte da história “como as estruturas econômicas e sociais ou as representações mentais, das quais ele é, de certa maneira, o produto e o agente”. No mesmo sentido, as circunstâncias sociais, culturais e teológicas atribuem sentidos aos corpos, principalmente decorrentes da renúncia sexual.
440 Na introdução da obra, os autores apontam a relevância da ciência dos astros, a qual teria contida em si todas as outras ciências. Por exemplo, Pietro d’Abano defendeu o uso de imagens astrológicas para curar, desassociando-a da concepção de arte mágica ou supersticiosa.

No anteriormente citado Tratado de Astrología, a relação entre o corpo e os astros aparece com bastante clareza: “[…] deveis saber que, segundo a astrologia, o corpo do homem recebe condição em costumes e compleições dos sete planetas e doze signos, e recebe espírito vital da via do firmamento, que é a oitava esfera”. No Picatrix, esta relação surge ainda melhor desdobrada, ao se definir o corpo em comparação com os elementos do firmamento, estabelecendo-se diversas correspondências:

Seus membros interiores são sete, como os planetas e, na cabeça, tem sete ossos, como os dias da semana; nas costas tem vinte e quatro vértebras, como as horas do dia e da noite e vinte e oito articulações, o número das mansões da Lua e das letras do alfabeto. No seu ventre, os intestinos são tantos como os dias da Lua Nova, e contém 360 veias e outras tantas artérias, o número dos dias e das noites do ano e os graus da esfera. Seus humores são o número das estações do ano.

A descrição corporal numérica ou cômputo corpóreo é, pois, realizada tendo em vista o céu e admitindo-se uma simetria entre as porções do corpo e os elementos celestes, fazendo, desse modo, jus ao jogo de similitudes que então sustentava os saberes. Além dessas correspondências estelares, admitia-se igualmente a correlação entre os signos e o corpo, posto que “os doze signos estão no céu semelhantes aos membros do corpo”: assim, “Áries dizia respeito à cabeça, Touro ao pescoço, Peixes aos pés”. O Picatrix vai ainda mais longe que El Libro Conplido en los Iudizios de las Estrellas nessa asseveração, ao listar as relações de cada signo com as partes do corpo, a começar por Áries, cujas partes são “a cabeça, a face, a pupila do olho e as orelhas, Câncer regia “o peito, os peitos, o estômago, o baço, o pulmão, as costas e os lugares ocultos do peito”; Escorpião foi responsável pelo “pênis, os testículos, o períneo, a bexiga, as nádegas, o escroto e a vulva das mulheres” e assim se apresentavam as correspondências para cada signo do zodíaco”.

Admitia-se, para mais, que os astros interferiam nas ações relacionadas ao corpo, tendo em conta que a leitura do microcosmos se dava por correspondência ao macrocosmos. Nessa relação, todos os domínios da natureza se aplicavam em um jogo das semelhanças duplicadas, garantia de que cada coisa encontraria, em uma escala maior, seu espelho no macrocosmos. Dessa forma, acreditou-se na existência de um grande mundo, que englobava todas as coisas criadas e contava, em posição privilegiada, com uma criatura que reproduzia, dentro de suas dimensões restritas – um microcosmos –, a ordem imensa do céu, dos astros, das montanhas, dos rios e das chuvas. Portanto, a distância entre microcosmos e macrocosmos, apesar de ser imensa, não seria infinita, pois tudo que havia no mundo podia ser contado e ter o seu duplo em um domínio perfeitamente fechado. E a natureza, em um jogo de signos e semelhanças, encerrava em si mesma a figura duplicada do cosmos.

Antes dos séculos XIII, XIV e XV, recorria-se já a essa similitude, mas o jogo das semelhanças aparece de forma intensa nos escritos desse período que associam a medicina e a astrologia, e leem o corpo humano por suas prováveis correlações com os astros. A partir dessa premissa das parecenças entre todas as peças do mundo, lidas de forma sintética pelos nexos corporais, desenvolve-se todo um discurso acerca de curas, remédios e cuidados, e ainda sobre poções, venenos e simpatias que, dentro dessa lógica maior, podiam ou não favorecer os homens. Tal era a força dessa convicção das similitudes que o próprio céu era interpretado como um ser vivo, um macrocosmos que continha tudo, inclusive as chaves para prever a “realidade e seu comportamento”. Nesse sentido, as fontes medievais destacam as correspondências tanto através de descrições do “homem astrológico”, cujos membros correspondem a diversas partes da abóbada celeste, quanto descrevendo os quatro elementos que formaram o mundo sublunar e os humores, ou seja, as qualidades e temperamentos associados a eles. Sobre esta última associação, diz Raimundo Lúlio que houve até mesmo inferências nos apetites humanos, o que decidiria inclusive as gestações:

O apetite do céu move, com efeito, a vontade segundo a natureza e as necessidades do corpo. Por exemplo, leva o homem a procriar, para multiplicar a espécie humana. Quando o corpo tem muito fogo e pouca água, dá-lhe vontade de beber e de comer. E assim igualmente acontece com as bestas e as plantas.

No Libro Conplido en Los Iudizios de las Estrellas, vários capítulos tratam do tema das correlações, alguns anunciando a relação já no título: “saber qual membro do corpo do homem corresponde a cada planeta”. O capítulo 13, especificamente, propõe saber melhor sobre “o melhoramento do corpo e sua danação”. Outros trechos especificam melhor a correspondência do zodíaco com as partes do corpo, como aquele em que é afirmado que “os doze signos são, no céu, semelhantes aos membros do corpo, e de suas naturezas se governam os quatro elementos, os que são raízes dos corpos e estão retidos neles.” Essas correlações entre os signos e as partes do corpo aparecem com frequência em muitas passagens dos textos astrológicos, pois a referida crença de que o corpo era um microcosmos favorecia a reafirmação de tais paralelismos e, comumente, se apelava para a máxima de que nada havia no mundo superior que não encontrasse “seu semelhante e seu análogo no ser humano, pois o homem, como espécie, é cópia do mundo superior.”

Nenhum texto, entretanto, exemplificava melhor tais reciprocidades do que o Lapidário, que, tendente à magia, tratou das propriedades das pedras e suas relações com as configurações astrológicas, sendo considerado também um tratado de temática médica. O Lapidário, especificamente, apresenta 360 pedras, cujas propriedades estão relacionadas aos 360 graus do zodíaco, repartindo trinta pedras para cada um dos 12 signos. Cada uma recebe suas propriedades físicas e suas virtudes operativas das estrelas que formam as constelações. A maior parte das descrições das pedras traz a indicação de uso para o tratamento de doenças, mas também sobre seu emprego nas mais diversas circunstâncias da vida cotidiana:

Do décimo primeiro grau do signo de Touro é a pedra a que chamam Coral […]. Sua propriedade é a de constranger moderadamente, e se a destemperarem moída com vinho, ou com alguma coisa, e a derem de beber aos que cospem sangue, serve-lhes muito. E também ajuda aqueles que não podem urinar. E quem a bebe com algum líquido desfaz o apostema que se faz no baço. A estrela que está entre a que se encontra no nariz de Touro, e a outra, que se encontra no olho meridional dessa mesma figura, tem poder sobre esta pedra, que dela recebe sua virtude […].

Como se vê, admitia-se que o poder dos astros interferiria para curar, daí a necessidade de os físicos conhecerem a ciência das estrelas, pois se acreditava na sua potencialidade na concepção/preparação dos remédios, os quais, por sua vez, eram resultado de uma complexa relação entre a identificação da pedra e a correspondência com um grau específico de algum signo, complementado pelo seu uso em determinada matéria, neste caso, o vinho. Necessitava-se saber ainda qual estrela teria poder sobre a pedra e se este poder seria positivo ou negativo, a saber, se serviria para curar ou envenenar.

A propósito desse potencial negativo da influência astral nos corpos, muito se escreveu, por isso, no Libro de las Cruces, várias predições estão relacionadas à possibilidade de mortes por danos nos corpos. Entre os diversos motivos contemplados, um dos focos é a vida dos fetos e das grávidas. Cogitava-se que, se a conjunção de Saturno e Júpiter estivesse na quinta casa, aconteceria “destruição e arruinamento das criaturas nos ventres das mães, e morrer[iam] as grávidas”. Por vezes também destacavam-se as epidemias, se os mesmos planetas estivessem em conjunção na casa 8 significava que as pessoas conheceriam “enfermidades, e epidemias, e maneiras de febres longas, e enfermidades de baço e o que lhe assemelha”. E mais ainda se detalhava que: “a conjunção de Saturno e Marte na oitava casa significa o efeito de enfermidades sanguíneas e de apostemas nas cabeças, e febres continuas e agudas”. De tudo o que resultariam, sem dúvida, mortandades.

Nos escritos da corte portuguesa, esta tópica sobre o corpo também é recorrente. O cuidado com esse, pela prevenção astral, aparece relacionado, sobretudo, às previsões de morte, destacando-se entre elas a morte por peste, morte atribuída à “configuração constelar”; como foi o caso da grande pestilência, que por muito tempo antes foi prenunciada pelos astrólogos. Da mesma maneira, a conjunção de Saturno e Marte na oitava casa traria como efeito enfermidades “de sangue e de apostemas nas cabeças, e febres contínuas e agudas”, semeando desse modo, mortandades.

O sentido negativo e positivo da influência astral surge igualmente associado aos sexos. A rigor, afirma-se que “os planetas, quando andam direito, são masculinos e, quando são retrógados, femininos, e o mesmo se passa com os signos”. A esse respeito, Enrique de Vilhena, no seu Tratado de Astrología, explica que seis signos são masculinos e seis femininos, sendo os últimos signos da noite, enquanto os primeiros, do dia. A atribuição do sentido negativo para as mulheres fazia, pois, ecoar todo um conjunto de escritos que, ao longo de séculos, reafirmava os parâmetros de sua inferioridade, pois considerava-se que correspondiam aos planetas retrógados aqueles justamente que estavam em posições infelizes e, por isso, influíam negativamente; do mesmo modo que a noite estava associada ao demônio e à insegurança.

Ao lançarmos, pois, luz sobre as várias maneiras de considerar as influências astrais nos corpos e evidenciar os cuidados, as curas e as possíveis prevenções decorrentes desta relação, é possível afirmar que se partilhava a ideia de que a astrologia garantia a própria continuidade da vida terrena tanto quanto poderia interrompê-la. Em outras palavras, pelo estudo dos astros e das compleições, julgava-se ser possível analisar a reprodução humana, o processo das gestações e os perigos de morte, traduzidos em doenças como a peste ou em envenenamentos. Porém, além de ser contemplada como uma forma de garantir a vida, ainda que pudesse ensinar também a acabar com ela, o saber das estrelas serviu da mesma forma para reafirmar as posições sociais determinadas no período, como ilustram os sentidos negativos atribuídos aos corpos das mulheres.

Os influxos astrológicos, pois, não eram considerados de somenos importância, tanto que até mesmo jogos prestigiados, como a caça ou o xadrez, eram pensados através das influências astrais e, no caso deste último, estes influxos podiam inclusive definir lugares sociais no tabuleiro. Que relação pôde ser estabelecida entre o conhecimento celeste e o ato de jogar é o que cabe examinar a seguir.

Capítulo 3

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A determinação dos astros sobre o que há de vir

3.3 Dominar os astros: o ensinamento dos grandes pensadores

O arcebispo de Sevilha D. Pedro Gómez de Albornoz, preocupado com a devoção espiritual, em seu Libro de la justicia de la vida espiritual, escrito no século XIV, relata uma prática supersticiosa que remete diretamente ao determinismo astral na sua diocese:

Espécie de idolatria é a de alguns que por astrologia querem adivinhar as coisas futuras e dizem que os planetas e corpos celestiais têm influência necessária nos corpos inferiores que estão na terra, e assim julgam que o que nasce [por influência de] uma constelação terá o bem e se por outra, mal. E esses pecam gravemente, porque subtraem e tiram nossas obras da magnificência e do serviço de Deus.

Além da acusação de idolatria àqueles que queriam usurpar o conhecimento divino, conclui o arcebispo que, se fosse verdade que a conjunção astral relativa à data do nascimento determinava que uma pessoa haveria de fazer bons ou maus feitos, como muitos diziam, não existiria o livre-arbítrio para escolher entre bem e mal, de forma que “nossas obras seriam feitas por violência e força e não seriam dignas de prêmio nem de pena, assim como não o são as obras dos animais brutos, o que é falso e contra a fé”. Além disso, para ilustrar o enunciado e reafirmar a vanidade da crença nas previsões astrológicas, o religioso cita o exemplo de Jacó e Esaú, nascidos sob a mesma constelação, e que tiveram, não obstante, sortes totalmente opostas. Este célebre caso havia, a propósito, também inspirado Santo Agostinho no seu combate à astrologia em A Doutrina Cristã, obra em que o filósofo comenta não serem poucos os gêmeos que nascem sob a mesma e idêntica constelação, porém, “suas ações e os seus eventos na vida são o mais das vezes tão diferentes que um dos gêmeos pode estar vivendo na felicidade, ao passo que o outro no infortúnio”, tal como o caso de Esaú e Jacó:

Nasceram gêmeos e quando nasceu o segundo, Jacó percebeu que segurava com a mãozinha o calcanhar do irmão. Certamente não se podia fixar para eles dias e horas diferentes, e então sua constelação foi idêntica; mas a Escritura está aí, conhecida em todas as línguas, para atestar como foram diversos os costumes deles, suas ações, suas penas e seus êxitos.

Agostinho aponta ainda que a justificativa dos astrólogos, para ocasiões similares ao nascimento de gêmeos, era de que mesmo uma fração mínima e imperceptível de tempo teria grande poder natural, devido à altíssima velocidade dos corpos siderais; o que explicava as configurações astrais peculiares a cada irmão. Argumento que não convence o filósofo, que acusa esta arte de depender do azar em vez da perícia.

É Agostinho, a propósito, quem primeiramente estabelecerá a ligação entre a demonologia e as superstições e, após sua proposição, a sedução diabólica será frequentemente invocada pelos clérigos como a causa primeira da queda dos homens no pecado. O filósofo concentrou-se no problema dos homens que tentaram adivinhar o futuro e, por isso, de sua pena saiu o ataque mais virulento, ao menos entre os Padres da Igreja latina, contra a pretensa verdade das predições dos astrólogos, bem como sobre as consequências do determinismo astral. Seus argumentos, assim, converteram-se em um locus classicus nos diversos ataques contra a “pseudociência” astrológica, inclusive no período aqui tratado. Pode-se dizer que o passado do jovem Agostinho, como praticante de astrologia, deve ter influenciado em seu forte compromisso anti-astrológico depois de sua conversão. E nessa tendência, entretanto, Agostinho não foi uma figura isolada, pois foram muitos os padres e escritores cristãos que demonstraram ter se interessado pela astrologia. Nas Confissões, Agostinho relembra seu passado envolvido com práticas astrológicas, ao comentar o pedido de um amigo para obter o horóscopo: “eu, que neste tema já havia começado a inclinar-me pela opinião de Nebrídio, não me neguei a fazer o horóscopo e a dizer-lhe o que ia ocorrer a ele, que andava cheio de dúvidas, porém lhe adverti que já estava quase convencido de que aquelas coisas eram ridículas e vãs.” O doutor ainda conclui, nessa obra, que os acertos dos astrólogos eram devidos não a uma arte, “senão ao puro azar”.

Por isso, o santo acusa os genetlíacos, aqueles que forneciam previsões astrológicas pela data do nascimento, também chamados astrólogos, de proporcionarem uma espécie de escravidão aos homens que se convencem dos poderes dos astros de adiantarem certas coisas:

Investigando a posição dos astros no instante do nascimento de cada um, esforçando-se por deduzir disso nossas ações ou os eventos de nossa vida, e passando então a prevê-los, cometem grande erro e proporcionam aos homens, a preço barato, penosa escravidão. Realmente, todo homem livre que vai consultar os tais astrólogos paga-lhes para sair escravo de Marte, Vênus, ou quiçá de todos os astros.

O bispo de Hipona, como foi adiantado anteriormente, designou como mathematici os adeptos das práticas supersticiosas relacionadas ao saber dos céus, apontando-os como aqueles que insistiram na previsão astrológica para além das suas capacidades naturais. Essa associação da astrologia com a matemática feita por ele, vale notar, teve como finalidade avaliá-la com o mesmo rigor com que se analisavam os enunciados matemáticos, em outras palavras, como uma linguagem formal cujo desenvolvimento deveria ser objetivo, demonstrativo, e infalível para poder ser aceito como ciência verdadeira. A avaliação lógica, para o bispo adepto dos ensinamentos helenistas, implicava na necessidade de levar sempre a resultados exatos e mensuráveis dentro do próprio sistema. Para outros pensadores cristãos, entretanto, a relação da astrologia com a matemática se dará a partir de outras acepções. Avançando significativamente no tempo, é possível observar, por exemplo, que Hugo de São Vítor mencionou a doutrina científica mathesis, que, se escrita com o “t” não aspirado significaria a vaidade daqueles que depositam o destino dos homens nas constelações, ou os chamados supersticiosos. Roger Bacon em contrapartida, afirmou que havia duas espécies de matemáticas, as que fazem parte da filosofia e as que pertencem à magia. A primeira era útil aos cristãos e recomendada pelos Padres da Igreja; a segunda era prejudicial e por isso mesmo reprovada:

Pois as matemáticas são duplas; umas são supersticiosas ao submeterem todas as coisas e o livre-arbítrio à necessidade, e ao pretenderem um conhecimento certo do futuro; mas essas matemáticas foram rejeitadas pelos santos e pelos filósofos, conforme o mostro muito claramente. Quanto às outras matemáticas, que são uma parte da filosofia, embora tenham o mesmo nome que as precedentes, são-lhes opostas pela maneira como são estudadas, sendo muito insistentemente recomendadas pelos santos.

Ao contrário de Tomás de Aquino, o franciscano inglês Roger Bacon (1219-1292) foi, sem dúvida, o teólogo do século XIII que se mostrou mais favorável à astrologia e ao estudo dos segredos da arte e da natureza, mesmo que condenasse a magia. Consciente da hostilidade que a astrologia suscitava entre as autoridades eclesiásticas, Roger Bacon fustigava os que, sem distinguir o lícito e o ilícito, rejeitavam toda esta ciência que ele designava como ciência matemática. Bacon diz ainda que por ser a astrologia uma aplicação da matemática, nada se podia objetar contra sua validade como saber científico, mas somente contra o uso da astrologia nas práticas mágicas. A astrologia supersticiosa era então aquela que afirmava que podia existir um conhecimento exato a respeito de tudo que aconteceria no futuro, o que ia contra a regra da Igreja, a moral e o gosto dos santos homens. Bacon propõe, no entanto, o uso da astrologia científica (matemática) a favor da Igreja, mas não só isso, ele aconselha certo aproveitamento de práticas supersticiosas para que a Igreja pagasse na mesma moeda aos adversários.

Se a Igreja examinasse atentamente as profecias do texto sagrado, as afirmações dos santos, os oráculos da Sibila e do Merlin e de outros profetas pagãos, e se a tudo isso juntasse as conclusões da astrologia e da ciência experimental, então ela, a Igreja, seria sem dúvida capaz de se precaver contra o tempo do anticristo e dos seus seguidores.

Para Bacon, além disso, a liberdade individual ou livre-arbítrio estaria a salvo, desde que o homem soubesse reprimir a influência das suas paixões. Explica ele que, por raramente as multidões se deixarem guiar pelo espírito e pela razão, eram levadas por isso, pelas paixões animais, e estavam sujeitas à influência das estrelas, ou seja, a constatação do religioso foi de que, porque a maioria das pessoas eram pecadoras, acreditavam que estavam entregues às influências astrais, culpando o céu por seu mau comportamento e abrindo-se por isso para as predições astrológicas. Entretanto, havia uma diferença entre a predição relacionada ao futuro de um homem e aquela que tratava do coletivo ou de instituições como a Igreja. O filósofo faz uma interessante comparação entre as práticas astrológicas coletivas e pessoais, pois, para ele, as mesmas previsões feitas por certas conjunções astrais para revelar o futuro das pessoas, poderiam ser feitas para revelar o futuro das religiões, alcançando melhores resultados, por não partir de uma disposição egoísta. Segundo Bacon, portanto, as religiões também eram colocadas sob o signo de uma conjunção “de júpiter e de um outro planeta”. Para a religião cristã especificamente, a conjunção de Júpiter e de Mercúrio era a configuração astral principal e aquela que potencializaria as qualidades místicas mais favoráveis. O interesse de Bacon em fazer o horóscopo das religiões, se deu, inclusive, porque o cristianismo teria uma conjunção mais afortunada que as demais. Por isso, segundo o franciscano, a comprovação da superioridade das influências astrais para a fé católica, através do estudo do céu, seria um meio infalível de converter os infiéis, “porque o exemplo vale mais que o discurso.” Este é um curioso exemplo do que o doutor disse anteriormente a propósito de como a Igreja poderia se valer de coisas ruins, como as configurações astrais, para se engrandecer, convertendo-as em benefício imediato, a saber, através da superioridade de seu horóscopo, poderia até mesmo conquistar algo precioso para os cristãos do século XIII: a conversão dos infiéis.

Tomás de Aquino, à semelhança de Roger Bacon, também tratou da serventia de um caráter coletivo da astrologia, não para fazer o horóscopo da religião católica, o que seria considerado pecado pelo doutor, mas para determinadas decisões coletivas relativas aos efeitos naturais das estrelas sobre o corpo. O doutor Angélico admitiu que os astros tinham uma influência direta sobre esse, legitimando, assim, de alguma forma, os avisos e prognósticos a respeito de epidemias ou catástrofes naturais, pois eram da ordem do sensível. Não admitia, entretanto, a consulta sobre o destino que não passasse por intermediários materiais, como o corpo e demais elementos naturais, ou seja, considerava ilícitas aquelas indagações feitas para os astrólogos sobre as coisas da alma, dado que a influência astral só podia imprimir sua ação sobre o intelecto humano através das paixões (faculdades sensitivas). Desse modo, o filósofo advertiu sobre a impropriedade de decisões individuais que fossem consideradas inevitáveis devido a uma influência direta dos astros, pois esta só seria possível se procedente das paixões. Se este não fosse o caso, configurava, portanto, uma negação do livre-arbítrio. Tais proposições levaram-no a afirmar a impossibilidade de uma influência direta das configurações astrais no porvir: as estrelas inclinam mas não exigem. Essa argumentação apresentada na Summa contra Gentiles não aceitava a possibilidade de que as influências dos corpos celestes inclinassem os homens ao pecado se esses fossem suficientemente virtuosos para amenizá-las, portanto, os corpos celestes não seriam a causa dos atos que procedem da vontade. Poderiam, contudo, inclinar os homens a determinados atos, quando partiam das faculdades sensitivas, mas nunca quando dependiam da vontade e do livre arbítrio.

Sentido diverso propôs a conhecida sentença, tão propagada quanto a anterior, de que “o homem sábio dominará os astros”, atribuída ao poema pseudovidiano De Vetula. Esta foi retomada pelos doutores da Igreja, como Roger Bacon, e da mesma forma por muitos outros textos que tratam da astrologia, como o tratado catalão de Prenostication de la vida natural dels hòmens, – obra feita por Henri Mayer na segunda metade do século XV. A máxima tem pelo menos dois significados difundidos pelos homens de saber preocupados em definir a arte astrológica. O primeiro prega que o astrólogo tem o poder de ler o livro do céu e por isso pode evitar certos males se previstos a tempo, ou seja, a antecipação permitiria o domínio sobre os astros e sobre os destinos. Para os afeitos à astrologia, a dominação dos astros significou um incentivo para o seu estudo, sobretudo pela ideia de que conhecimento é poder. Esta interpretação do adágio só é feita em textos que tinham vindo do trabalho de tradução judeu e árabe ou por intermédio desse, pois os textos que tiveram a função de propagar a opinião da Igreja optam pelo segundo significado.

Esse segundo sentido foi mais frequente e esteve ligado a um combate às previsões astrológicas ou ao elogio para aqueles que não se inquietavam nem buscavam os significados das adivinhações astrológicas. No Corbacho, por exemplo, quando o Arcipestre de Talavera relembra uma passagem bíblica de Salomão, afirma que: “O homem sábio senhoreia as estrelas. Porque não são as estrelas nem os planetas que o senhoreiam; se sábio, de mal fazer se guarda, senhoreia destinos e planetas; porém, se for louco e quiser fazer mal, faz a si mesmo”. O ponto fundamental da passagem é atestar que o homem deve por si e por sua fé agir corretamente, sem se basear no que dizem os astrólogos. Senhorear os planetas é, portanto, não deixar que “eles” definam nada sobre a vida. No mesmo sentido, essa sentença também aparece em uma passagem que trata do aspecto sedutor da arte do céu, no escrito justamente de um rei conhecido por sua fé, D. Duarte. Advoga este que a “católica determinação”:

[…] declara o homem sabedor se assenhorar das estrelas, e elas não podem mais fazer que dar-nos tentação ou algumas realizações de desejos; mais escrito está que nosso senhor não consentirá sermos tentados mais do que se deve saber por boa vontade, se quisermos poder resistir.

Os diversos escritos, de homens preocupados com os princípios da fé cristã, como os de D. Duarte de Portugal, por exemplo, incidem, em geral, sobre as maneiras de salvaguardar o livre-arbítrio e sobre a necessidade de resistir às paixões, de forma que a resistência em consultar os astrólogos tinha duplo alvo. Uma das fontes de muitos textos ibéricos, Tomás de Aquino, fonte inclusive daqueles escritos sob a égide da dinastia de Avis, mas não só, é retomada também a propósito desse ponto, dado que, na Suma Teológica, é defendida a necessidade de resistir às paixões, que eram resultado das influências celestes:

São muitos os homens que seguem as paixões, que são movimentos do apetite sensitivo, nas quais podem influir os corpos celestes; são poucos, entretanto, os sábios que resistem a elas. Esta é a razão do porquê os astrólogos possam predizer na maioria das vezes coisas verdadeiras se falam no geral. Não sucede assim se falam de particular; porque sempre fica a possibilidade de que qualquer homem resista às paixões por seu livre-arbítrio. É de notar que os mesmos astrólogos afirmam que “o homem sábio domina os astros” ao dominar suas paixões.

O doutor Angélico, ao fazer uma crítica às previsões dos astrólogos, estabelecendo uma relação entre a possibilidade de uma previsão não se realizar pela força moral (e o livre-arbítrio), revela que os próprios astrólogos assumem a necessidade de controlar as paixões, ao proporem que o homem sábio domina os astros. Denunciando certa conciliação de suas ideias com a dos astrólogos e certa tolerância com a prática destes, Tomás de Aquino admite, na Suma, que as influências dos corpos celestes podem, sim, interferir na vontade e no entendimento humanos, afirmando por isso que os astrólogos acertavam as previsões generalistas e que, “tanto o entendimento como a vontade, provêm de alguma maneira das faculdades inferiores que dependem de órgãos corpóreos”. Contudo, a vontade não tem que seguir necessariamente tais inclinações astrais. E por isso “não há inconveniente algum em que o efeito dos corpos celestes seja impedido pela ação da vontade, não só pelo que ao homem se refere, mas inclusive no que diz respeito àquelas coisas às quais se estendem a ação do homem”. Os corpos estelares, portanto, não podem produzir diretamente os atos e, sim, o livre arbítrio é que o faz. Podem, contudo, “inclinar dispositivamente a ele, atuando sobre o corpo e, por consequência, sobre as tendências que brotam das potências sensitivas, que são atos de órgãos corpóreos”. Se por um lado, em alguma medida, o entendimento e a vontade provinham das faculdades influenciadas pelas configurações astrais, e as previsões generalistas tinham grandes chances de se realizar, por outro, foi destacado que a força moral sempre era capaz de barrar essas influências. Assim, a síntese tomista sobre a influência astral procurou acima de tudo afirmar o livre arbítrio, mas explicou para isso, de maneira aprofundada, os passos que fizeram possível o movimento dos céus interferir nas almas.

Alicerce dos ensinamentos tomistas e, por isso, tão propagados a partir do século XIII quanto a obra do santo, Aristóteles foi primeiramente conhecido no medievo como um astrólogo e mestre do ocultismo, devido à abundância de teorias e de sistemas científicos árabes que se infiltraram nas terras cristãs por via das traduções latinas. Propagava-se que Aristóteles alegava que as estrelas e os planetas eram compostos por uma quinta essência superior, e quatro outras, terra, ar, fogo e água, que se encontravam na Terra. Sustentava-se, assim, que a revolução dos corpos celestes era a responsável pelo desenvolvimento da vida e pela promoção das ações terrenas, porém, isto não significava necessariamente que Aristóteles considerava que alguém podia predizer assuntos terrenos observando os céus. Ainda assim, a perspectiva aristotélica do saber sobre os astros foi mais desafiadora para a Igreja, pois, enquanto a acepção neoplatônica difundia que o macrocosmos do universo exercia um impacto constante no microcosmos de cada ser humano, os ensinamentos aristotélicos destacaram propriamente as análises dessas influências específicas. Assim, o argumento aristotélico mais difundido pelos religiosos foi também o mais controverso, a saber, a afirmação de que se os corpos celestes poderiam ter efeito diretamente sobre o intelecto e a vontade. Para os pensadores cristãos, diferentemente, isso seria o mesmo que dizer que o intelecto confunde-se com as faculdades sensitivas. Os ensinamentos de Aristóteles, contudo, foram de algum modo simplificados. Sua premissa era de que a impressão dos corpos celestes poderia, de maneira indireta, chegar ao intelecto ou à vontade na medida em que ambos estavam unidos em sua atuação pelas virtudes (faculdades) sensitivas. A vontade não estava, para ele, movida pelo apetite sensitivo, dado que era livre para fazer escolhas. Sua conclusão, portanto, era de que os corpos celestes não tinham necessariamente o poder de conduzir os atos.

Para São Tomás, fiel à concepção instrumentalista da inteligência – que explicava o intelecto como instrumento da vontade divina e celeste – assim como Aristóteles, as substâncias espirituais superiores estavam para nossas almas tal como os corpos celestes estavam para os corpos inferiores. Por sua vez, da mesma maneira, os astros eram entendidos como princípios ativos universais que exercem sua influência sobre o mundo dos corpos: a potência divina, ou a potência das substâncias angelicais, atuará sobre nossa alma na qualidade de princípio universal. Porém, mesmo quando os princípios ativos universais são os astros, os corpos sobre os quais exercem sua influência não estão isentos de princípios ativos particulares, próprios a eles. O mesmo vale para a operação intelectual: primeiro devem ser admitidos os princípios ativos universais que são Deus ou os anjos. Mas é preciso que, além disso, um princípio próprio pertença ao homem para torná-lo efetivamente inteligente, e esse princípio é o intelecto agente, justamente aquele que nos permite fazer escolhas. Assim, a conclusão a partir desse princípio aristotélico, para São Tomás, Lope de Barrientos, Eymerich, Arcipreste de Hita, Álvaro Pais, dentre outros letrados parece ser a mesma: a astrologia é cientificamente possível, mas espiritualmente perigosa, embora ela não possa fazer qualquer coisa que se interponha no caminho da liberdade humana.

É conhecida a importância dos ensinamentos tomistas para pontos fundamentais da moral cristã no que diz respeito ao porvir. O dominicano ofereceu uma análise minuciosa dos modelos de profecia, delimitando três tipos principais: a profecia da predestinação; a profecia da presciência e a profecia da desgraça. Essas podiam ou não contemplar as contingências. A profecia da predestinação pregava o desenrolar das ações futuras como sua própria causa e, por isso, era impensado que ela não se cumprisse; já a designada profecia da desgraça podia ou não se cumprir, pois assinalava de forma antecipada a ordem de uma causa sobre os seus efeitos, uma ordem que por vezes era entravada por acontecimentos que surgiam de permeio. Por fim, a profecia da presciência significava o conhecimento de certas realidades futuras, em todas as possibilidades dadas por Deus. Sendo assim, a profecia da predestinação adiantava aquilo que era inevitável de acontecer, podendo ser exemplificada por uma estrutura rígida; por sua vez, aquelas profecias que tinham que contemplar a possibilidade de mais de um resultado, as que consideravam o livre-arbítrio do homem, eram justamente as profecias da presciência. Estas podiam relacionar-se com os bons e os maus, contudo, a profecia da predestinação apenas dizia respeito aos bons; daí tantas histórias de santos predestinados. Profetizar não significava substituir o livre-arbítrio, nem provocar ou predestinar, pois cabia a um homem, eleito por Deus para fazê-lo, que interpretasse os sinais enviados pelo céu, sabendo das suas limitações, já que esses sinais eram difíceis de serem desvendados, sobretudo, por seu caráter segmentado. De acordo com a Suma Teológica, a profecia exercia uma função de carisma social, sendo destinada a oferecer ao mundo uma revelação divina julgada necessária para a salvação e para instruir o gênero humano por intermédio de alguns privilegiados.

A profecia não incide apenas sobre o futuro, mas sobre todas as realidades divinas que ultrapassam o alcance do espírito humano. Deus não revela ao profeta senão uma parte do que é necessário conhecer e a colaboração ativa da vontade do profeta é indispensável para transmitir a mensagem recebida.

Feitos esses esclarecimentos mais gerais sobre o que se pensou do adiantamento do futuro, no que diz respeito à astrologia especificamente, o doutor trouxe valiosas contribuições. Deu seguimento, por exemplo, à distinção feita entre um estudo mecânico e uma aplicação supersticiosa dos movimentos astrais ou astrologia natural e supersticiosa, na definição de Isidoro de Sevilha. Segundo este último, “a observação dos signos para construir horóscopos e predizer o futuro e outras superstições deste tipo são contrárias à fé, e os cristãos devem ignorá-las totalmente e nem sequer escrever sobre elas”. Esta distinção segue vigente no século XIII, quando justamente São Tomás de Aquino desenvolve sua reflexão sobre a capacidade que tem o homem para conhecer o que há de vir. Essa perpetuação dá-se porque a maioria dos doutores da Igreja, como Santo Isidoro, propunham que as artes divinatórias eram uma usurpação do poder divino. Em contrapartida, esses mesmos ou outros homens de saber, afeiçoados à classificação dos conhecimentos e atraídos pela curiosidade sobre o funcionamento de determinada prática, gostavam de identificar as diferentes artes de adivinhação e se pronunciar sobre cada uma delas. Assim, via de regra, a concepção que tinha a Igreja da magia e das práticas divinatórias se pode resumir pela proposição de São Tomás de Aquino de que, conquanto se aceitasse algum aspecto positivo da astrologia, dever-se-ia afirmar enfaticamente que a operação mágica não era outra coisa senão uma troca com os demônios.

Em sua Suma Teológica, o santo expôs o ponto de vista eclesiástico segundo o qual as operações divinatórias são inspiradas pelos demônios, sendo, portanto, práticas supersticiosas que condenavam a quem as realizasse ou as aceitasse, sem importar se esse fosse um leigo ou um religioso. Isto porque a intervenção dos espíritos malignos transformaria a astronomia profética em uma superstição religiosa, quer dizer, um componente privado de fundamentos razoáveis ou lícitos, que desviaria o fiel da verdade de Deus. Assim, o astrólogo entraria em contato com poderes sobre-humanos que não mereciam sua adoração ou sua submissão e, portanto, desviá-lo-iam da única adoração válida, a de Deus.667 Não é, pois, de se estranhar que o doutor rechace a astrologia profética, destacando, entretanto, que não era impossível reconhecer, ao observar a repetição das mesmas circunstâncias e dos mesmos feitos, que se pudesse chegar a predizer algum acontecimento futuro, desde que correspondesse a aspectos naturais – o que condizia com a classificação mencionada por Isidoro de Sevilha. Desse modo, era aceitável predizer as condições climáticas que viriam e, também, baseando-se em conhecimentos estritamente astronômicos, fazer a estimativa dos eclipses. Para o santo, esse estudo dos astros não deveria em nenhum momento proporcionar ao homem a faculdade de predizer um acontecimento único antes que se produzisse, pois a omnisciência pertencia somente ao Todo-poderoso.

667 “Para a espiritualidade cristã, a loucura do Cristo crucificado mostra-se mais sábia do que toda sabedoria humana e, portanto, do que a sabedoria grega, porque indica que não basta saber. Ou, dito de outra forma: sua maior sabedoria reside na indicação de que o saber de Deus significa sempre, a cada tempo e lugar, uma “boa” interpretação da existência, um revirar de cabeça para baixo o dogma da existência como o que exclui, no instante, a perda, a morte, as condições do devir. O Cristo crucificado expõe a “loucura” de incluir, no mesmo instante, vida e morte.”

Tal qual Tomás de Aquino, Alberto Magno teve contato com obras traduzidas, como o Almagesto, o Tetrabiblos e os demais escritos dos astrônomos e astrólogos árabes. Contudo, nas suas explicações sobre a influência astral na vida terrena, o dominicano seguiu por uma linha menos ortodoxa do que a do doutor Angélico. Para Alberto Magno, uma boa explicação do funcionamento do mundo era aquela aristotélica de que todos os acontecimentos naturais terrenos são provocados pelos movimentos celestes, através de um quinto elemento que se acrescentava aos elementos terrenos ar, fogo, terra e água. Ele também destacava que apenas a alma humana dependia diretamente do primeiro motor, que é Deus, e escaparia assim ao controle das estrelas; mas se ela se deixasse levar pelos impulsos da carne, mergulharia, como acontecia quase sempre com a maioria dos homens, na sua dependência. Partindo deste ponto, o teólogo advogava que a prática dos nascimentos, a determinação das horas propícias para tratar de negócios e a inscrição de sinais astrológicos nos minerais permitiriam realizar certas operações maravilhosas. E chegou mesmo a afirmar que era pouco razoável e contrário à liberdade humana menosprezar a consulta astrológica antes de empreender uma ação importante; o que o distancia do discurso dos demais doutores da Igreja.

Mais precisamente, esse distanciamento não significa uma negação dos preceitos da fé cristã, pois sua “teoria” da predestinação justifica o porquê de ele se valer de certas práticas astrológicas. Alberto afirma que nada é predeterminado em sentido positivo ou negativo e, além disso, para ele, havia uma nítida diferença entre algo que viria a ser “necessariamente”, algo predestinado, e algo que viria a ser apenas após uma previsão desse evento, por uma espécie de sugestão, ou seja, até que um evento previsto ocorresse, ele era simplesmente uma possibilidade contingente e inofensiva. Mas advertiu o filósofo que, se as influências celestes pudessem levar à geração e eventual morte e corrupção das criaturas terrestres, então seria lógico supor que um estudo dos céus poderia permitir a determinação do curso dos eventos futuros:

[…] se Deus ordenou neste mundo como para operar nas coisas criadas através de estrelas como se através de instrumentos, o que poderia ser mais desejável para o homem do que o conhecimento obtido por uma ciência que poderia ensinar-nos como esta e aquela mudança no mundo terreno é efetuada pelas mudanças nos corpos celestes.

Esta consideração é relevante por dar indícios de uma aceitação das previsões astrológicas, dado que Alberto Magno afirma que uma boa ciência é aquela que nos faz conhecer como as mudanças no mundo terreno são efetuadas pelo mundo superior. Para o bispo, isso permitiria que os humanos atingissem um entendimento o mais perto possível daquele de Deus. Assim estaria acessível aos homens conhecer uma ordenação sublime do universo, através das estrelas que seriam os instrumentos de Deus. Ainda que relativamente simpático à prática de prever pelas estrelas, contrariamente ao posicionamento de outros doutores, Alberto Magno fez ainda assim uma condenação às práticas astrológicas. Para ele, mais grave do que prever seria o uso de certas imagens mágicas inspiradas nas constelações, isso porque, em vez de simplesmente estudar os céus em busca de sinais preditivos de futuro, o uso de imagens astrológicas representava um meio pelo qual se podia aproveitar o poder dos céus para alterar a realidade. Esta sim foi, para o doutor, uma arte adveniente da magia e considerada perigosa, porque: “o uso de imagens inclina [homens] à idolatria, imputando divindade para as estrelas, e […] é empregado para ociosos ou maus fins”. Mesmo assim, ele não tinha a intenção de alertar as pessoas para longe do uso de imagens necessariamente; em vez disso, ele argumentou que essas imagens poderiam ser utilizadas quando em função da virtude celestial pelo comando de Deus, e só apresentariam um problema para o praticante se as condições em que o uso da imagem se baseava fossem secretamente nigromânticas.

Certamente, dentre os doutores da Igreja, Alberto Magno foi o mais condescendente com as práticas astrológicas, sendo menos afeito à argumentação comum da Igreja do que alguns homens de saber da Península Ibérica, que nem sequer foram religiosos, como D. Duarte. Contudo, há um nome em território ibérico cujos posicionamentos se assemelham, sem dúvida, aos do bispo: o do rei sábio Afonso X, que mais incentivou as compilações sobre a ciência das estrelas. Como ele e outros eruditos avaliaram o saber astrológico em relação às regras cristãs, é o que será tratado na última parte deste capítulo.

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