Astrologia e Fernando Pessoa II

A Astrologia nos 12 Poemas de Mar Português de Fernando Pessoa – Parte II

Vitorino de Sousa

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Poema VII

 Balança – Ocidente

Com duas mãos – o Ato e o Destino –
Desvendamos. No mesmo gesto, ao céu
Uma ergue o facho tremulo e divino
E a outra afasta o véu.
Fosse a hora que haver ou a que havia
A mão que ao Ocidente o véu rasgou,
Foi alma a Ciência e Corpo a Ousadia
Da mão que desvendou.
Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal
A mão que ergueu o facho que luziu,
Foi Deus a alma e o corpo Portugal
Da mão que o conduziu.

Comecemos por analisar o título escolhido para este sétimo poema – Ocidente.

Como se sabe, o sétimo signo do Zodíaco é Balança e está associado à Casa VII, cujo grau inicial se chama Descendente (por oposição à 1ª Casa, cujo grau inicial toma a designação de Ascendente). Assim, Ascendente e Descendente formam um eixo. Se o Ascendente astrológico é o grau do signo que estava a ascender no horizonte – a oriente – no momento do nascimento da pessoa, o Descendente é, portanto, o grau do signo que estava a descender no horizonte – a Ocidente – nesse mesmo minuto. Logo, Fernando Pessoa não poderia ter escolhido um título mais apropriado para este sétimo poema, o qual tem a ver com o ponto – a Ocidente – onde o Sol se põe! Deste modo, o sétimo signo e a Casa VII referem-se ao outro, ao par, à complementaridade, na medida em que, na roda zodiacal, está em frente de Câncer, 1º signo, o arquétipo da individualidade. De um lado está, portanto, o um (Eu); do outro lado está o dois (o Outro). E é, precisamente, por aí que Pessoa começa, dizendo:

Com duas mãos…

E prossegue, sempre colocando em paralelo duas ordens de valores, necessárias para realizar qualquer empresa – Com duas mãos – o Ato e o Destino (…) Foi alma a Ciência e Corpo a Ousadia (…) Foi Deus a alma e o Corpo Portugal.

A primeira estrofe reforça bem esta necessidade de cooperação, nascida da complementaridade típica do signo de Balança, onde cada uma das partes da parceria se encarrega da sua função específica:

Uma ergue o facho tremulo e divino
E a outra afasta o véu.

A segunda e terceira estrofe confirmam esta ideia: a segunda diz que a mão que desvendou teve como alma a Ciência e corpo a Ousadia; a terceira assegura que a mão que conduziu teve em Deus a Alma e no corpo Portugal.

Por conseguinte, cada mão fez a sua parte: uma desvendou e a outra conduziu.

Numa outra perspectiva, Fernando Pessoa, mais uma vez, afirma que a missão de Portugal tinha um caráter divino:

Foi Deus a alma e o corpo Portugal.

Portanto, Deus (a alma do projeto), ao determinar que essa tarefa de desvendar fosse realizada, precisava de um corpo que, no mundo físico, e usando duas mãos hábeis e corajosas (o Ato e o Destino), a levasse a cabo. E escolheu as de Portugal.

Aquilo que nós desvendamos está referido através de duas imagens:

um véu que se rasga (segunda estrofe), e
o facho que luziu (terceira estrofe).

Esta ideia, onde se mesclam desvelamento e iluminação, é típica do ponto zodiacal chamado Descendente (Ocidente). De fato:

Desvelamento: é nesse ponto do Horizonte que o Sol se põe. É o momento a partir do qual outras realidades são desveladas em consequência da diminuição da luz e a chegada da noite.

Iluminação: é a partir desse ponto que, visto da Terra, o sol parte para iluminar o outro lado do mundo, envolto da escuridão noturna.

Acima, a palavra Horizonte aparece escrita em itálico porque foi com ela que Pessoa intitulou o segundo poema desta série, o qual está associado a Touro. É certo que, neste contexto, a palavra foi escolhida e usada por mim, o que poderá tornar um tanto forçado o que vai seguir-se. A verdade, porém, é que quer Touro, (Horizonte), quer Balança (Ocidente) são regidos por Vénus. Ora esta entidade – também conhecida por Afrodite, a Sedutora – é a deusa quer do namoro (fase do relacionamento em que uma mão se dá à outra), quer do casamento (fase do relacionamento em que, tradicional ou simbolicamente, o homem pede a mão da mulher). O problema é que esse tomar da mão é usado frequentemente para possuir (Touro) e não para compartilhar (Balança). Ora, como pode facilmente comprovar-se, a posse acaba por gerar outros usos da mão: a pessoa que possui poderá alçar a mão para agredir quando se vê perante a ameaça de perda; a pessoa que é possuída poderá usar a mão para desenhar no espaço o gesto de despedida. O melhor, portanto, será manter o contato, segurando sem agarrar.

Resta lamentar que Fernando Pessoa, enquanto homem, não tenha encontrado a sua outra mão. As razões por que assim aconteceu são, decerto, várias e complexas. No entanto, tentou – o que é louvável!

Leia-se este excerto de uma carta que enviou à sua célebre amada Ophélia, em 1.3.1920:

Se prefere a mim o rapaz que namora, e de quem naturalmente gosta muito, como lhe posso eu levar a mal? A Ophelinha pode preferir quem quiser: não tem obrigação – creio eu – de amar-me, nem realmente necessidade (a não ser que queira divertir-se) de fingir que me ama. (…) Porque não é franca comigo? Que empenho tem em fazer sofrer quem não lhe fez mal – nem a si, nem a ninguém -, a quem tem por peso e dor bastante a própria vida isolada e triste, e não precisa que lha venham acrescentar criando-lhe falsas esperanças, mostrando-lhe afeições fingidas, e isto sem que se perceba com que interesse, mesmo de divertimento, ou com que proveito, mesmo de troça. Reconheço que tudo isto é cômico, e que a parte mais cômica disto tudo sou eu.

Pela sua maneira honesta, aberta e sincera de encarar o relacionamento com a Ophelinha, Fernando Pessoa parecia ter tudo para ser bem sucedido.

Para que resulte, porém, é preciso que hajam duas mãos!

Estas palavras, com que se inicia Ocidente, podem juntar-se às últimas para dar – Com duas mãos (…) o conduziu.

Conduziu o quê? O processo de translucidez da alma!

As duas mãos, a direita e a esquerda, podem ser entendidas como símbolos dos dois hemisférios cerebrais, o direito/intuitivo e o esquerdo/racional. A integração destas duas polaridades é um passo indispensável para conseguir-se colher a Unidade.

A utilização exclusiva (se tal é possível) ou preferencial de um deles, necessariamente concorre para o desequilíbrio. Quem, como a maioria dos seres humanos, utiliza mais o cérebro esquerdo, acaba por se transformar num culto intelectual ou num arguto cientista; talvez seja, até, uma sumidade, um perito em análise, dedução e raciocínio. Todavia, corre o risco de, por falta da colaboração (ou estímulo) do hemisfério complementar, assumir uma postura fechada e céptica em relação à linguagem simbólica e subjetiva.

Por outro lado, quem privilegia o hemisfério direito em detrimento do esquerdo, poderá cair na falta de lógica, expressar-se através de um discurso descabelado e utópico e, o que parece ser mais grave, carecer da capacidade de integração e aplicação da riqueza de todos os símbolos na dimensão concreta e mensurável do quotidiano.

Assim, aqui, como em qualquer outra dimensão da vida, não se trata do radical e escorpiano “ou… ou”, mas sim de um mais saudável, conciliador e libriano “não só… mas também”. Destas deduções se deduz facilmente que quem quiser fundir-se com a Unidade, não deve incorrer em radicalismos, nem deixar nada de fora. Quem conseguiu levar “O Carro” do seu Destino até à estação final, chamada Iluminação, decerto Com duas mãos (…) o conduziu.

Por isso é que o sétimo signo (Balança – Ocidente) é o arquétipo da complementaridade.

Desconhecemos se é pela mesma razão que, no Tarô, O Carro aparece em sétimo lugar na ordem dos 22 Arcanos Maiores!

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Poema VIII

Escorpião – Fernão de Magalhães

No vale clareia uma fogueira.
Uma dança sacode a terra inteira.
E sombras disformes e descompostas
Em clarões negros do vale vão
Subitamente pelas encostas,
Indo perder-se na escuridão.
De quem é a dança que a noite aterra?
São os Titãs, os filhos da Terra,
Que dançam da morte do marinheiro
Que quis cingir o materno vulto –
Cingi-lo, dos homens o primeiro –
Na praia ao longe por fim sepulto.
Dançam, nem sabem que a alma ousada
Do morto ainda comanda a armada,
Pulso sem corpo ao leme a guiar
As naus no resto do fim do espaço:
Que até ausente soube cercar
A terra interna com seu abraço.
Violou a Terra. Mas eles não
O sabem, e dançam na solidão;
E sombras disformes e descompostas,
Indo perder-se nos horizontes,
Galgam do vale pelas encostas
Dos mudos montes.

É óbvia a associação deste poema com Escorpião quando se repara que o texto aborda a morte de um navegador. O ambiente que se respira ao longo das quatro estrofes é escuro, mágico, mítico, assombroso, aterrador, pesado, descrevendo, perfeitamente, o mundo escorpiano.

Basta recordar o mito de Plutão, regente deste signo, para ressaltar essa analogia: no panteão olímpico, ele era e única divindade cuja palavra, uma vez dada, não podia ser alterada ou revogada pelos outros Deuses e, muito menos, pelos mortais.

Morte, regeneração e transcendência estão associadas a esta fase do ciclo porque não é possível viver a ascensão a estados de consciência mais elevados (fase seguinte, Sagitário) sem que, antes, tenha ocorrido uma profunda metamorfose, a qual, normalmente é vivida através de uma crise mais ou menos perturbadora. Fernando Pessoa, enquanto astrólogo e entidade altamente desenvolvida, sabia-o perfeitamente. Por isso, aborda a morte neste 8º poema e, ao 9º (correspondente a Sagitário), dá o título de Ascensão de Vasco da Gama.

Escorpião é um signo de Água (emoção, sensibilidade) e das profundidades. É um arquétipo telúrico, regente das entranhas da Terra e das suas convulsões. Ora, é sabido que, no nível humano, não existem maiores convulsões do que aquelas provocadas pelas erupções emocionais que ascendem das profundezas da psique. Daí a má fama deste signo.

Poucos são aqueles que gostam de mudar. Efetivamente, raras são as pessoas que aceitam a impermanência de tudo o que existe manifestado neste plano físico. A verdade, porém, é que a palavra crise contém uma faceta de perigo e outra de oportunidade.

É claro que quem pretende, através do seu ego, conter e represar as forças da natureza psíquica, está condenado a, mais cedo ou mais tarde, ser arrasado e destruído. O que destruído, todavia, é a decisão de recusar o que deveria de ser bem acolhido. O resultado é o renascimento de um novo ser; sem este renascimento não é possível a fase seguinte que se caracteriza pela ascensão.

Esta profunda purificação a todos os níveis é a função de Escorpião e do seu regente Plutão.

A viagem à volta do mundo empreendida por Fernão de Magalhães pode ser comparada com a viagem à volta ao Zodíaco. Quem quiser completar a jornada tem de predispor-se a morrer na 8ª fase.

O que fez Fernão de Magalhães? – Violou a Terra.

O navegador teve o atrevimento de desvirginar a esfericidade da Terra, o maior segredo que, porventura, o planeta ainda escondia. Tamanha ousadia foi paga com a morte, ainda antes da empresa concluída. Plutão fez-se pagar pesadamente.

Porém, com – um pulso sem corpo ao leme a guiar, – a prova foi superada!

Fernando Pessoa não esconde esta temática escorpiana e o seu vocabulário habitual e, no poema, há imensas referências que eliminam todas as dúvidas: Uma dança sacode a terra inteira (…) sombras disformes e descompostas (…) Em clarões negros do vale que vão (…) Indo perder-se na escuridão (…) De quem é a dança que a noite aterra? (…) Que dançam a morte do marinheiro (…) Na praia ao longe enfim sepulto (…) Do morto ainda comanda a armada (…) As naus no resto do fim do espaço (…) Violou a Terra. Mas eles não/O sabem e dançam na solidão (…)

Da mesma forma que não é possível fazer uma Ascensão sem que uma iniciação prévia abra as portas da Totalidade, também o feito de Fernão de Magalhães abriu, amplamente, a noção que o Homem quinhentista detinha acerca do planeta onde vivia. Mas essa expansão de consciência, inclusivamente científica, só foi possível através do sacrifício do navegador.

De fato, Plutão mostrou-se e Caronte exigiu o pagamento!

Este poema reflete tão perfeitamente o arquétipo escorpiano que resiste a não se deixar adulterar quando se juntam as primeiras e últimas palavras dele. O sentido essencial permanece:

No vale (…) dos mudos montes.

Ora, Escorpião tem excelentes relações com o silêncio!

No imaginário humano, se há lugar onde reina a paz que convida ao recolhimento, à devoção, ao agradecimento e à gratidão, é no vale nos mudos montes. É quando nos retiramos e recolhemos nele, física ou mentalmente, que podemos ter a consciência do quinhão da Obra Divina que nos é pedido.

 Vimos, no poema anterior, que tudo há de ser conduzido com as duas mãos, contemplando a união das duas polaridades. Isto é, os relacionamentos são essenciais. Porém, o movimento de O Carro, não pode ser impedido, nem atrapalhado pela presença das pessoas e das coisas mundanas, umas e outras ruidosas por natureza. Há que respeitar o afastamento dos outros que caracteriza a iniciação, como foi citado, também, no 7º poema (Ocidente).

Mesmo correndo o risco de cair na vulgaridade (o que, afinal, não envolve risco nenhum), terminaríamos esta 8ª secção relembrando que melhor do que pescar um peixe, é não desistir de pescar!

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Poema IX

Sagitário – Ascensão de Vasco da Gama

(10 de Janeiro de 1922)

Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra
Suspendem de repente o ódio da sua guerra
E pasmam. Pelo vale onde se ascende aos céus
Surge um silêncio, e vai, da névoa ondeando os véus,
Primeiro um movimento e depois um assombro.
Ladeiam-no, ao durar, os medos, ombro a ombro,
E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões.
Em baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a flauta
Cai-lhe, e em êxtase vê, à luz de mil trovões,
O céu abrir o abismo à alma do argonauta.

Este 9º poema é, nitidamente, a continuação do anterior (8º, Escorpião), dado que estamos no ponto crucial entre a 8ª e a 9ª fase do processo de evolução espiritual da Humanidade terrena.

Efetivamente, na via espiritual, não há ligação mais estreita nem uma continuidade mais óbvia do que na ponte que liga o momento da morte de uma velha etapa de vida ao momento de Ascensão para outra etapa de dimensão superior. Uma coisa é consequência da outra. E, essa ponte, chama-se iniciação!

Assim, tal como ao oito se segue o nove, também à morte (de Fernão de Magalhães – VIII) se segue a Ascensão (de Vasco da Gama – IX).

Os primeiros versos deste poema denunciam claramente essa continuidade, pois neles persiste o ambiente escorpiano descrito no poema anterior (Fernão de Magalhães – Escorpião):

Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra
Suspendem de repente o ódio da sua guerra
E pasmam.

E se, nesse 8º poema, o ambiente foi caracterizado por o ódio da sua guerra (o clima típico de Escorpião, no 9º, temos a grandiosidade e a elevação que tão bem caracterizam Sagitário. Este é o reino de Júpiter/Zeus, o deus dos Deuses, o Senhor do Olimpo e, enquanto planeta, o gigante do Sistema Solar.

Pessoa refere isso logo no primeiro verso:

Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra

Mas há, pelo menos, mais duas referências a Júpiter/Zeus, o Senhor do Raio: a primeira está contida no último verso as primeira estrofe (E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões) Este verso descreve a imagem clássica de Zeus, recostado numa nuvem, fazendo relampejar (para se entreter, castigar ou simplesmente assustar os humanos), sempre que usa o seu Raio; a segunda referência está, ainda mais nítida, no segundo verso da segunda estrofe (Cai-lhe, e em êxtase vê, à luz de mil trovões).

Aliás, é interessante verificar que, ao entrarmos nos domínios do Senhor do Olimpo, a Morada dos Deuses, encontremos – pela primeira vez desde que partimos do primeiro poema, O Infante – o termo Deuses.

A presença do signo oposto a Sagitário, Gêmeos, não é muito clara, exceto se repararmos que Ascensão de Vasco da Gama trata, efetivamente, de uma questão que tem a ver com o reconhecimento da comunicação entre o que está em cima e o que está em baixo. Ora, a temática da comunicação é o fulcro do arquétipo Gêmeos, regido por Mercúrio, uma entidade que, além de desempenhar o papel de Mensageiro dos Deuses, era filho de Júpiter/Zeus.

Portanto, os regentes do eixo Gêmeos, /Sagitário, estão, mitologicamente falando, ligados por laços familiares bastante estreitos.

Além disto, se Júpiter/Zeus é Senhor e pai, Mercúrio, enquanto filho, deve obedecer-lhe e respeitá-lo. Astrologicamente falando, também a mente racional (Mercúrio) deve ceder perante a abrangência e a sabedoria (Júpiter).

E, se nos reportarmos aos irmãos gêmeos (Castor e Pólux) que formam o símbolo de Gêmeos, verificamos que um deles era mortal (terra) e o outro imortal (céu). Portanto, mesmo sem sair de Gêmeos – o terceiro signo do Zodíaco – a mensagem permanece: sendo o movimento ascensional, o gêmeo terreno tem de morrer para dar o lugar ao seu irmão divino, pois só assim se consegue plantar um Padrão (III) nos novos territórios conquistados!

No que toca aos respectivos Elementos – o Fogo de Sagitário e o Ar de Gêmeos – é sabido que o Fogo sempre foi considerado um Elemento de purificação. Veja-se, a título de exemplo, a queima dos livros empreendida fanaticamente pelo III Reich ou a queima dos hereges durante o período da Inquisição. Assim, o Fogo, entendido espiritualmente, representa a purificação da alma, um processo feito através da combustão de todas as impurezas (fundamentalmente de uma, chamada ignorância), cujo peso adia o destino inalienável da alma, o qual é ascender.

Quanto ao Ar, ele detecta-se claramente reparando que Pessoa personificou a Humanidade na figura de um pastor que usa o sopro (Ar) para tocar a sua flauta.

E por que terá escolhido Vasco da Gama para protagonista desta Ascensão?

Decerto porque ao poema correspondente ao signo regido pelo maior planeta do Sistema Solar, tinha de corresponder aquele que é considerado o maior de todos os navegadores portugueses.

Embora esta analogia possua força suficiente para encerrar a análise deste poema, ainda há mais para dizer. Vamos tentar expressá-lo através do verso agora mesmo criado com as primeiras e últimas palavras de Ascensão:

Os Deuses da tormenta (…) do argonauta.

Podemos perguntar: mas quem são estes deuses da tormenta do argonauta?

Talvez sejam aquelas entidades que presidem, guardam e preservam o manancial de informação assimilado durante o período de formação da personalidade. Todavia, quem não experimentou ainda a desconfortável experiência de verificar que muitos desses conceitos, ensinamentos ou diretivas, afinal, pouco ou nada têm a ver com a nossa natureza intrínseca e essencial? Não obstante, são esses os deuses a quem oramos, enquanto os não percebemos como falsos. Quando – finalmente – nos damos conta disso, encetasse então um longo e inquietante período de substituição desse valores (deuses) por aqueles que vamos percebendo como intrinsecamente nossos, aqueles que, fruto da maturidade, só agora ascenderam à superfície da consciência.

Nesse rol de conceitos, ensinamentos ou diretivas que pouco ou nada têm a ver com a nossa natureza, incluem-se os falsos moralismos, a obscura e perigosíssima sexualidade, a distorcida noção de individualidade, a confusão entre independência e egoísmo, o equívoco que paira sobre os conceitos de piedade e compaixão e, ainda mais, a enorme panóplia de preceitos éticos, religiosos políticos e sociais, etc.

Não queremos dizer com isto que todos esses ensinamentos sejam errados; o que pode acontecer é que pouco ou nada tenham a ver com a natureza essencial da pessoa que os recebeu. Aplicamos praticamente tais coisas porque no-las ensinaram e porque nunca nos demos ao trabalho de verificar se fazem sentido para nós ou, melhor ainda, se nos alimentam ou desgastam. Ou seja, se são deuses que adoramos ou demônios que rechaçamos!

Não é fácil o trabalho de descartar esta bagagem sem arriscar a ilegalidade judicial, a marginalidade social, o isolamento fraternal, o ostracismo familiar ou a excomunhão religiosa. Mas é difícil, sobretudo porque tudo isso funciona como apoio para a nossa insegurança interna.

Aprender a andar suportado apenas pela habilidade e firmeza das nossas pernas é uma tarefa gigantesca. Por isso mesmo, amedronta. A prova está na frequente dificuldade e, em alguns casos, na recusa implacável, de conquistarmos a nossa autonomia. Sabe-se lá o porquê, teimamos em viver, estupidamente, sob o jugo tirânico dessa espécie de imperialismo educacional, cujas regras aprendemos de pais, professores, educadores, catequistas, etc. Tudo isto em nome de quê? Em nome de uma moral que prega o crime e o castigo, o pecado e a redenção, com o objetivo de condicionar o nosso comportamento em relação àqueles que nos rodeiam. Poderá ser uma armadilha. E, segundo parece, esta opinião não nasceu agora, neste momento, aqui em frente deste computador. Fernando Pessoa, com toda a sua argúcia e veemência já sustentava o seguinte:

(…) De tal modo estão as coisas arranjadas por ela (a natureza) neste mundo que servir-se cada um a si, completamente, energicamente e competentemente é ainda o melhor meio de servir os outros (…)

Portanto, quanto aos deuses que fazem a tormenta dos dias do argonauta (esse Peregrino que todos nós somos), só há uma coisa a fazer: apeá-los do panteão, convocá-los para a terra que pisamos e – baseados na Força de Quem está acima de nós (e deles) dizer-lhes que, de deuses como eles, está o inferno cheio!

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Poema X

Capricórnio – Mar Português

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem de passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

As duas estrofes deste magnífico texto encerram a essência de todo o capítulo central do livro Mensagem – estes 12 poemas que temos vindo a analisar. De fato, “Mar Português”, além de dar o nome ao capítulo e de codificar a essência espiritual do descobrimento individual, guarda ainda a essência dos Descobrimentos, os quais, segundo Fernando Pessoa, foram divinamente encomendados aos portugueses. Neste sentido, veja-se o que ele diz num texto que intitulou Princípios de Metafísica Esotérica:

(…) qual a razão porque este trabalho sai primeiro em português (…)? Porque isso tem de ser assim, dado o grande Destino oculto que Portugal tem de cumprir, continuando o que já cumpriu, aquele destino que o Senhor da Ciência segredou ao Infante D. Henrique em Sagres, para que ele o pusesse em prática.

Neste ponto, convém lembrar que a essência de Capricórnio é, precisamente, a realização de uma obra no cumprimento de uma vocação específica, segredada ou não pelas Altas Instâncias!

Estas duas estrofes são o exemplo acabado da polaridade Câncer/Capricórnio. Vejamos mais de perto o primeiro pólo: sabemos que Câncer é o signo da mãe, do filho, da família e da pátria de origem. E, se nos lembrarmos das suas pinças, verificaremos que também gosta de agarrar, isto é, possuir. Além disto, este signo pertence ao Elemento Água, o qual tem a ver com emoção, sensibilidade e, portanto, devoção, lágrimas, choro, lamentação, etc. À luz destas palavras-chave, volte a ler a primeira estrofe e repare como está embebida do 4º arquétipo do Zodíaco.

O segundo polo é Capricórnio, signo do Elemento Terra e, portanto, do destino, da determinação, da paciência, do paulatino vencimento das adversidades até que o cume da montanha seja atingido. Este é o modelo da construção, da forma e da estrutura, as quais, espiritualmente falando, representam a construção, a forma e a estrutura do Reino do Pai, ou da missão que Ele destinou, o que vem a dar no mesmo. Acresce que Capricórnio é o arquétipo do medo, da dúvida, da falta de confiança e de fé. Por isso, Fernando Pessoa começa por fazer uma pergunta capricorniana:

Valeu a pena?

Mas, logo de seguida, dá uma resposta magistral:

Tudo vale a pena/Se a alma não é pequena.

Esta segunda estrofe contem a chave do processo de ascensão de um mero ser humano até atingir a o reconhecimento da sua condição divina. O que se entende, porém, por essa metamorfose? Limita-se a ser o sentido e o objetivo da vida de todos os seres humanos que já existiram, existem ou existirão neste planeta: largar o lastro instintivo e animal, e alçar-se à condição de indivíduo, de criatura individual, o que é sinônimo de estar não separada da sua origem divina. Portanto, ao estar não-separada, há de estar religada (do latim religare – religião). E, o que é mais, há de ter consciência dessa não-separação. Trata-se, ao fim e ao cabo, de um processo alquímico que, não só durante a época medieval mas, também, ainda hoje (embora em menor escala) era executada, no plano físico, através das sucessivas manipulações do chumbo (por sinal, o metal de Saturno, regente de Capricórnio) até se obter ouro (Sol, símbolo espiritual de iluminação). Mas nunca é demais recordar que as transformações evolutivas que se iam verificando na amálgama material e física, levadas a cabo pelo alquimista, eram concomitantes com as transformações que iam ocorrendo dentro dele. Obter-se o ouro físico era equivalente a atingir-se a iluminação. Se o manipulador fosse um mero trabalhador de retortas, nada feito!

É claro que, mais uma vez, esta verdade alquímica surge mascarada com a roupagem das navegações e dos descobrimentos:

Quem quer passar além do Bojador
Tem de passar além da dor.

Por via indireta, Fernando Pessoa fala, de novo, do medo, esse ex-libris capricorniano, dizendo, de uma forma maravilhosamente poética, que as coisas não são só o que parecem ser: o medo e a coragem são, apenas, as duas faces da mesma moeda:

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Enfim, quem quiser um (o céu), tem de afrontar o outro (o perigo/abismo), pois um e outro são a mesma coisa, aliás como os taoístas andam há séculos a sustentar através do entrelaçamento gráfico do Yin e do Yang.

Portanto, na primeira estrofe, temos uma espécie de lamentação de caráter íntimo e patriótico, de quem ficou na praia cheio de saudades e a sofrer por quem partiu (Câncer); na segunda estrofe, reside um elevado sentido realista de quem partiu (com o coração desfeito, porém indiferente à choradeira), e que foi bem sucedido porque sabia ser essa a sua obrigação e responsabilidade (Capricórnio).

Todavia, enquanto desafio de vida, enquanto desafio divino no sentido de que cada um enfrente o seu Mostrengo (título do 4º poema/Câncer) e descubra o longe que tem dentro de si, tudo isto só faz sentido para aquele cuja alma não é pequena. Esse, é o tal que, embora integrando, infelizmente, um grupo minoritário, sabe e sente que Quem quer passar além do Bojador não tem outro remédio senão a passar além da dor!

De fato, há que invocar o início do poema (Ó mar salgado) e colá-lo ao fim dele (espelhou o céu), para ficarmos a saber, por experiência própria, ser aconselhável que o que está em baixo se decida – finalmente – a “espelhar” o que está em cima, porque a verdade é que o que está em baixo almeja o que está em cima. Dificilmente poderá deixar de ser assim, na medida em que o que está em cima concebe o que está em baixo, já que o que está em cima é análogo ao que está em baixo. Enfim, o que está em cima e o que está em baixo, limitam-se a ser dois aspectos da mesma coisa, apenas vibrando em registros diferentes, tal como os infravermelhos e os ultravioletas são, ambos, vibrações extremas da escala cromática.

E, assim, de novo nos confrontamos com a questão das polaridades, essas manifestações separadas da Unidade!

Por isso, Saturno, regente do signo correspondente a este Mar Português, através da sua incomensurável sabedoria, ensina que se vivemos o Alfa de uma área de vida através de frustrações, bloqueios, contrariedades e sofrimentos, também temos a capacidade de poder vir a viver o Ômega dessa mesma área de vida através duma maestria inultrapassável, cujos pilares são a serenidade, a maturidade e a segurança!

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Poema XI

Aquário – A Última Nau

Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,
E erguendo, como um nome, alto o pendão
Do Império,
Foi-se a última nau, ao sol aziago
Erma, e entre os choros de ânsia e de pressago
Mistério.
Não voltou mais. A que ilha indescoberta
Aportou? Voltará da sorte incerta
Que teve?
Deus guarda o corpo e a forma do futuro,
Mas Sua luz projecta-o, sonho escuro
E breve.
Ah! Quanto mais ao povo a alma falta,
Mais a minha alma atlântica se exalta
E entorna,
E em mim, num mar que não tem tempo ou ‘spaço.
Vejo entre a cerração teu vulto baço
Que torna.
Não sei a hora, mas sei que há a hora,
Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora
Mistério.
Surges ao sol em mim, e a névoa finda:
A mesma, e trazes o pendão ainda
Do Império.

Neste poema, a figura central é um rei. Em nenhum outro texto deste conjunto isso se verifica, tal como não se verifica em nenhum outro verso dos 12 poemas de Mar Português a ocorrência de um termo tipicamente aquariano – Deus guarda o corpo e a forma do futuro.

Ora, rei equivale a Leão, signo oposto a Aquário. Não se trata, porém, de um rei qualquer; é D. Sebastião (1554/1578), nascido precisamente sob o signo de Aquário (20 de Janeiro), cuja personalidade rebelde e controversa reflete, perfeitamente, o seu arquétipo solar de nascimento.

E por que razão Pessoa encena aqui o desaparecimento de D. Sebastião, rei, símbolo do Sol?

Antes de tentar responder a esta pergunta, convém explicar um aspecto técnico da Astrologia:

Cada signo tem o seu regente. Quando, numa carta astrológica, o regente de um signo se encontra colocado no signo oposto, diz-se que está em exílio ou exilado. Trata-se de uma situação em que a energia está deslocada, fora do contexto, longe do meio a que pertence. Em decorrência disso, as suas características não podem expressar-se plenamente. No que toca ao eixo Leão/Aquário, a energia em jogo é precisamente a do Sol, porque, ao reger Leão, está, portanto, exilada em Aquário. É por isso que Leão, dispondo do Sol em regência, tende a brilhar para seu próprio gosto e proveito, enquanto que Aquário, recebendo o exílio do Sol, tem um caráter mais associativo e fraternal, onde o ego não joga um papel tão preponderante. De fato, a postura de Aquário é muito pouco solar porque as posições e interesses meramente pessoais (Sol/Leão) apagam-se e colocam-se ao serviço fraternal da comunidade.

Por conseguinte, pode-se interpretar a decisão de D. Sebastião de se envolver na aventura de Alcácer Quibir, como uma situação onde as qualidades e atributos do rei estavam exiladas. As consequências desta decisão parecem ser o resultado de um Sol que passa para o oposto complementar: o Sol (rei), símbolo da vontade pessoal, decide em função do coletivo (a expansão do império). Assim, este Sol afastou-se, arrefeceu, apagou-se e desapareceu. Convém estar ao serviço dos outros, mas, desta vez, a coisa correu mal. Pessoa reconhece-o quando, na primeira estrofe, adjetiva de aziago o sol que iluminava a última nau no dia da partida.

No entanto, existe uma passagem intrigante neste poema que só pode ser entendida se for iluminada por uma outra luz, que não a das Descobertas: que razão leva Pessoa a considerar a nau onde embarcou de D. Sebastião como a última, uma vez que as navegações portuguesas não acabaram ali?

A resposta não é nada fácil. Arrisco, no entanto, a seguinte interpretação: o 11º signo, Aquário, é o último antes da dissolução final (Peixes). Assim, Aquário pode ser entendido como a última oportunidade de iluminação antes do ato de desencarnar. Dito de outra forma, o Sol, por estar em exílio, longe do seu trono em Leão, tem como atribuição fundamental reconhecer-se como uma luz que não foi criada pelo ego, mas sim pelo Pai. A partir dessa constatação, restam-lhe poucas opções, sendo que a mais recomendada será transformar-se na Luz da fraternidade e, a seguir, fundir-se com o Todo!

No caso da evolução espiritual do poeta parece ter ocorrido isso mesmo, já que, na última estrofe, diz: Surges ao sol em mim, e a névoa finda.

Ou seja, ao desaparecer a confusão que caracteriza quem ainda está preso às ilusões do mundo, tudo fica claro. Trata-se, evidentemente, de uma questão particular, alquímica, que só ao manipulador diz respeito. Tanto assim é que, inesperadamente, Pessoa põe o verbo na primeira pessoa, como se enaltecesse o que D. Sebastião representa: aquilo que há de voltar numa manhã de nevoeiro (símbolo da confusão que grassa no coração dos homens), para finalmente despertar, dentro de cada peito, a Luz do Pai! E acrescenta, reforçando – A mesma, e trazes o pendão ainda / Do Império.

É, decerto, uma referência ao V Império, o Reino do Espírito Santo, ou seja o último argumento do Pai, que volta para fazer valer a Mensagem de Cristo (o Filho).

A palavra ainda é importantíssima aqui, na medida em que parece destacar a fidelidade do Espírito Santo: apesar da longa espera e da tolerância sobre a loucura dos homens, apesar disso, ainda porta o pendão supremo do Império!

Quanto à resposta à segunda questão levantada acima, é claro que, para o que Pessoa pretendia dizer, o local geográfico de chegada do rei não interessa para nada. Ilha ou continente, tanto faz. O poeta novamente se serve de um episódio da história portuguesa para abordar uma questão mais transcendente. Ele sabe que, no que toca ao seu percurso espiritual, pessoalmente, está prestes a fazer uma grande iniciação E, apesar de viver numa sociedade majoritariamente composta por gente adormecida, está confiante. Por isso diz – Ah! Quanto mais ao povo a alma falta, / Mais a minha alma atlântica se exalta / E entorna

É por causa desta devoção que o poema final desta série (correspondente ao signo que fecha o Zodíaco – o devocional Peixes), se chama Prece!

Convidamos agora o leitor a tentar fazer um verso com as primeiras e as últimas palavras deste poema.

Seja qual for a combinação tentada, nenhuma faz sentido suficiente… tal como não faz muito sentido o episódio histórico que esta Última Nau aborda.

É estranho que assim seja?

Talvez! Mas esta exceção à regra não haverá de causar admiração. Estamos navegando nos reinos de Aquário e do seu surpreendente, imprevisível e, fundamentalmente, excepcional Urano!

§

Poema XII

Peixes – Prece

(31 de Dezembro de 1921 – 1 de Janeiro de 1922)

Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.
Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.
Dá o sopro, a aragem – ou desgraça ou ânsia –
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distância –
Do mar ou outra, mas que seja nossa!

O paralelismo deste último poema com o último signo zodiacal, começa logo no título. Prece é sinônimo de oração, o que pressupõe ligação, reverência e reconhecimento do plano divino ou, no mínimo, uma ânsia de contato com ele. Essa é a atitude do arquétipo pisciano. Realmente, Peixes passa a maior parte da vida com saudades do divino, sendo por isso que lhe é difícil lidar com o materialismo, a fealdade e a violência do plano terreno. Por isso, tende a retirar-se para o claustro, para o mosteiro, convento ou só para dentro de si mesmo para reatar os laços que o ligam às dimensões transcendentes.

Porém, se a espiritualidade ainda estiver adormecida, essa fuga do mundo poderá ocorrer através de tácticas de evasão e escapismo (ilusões, irrealismo, fantasias, drogas, etc.), ou por via da doença. Torna-se, então, num ser desamparado onde, muitas vezes, impera a chantagem emocional e a auto piedade.

Portanto, é razoável começar o poema com uma invocação da divindade:

Senhor, a noite veio e a alma é vil.

Este poema tem três estrofes e cada uma delas refere os três patamares do Tempo: a primeira estrofe aborda o Passado – Senhor, a noite veio e a alma é vil/Tanta foi a tormenta e a vontade!

Todavia, a forma como decorreram as coisas no passado condiciona a forma como estamos no Presente – Restam-nos hoje, no silêncio hostil/O mar universal e a saudade.

Mas como a segunda estrofe remete para a vivência do Presente, é claro que a esperança não pode morrer. Por isso, constata-se objetivamente – Mas a chama, que a vida em nós criou/Se ainda há vida ainda não é finda.

Nem jamais poderá sê-lo!

Nesta segunda estrofe, Pessoa volta a referir o Divino como essência do Presente – O frio morto em cinzas a ocultou:/A mão do vento pode erguê-la ainda.

Esta constatação introduz a terceira estrofe onde se fala do Futuro. Aqui encontramos aquela evidência (Dá o sopro, a aragem – ou desgraça ou ânsia -/Com que a chama do esforço se remoça) que abre as portas para futuras realizações e gera a determinação para percorrer outro plano da espiral evolutiva – E outra vez conquistemos a Distância/Do mar ou outra, mas que seja nossa!

Estas três estrofes também referem claramente aos quatro Elementos.

Releia-se a primeira estrofe (Passado) deste poema correspondente a um signo de Água (Peixes), e notar-se-á que refere, é claro, este Elemento. Porém, como a Terra é harmônica com a Água (a Terra confina, segura e dá forma à Água, enquanto a Água, fertiliza, embebe e amacia a Terra), reconhecemos a Terra em:

Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,

A associação de tormento e hostil com a Terra fica mais clara sabendo que este Elemento representa os tormentos inerentes à densificação máxima da energia (materialização), bem como a hostilidade dos desafios inerentes a essa situação.

A segunda estrofe (Presente) contém a referência aos outros dois Elementos (Fogo e Ar), cuja ação centrífuga tende a dirigir a energia para fora e para cima. Também eles são naturalmente harmônicos entre si, já que o Fogo aquece e faz movimentar o Ar, e o Ar atiça e vivifica o Fogo.

O terceiro verso desta segunda estrofe (O frio morto em cinzas a ocultou), refere particularmente a ausência deles: Frio e cinzas para o Fogo; morto para o Ar.

Se o leitor estranhar a associação do Ar com morto, experimente deixar de respirar por uns minutos!

Finalmente, como se de um crescendo se tratasse, a terceira estrofe do poema (Futuro), refere os quatro Elementos, associados na sua relação harmônica (Ar/Fogo e Terra/Água). Nos dois versos iniciais reconhecem-se o Ar e o Fogo:

Dá o sopro, a aragem – ou desgraça ou ânsia –
Com que a chama do esforço se remoça,

Nos dois versos finais ressalta o poder da Terra e a posse da Água:

E outra vez conquistemos a Distância –
Do mar ou outra, mas que seja nossa!

Resta acrescentar uma curiosidade final (diria sincronicidade) que tem a ver com esta questão da passagem de um ciclo para outro, de um estado para outro que caracteriza a iniciação espiritual – a qual teve uma presença persistente ao longo deste trabalho. Trata-se da circunstância de Prece ter sido escrito na passagem do dia 31 de Dezembro de 1921 para o dia 1 de Janeiro de 1922!

δ

Considerações Finais

Cremos ter ficado claro o fato de este conjunto de poemas referir-se a outro tipo de viagens, que não só aquelas que os navegadores portugueses empreenderam por mares nunca antes navegados.

Enquanto seres espirituais em evolução, cada um de nós encarna periodicamente neste planeta para que, enquanto Infante, possa empreender uma expedição aos seus mares internos, desconhecidos e amedrontadores, onde reina um Mostrengo que adora agigantar-se, mas cuja descoberta e conhecimento garante uma Ascensão.

E porque não importa o que, por ter sido transcendido, ficou para trás, sente-se um impulso de lavrar um Epitáfio em sua homenagem e lembrança.

Internamente, o Peregrino que existe em cada um de nós, deve afrontar um novo Horizonte navegando para Ocidente e, com orgulho, plantar um Padrão em cada novo território que vai desvelando. Um dia, inevitavelmente, construirá, aparelhará e embarcará na sua Última Nau. E, quando estiver à beira do fim do seu tempo, decerto vai querer encomendar-se a Deus através de uma Prece. Depois, desejará desencarnar em paz e tranquilidade para que possa renascer num tempo e locais propícios.

Trata-se um empreendimento solitário. Não há Colombos que nos valham!

Ao fim e ao cabo, ambas as viagens, quer as empreendidas ao mundo da matéria sólida e líquida (Terra e Água), quer as realizadas ao mundo da matéria subtil da vontade e da mente (Fogo e Ar) – as quais duram o tempo necessário para conhecermos os segredos de manifestação máxima dos 12 arquétipos zodiacais – simbolizam a semente (I) e o fruto (XII) da Evolução:

(I): Deus quer, o homem sonha, a obra nasce
(XII): … conquistemos a Distância
Do mar ou outra, mas que seja nossa!

Por isso, escolhemos para epígrafe deste pequeno trabalho, dois versos de Pessoa, os quais, por nos parecer oportuno, relembramos aqui:

Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!

Ω