Astronômicas

Marcelo Vieira Fernandes

Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas

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Resumo

O estudo da poesia chamada didática mostra-se particularmente fecundo quando, dentre os variados poetas antigos, gregos e latinos, que a praticaram, escolhemos, como objeto particular de exame, um poeta como Manílio (c. I d.C.). Sua obra, os  cinco cantos do poema latino Astronomica, apresenta razões de caráter poético e mesmo filosófico que nos autorizam a compará-la, por exemplo, à poesia de Lucrécio e Virgílio. Ainda que não desfrute de igual notoriedade, o poema de Manílio, como já apontaram seus poucos estudiosos, é exemplo de elocução poética, na linguagem notável pela variação técnica, e de ardorosa convicção moral, inspirada no estoicismo; também é, contudo, exemplo de um gênero poético hoje as mais das vezes relegado aos recortes das antologias, quando não ao simples esquecimento. Assim, o trabalho aqui proposto é a tradução integral do Astronomica, bem como um breve estudo introdutório acerca do poema, da tradição poética em que se insere e do gênero didático poesia, que nele muito bem se divisa.

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O Poeta e o Poema

À época de Constantino, no século IV d.C., o astrólogo siciliano Fírmico Materno, ao escrever, no oitavo livro de sua Mathesis, sobre o sincronismo entre os signos zodiacais e as restantes constelações, tinha sob os olhos, ao que tudo indica, o quinto canto de um poema do século I d.C., então sem muita notoriedade, que tratava justamente da mesma matéria. Um poema aparentemente incompleto, que versava sobre a influência dos astros sobre os destinos humanos e que parecia colocar-se a par do grande modelo da poesia didática romana de Lucrécio: era o Astronomica.

Antes, porém, de chegar às mãos do siciliano, que assim parece ter sido o único, pelo menos até o século X, a ter tido contado direto com o poema, o Astronomica passou despercebido, muito provavelmente na forma de um manuscrito autógrafo, continuamente sujeito ao desgaste material. Nem mesmo Quintiliano faz referência ao texto ou a seu poeta, quando no décimo livro de sua Institutio Oratoria passa em revista autores gregos e latinos. A causa do desconhecimento é talvez a não publicação do poema.

A imitação do título do grande poema didático de Virgílio, as Geórgicas, autoriza-nos a tradução em Astronômicas. O nome do poeta, entretanto, é menos certo, já que a tradição dos manuscritos hesita entre os menos prováveis Mallius e Manlius e o mais provável e ordinariamente reconhecido Marcus Manilius.

Pelo que se lê nas Astronômicas, única fonte concreta de informações sobre seu autor, Manílio escreveu entre o final da época de Augusto e o início da de Tibério, mais precisamente entre os anos 9 e 14 d.C.; a hipótese, sustentada antes por vários estudiosos, de que se trate aqui dum filho do Manílio de Antioquia, trazido a Roma como escravo por volta do ano 90 a.C., parece não poder comprovar-se, bem como a hipótese de que teria sido um estrangeiro. As referências a sua época aparecem sobretudo no livro I, em que o poema é dedicado a Augusto; no livro II, em que o enaltecimento de Capricórnio como o signo natal de Augusto é a garantia de que este ainda está vivo; e no livro IV, em que o signo de Capricórnio dá seu lugar à descrição do signo de Libra, que é o de Tibério, sucessor de Augusto.

 Exceto pela lacuna no livro V, pode-se dizer que se possui o poema inteiro de Manílio. Sumariamente, seus cinco livros versam sobre: (1) o retrato da esfera celeste, com a descrição das constelações zodiacais e extrazodiacais e dos círculos que a dividem; (2) o zodíaco, as diferentes relações entre os signos, as dodecatemórias e o círculo fixo dos doze templos celestes (dodecatropo); (3) o círculo móvel das doze sortes, os chamados athla, a determinação do lote da Fortuna, a localização do horóscopo; (4) as relações entre os signos zodiacais e os caracteres humanos, as decanias, os graus perniciosos dos signos e a distribuição geográfica do mundo entre os signos do zodíaco; (5) o levante das constelações não zodiacais em relação às zodiacais (paranatellonta), as inclinações por elas inspiradas e a narração, em especial, do mito de Perseu e Andrômeda.

Seu poema acompanha, assim, uma distribuição própria da astrologia antiga, que contemplava essencialmente duas grandes partes: a meteorologiké, acerca dos fenômenos celestes, e a poietiké, acerca das influências dos astros; esta última parte, por sua vez, divide-se noutras duas: o pinakikón, uma isagoge, ou introdução descritiva, à ciência astrológica, e o apotelesmaticón, a parte decretória, ou decisiva:

Os termos ‘isagoge’ (bem como seu derivado ‘isagógico’) e ‘apotelesmático’ devem-se a Escalígero. A esse respeito: “O poema astronômico de Manílio é distribuído em cinco livros. O primeiro livro trata da primeira das duas principais partes da Astrologia, que é chamada por Escalígero de ‘metewrologikh/’, por outros, de ‘a respeito do mundo e do céu’; os quatro restantes tratam da segunda parte, que chamam de ‘poihtikh/’, cujo primeiro membro, isto é, o ‘pinakiko/n’, é tratado pelo segundo e terceiro livro; o segundo membro, que chamam de ‘a) potelesmatiko/n’, é tratado pelos dois últimos, o quarto e o quinto”. “Os dois livros anteriores (o segundo e o terceiro) são descritivos e elementares. Estes últimos (o quarto e o quinto) são apotelesmáticos, ou decretórios. Pois essa ciência ou informa ou decreta. E os decretos mesmos são chamados de apotelesmata, isto é, ‘respostas’, pois a) potelein = (‘pagar’, ‘responder’) se diz do astrólogo, quando responde; (…). Da predição que se faz pela astronomia duas são as partes: a primeira acerca do movimento dos astros, a segunda acerca da influência dos astros. Daí, a esta parte os gregos chamam de ‘poihtiko/n’. Da primeira parte Manílio tratou no primeiro livro; da segunda, nos quatro seguintes; e esta última mesma em duas partes se divide: descritiva e apotelesmática. A descritiva, por sua vez, trata das posições e influências dos astros e signos, quer em separado, quer quanto à relação de uns para com os outros”.

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Nem sempre tão admirado, Manílio tem contra si, muito freqüentemente, a opinião daqueles que, reconhecendo o seu valor com relação a Lucrécio (De rerum natura), apontam-no, contudo, como poeta de estilo obscuro e empolado, quando não seco e, por assim dizer, “científico” demais. Mesmo aceitando a dificuldade própria da matéria do poema (o que Manílio mesmo, aliás, reconhece: nec dulcia carmina quaeras:/ornari res ipsa negat contenta doceri, “não procures um poema agradável: a matéria mesma nega o ornato, satisfeita com ser ensinada”), há quem não hesite em observar algo como uma imperícia do poeta, chegando mesmo a considerá-lo incompreensível e até ridículo.

Por outro lado, há quem leia nos peculiares hexâmetros de Manílio um poeta de metáforas precisas, de expressões bem-acabadas, de potência visual e de pensamentos fortes, de tal modo que o aproximam não só de Lucrécio, mas também de Ovídio e Virgílio: um poeta “procurando, por meio da diversidade da expressão, fazer esquecer a monotonia da matéria”. José Escalígero, por exemplo, seu primeiro grande editor, nos seguintes termos, entusiasmados até, malgrado os defeitos que lhe aponta, estima-o:

De Manilio autem nondum statui, magis optandum ne fuerit, illum publice in scholis legi, an dolendum, quod hactenus neglectus jacuerit, poeta ingeniosissimus, nitidissimus scriptor, qui obscuras res tam luculento sermone, materiam morosissimam tam jucundo charactere exornare potuerit, Ovidio suavitate par, majestate superior: uno vincitur, quod non potest manum tollere de tabula, et (quod tam falso, quam immerito Ovidio objectum olim), nunquam scit desinere, in quo peccat, non judicio, sed fertilitate, et indulgentia styli: qua in re non judicium, sed animum Ovidio quoque defuisse Quintilianus animadvertit. Est et aliud non leve vitium in nostro, quod nimius in verborum iteratione, quum posset aut parcius eadem, aut alia pro illis usurpare. Ita criticas aures offendunt illa toties totiesque inculcata, Sidera, caelum, mundus, per templa, per sidera: et alia non pauca, quae ter quater trinis, quaternis continuis versibus infulcit. Hoc ut non mediocre vitium est in nitido scriptore, ita puri sunt ab hac labe principes poetae, Virgilius et Ovidius. Hoc uno excepto, nihil ad perfectionem absoluti operis in hoc auctore requiras. Inprimis omnia ejus prooemia et parekba/seij extra omnem aleam posita sunt. Nihil illis divinius, nihil copiosius, gravius, et jucundius dici potest. Sed praestat ex ipso potius, quam ex nostra praedicatione hoc discere. Audiamus igitur olorem canentem.

“Sobre Manílio ainda não decidi se era preferível que fosse lido publicamente nas escolas, ou se lamentável que até agora tenha sido desprezado, poeta engenhosíssimo, escritor elegantíssimo, que foi capaz de ornar assuntos obscuros com tão luminosa expressão, e uma matéria extremamente fatigante com um estilo tão agradável, parelho a Ovídio em suavidade, superior em grandeza; só perde num ponto: não é capaz de largar a mão das contas e (coisa que, tão sem razão quanto injustamente, se objetou a Ovídio algumas vezes) não sabe parar, no que erra não pelo juízo, mas pela fertilidade, bem como pela complacência para com o estilo; nesse ponto, não juízo, mas senso Quintiliano adverte ter também faltado a Ovídio. Existe ainda um outro vício não leve em nosso poeta, que é ser desmedido na repetição de palavras, quando poderia ou usá-las com mais parcimônia, ou empregar outras em seu lugar. Assim, a ouvidos críticos incomodam os sidera, caelum, mundus, per templa, per sidera tantas e tantas vezes repisados, e outros não poucos, que três, quatro vezes enfia em três, quatro versos contínuos. Não sendo esse um vício mediano num escritor elegante, desse mal estão isentos os principais poetas, Virgílio e Ovídio. Feita essa única exceção, nada faltaria nesse autor para a perfeição duma obra acabada. Acima de tudo, todos os seus proêmios e parêcbases (digressões) não estão postos ao acaso. Nada mais divino do que eles, mais copioso, mais grave e mais agradável pode ser dito. Mas é melhor aprender isso dele mesmo do que de nosso prefácio. Ouçamos, então, o cisne a cantar”.

De fato, para a compreensão de um poema como o seu, “é preciso realmente saber coisas demais”, especialmente quando nos separa dele um intervalo de dois milênios durante os quais o texto ou não foi lido ou permaneceu restrito ao meio dos poucos filólogos e especialistas que o editaram e comentaram.

Acresce, enfim, que a matéria de seu poema, não somente por mostrar-se realmente difícil a não iniciados, mas sobretudo por ser especialmente técnica, impõe ao leitor contemporâneo um esforço a que não está habituado, que é religar ciência (em seu sentido mais antigo) e poesia, dois termos de uma relação mais bem compreendida pelos antigos, ao que parece, do que pelo leitor atual.

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A Poesia que Ensina

No ano 29 a.C., regressando da batalha contra Antônio, Otávio chega à cidade de Atela, no território dos Oscos, onde pretendia descansar; ali, ajudado por Mecenas, Virgílio lê para ele, durante quatro dias seguidos, os quatro livros das suas Geórgicas, o poema que atravessou os séculos como o modelo por excelência da poesia didática romana, imitado depois por Columela (que compôs em versos o décimo livro de seu De re rustica, escrito em prosa), por Nemesiano de Cartago (Cynegetica), por Avieno (Ora maritima), e outros.

O trabalho nos campos, a viticultura, os cuidados com o gado e a organização das abelhas parecem ter encontrado nos hexâmetros de Virgílio a realização daquilo que Horácio, na sua Epístola aos Pisões (“didaticamente” intitulada Arte Poética), apontava como a aspiração dos poetas: Aut prodesse volunt aut delectare poetae/aut simul et iucunda et idonea dicere vitae, “os poetas querem ou ser úteis ou deleitar, ou dizer coisas ao mesmo tempo agradáveis e convenientes à vida”.

O que convém à vida, no universo da poesia que ensina, tem muitas vezes um valor filosófico e moral. Assim é, por exemplo, o De rerum natura, de Lucrécio, que Manílio seguramente leu: os átomos, seu movimento, a alma humana e sua mortalidade material, as capacidades da percepção e do desejo, a cosmologia, a meteorologia, tudo, em seus seis livros, demonstra o propósito de arrancar aos deuses sua influência sobre os homens, de provar que o mundo não é senão um produto do acaso, de livrar do medo as mentes dos concidadãos.

Mas o propósito filosófico e moral, se está presente, por um lado, em poemas como o de Lucrécio e Manílio, não distingue completamente, por outro lado, as fronteiras do gênero didático de poesia em relação aos outros gêneros, nem tampouco explica inteiramente, ao que parece, a fortuna que tiveram, bem como a atenção que mereceram, poemas didáticos como aquele de Virgílio ou como alguns da tradição alexandrina.

Diante disso, seria possível, mesmo, apresentar uma série de elementos formais que caracterizariam esse gênero poético, a começar pela necessária presença das figuras do preceptor e do aluno, traço na verdade fundamental, como se depreende do comentário de Sérvio Honorato ao primeiro livro das Geórgicas de Virgílio, de maneira que a fórmula didática se completasse com elementos mais ou menos frequentes nos poemas didáticos, tais como: os painéis ilustrativos, que ordinariamente permeiam a instrução; as digressões (ou parêcbases), que parecem cumprir a função propriamente do deleite; os proêmios (pois o poeta didático, tendo de preparar antes o ouvinte, não pode fazer como o épico, que pode muitas vezes começar in medias res); a afirmação do valor da ciência, a garantia de competência do mestre; o enaltecimento da razão como aquilo que liberta da ignorância o espírito; a organização cuidadosa do material da instrução em livros ou seções menores; a legitimidade do discurso didático baseada na ideia de utilidade da instrução; o uso das máximas e provérbios, do tom sentencioso; etc.

Quanto ao poema de Manílio, não seria difícil localizar nele cada um desses elementos, de modo que as Astronômicas podem ser assim situadas, sem maiores problemas, no território genérico da poesia didática.

Não obstante, se é possível encontrar em Manílio a realização desse código prescritivo, talvez não seja mais proveitoso enumerar tais elementos do que examinar em que medida Manílio demonstra sua consciência de operar, por meio deles, no interior de uma tradição de poesia.

O fato é que, diante do uso quase ostensivo que Manílio faz dos expedientes próprios da poesia didática, parece legítimo suspeitar que seu poema, ao propor novamente, isto é, depois de Lucrécio e Virgílio, a realização praticamente completa daquele código, talvez aponte, extensivamente, para o começo do declínio desse mesmo gênero poético.

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O Céu na Poesia

A matéria astronômica e, extensivamente, para os antigos, astrológica não podia ficar alheia a um universo poético que versificava, por exemplo, a agricultura, o atomismo, a caça, a pesca, a geografia, o vulcanismo. Além do mais, as doutrinas astrológicas infundiam mesmo uma cosmovisão entre os antigos, de modo que seu caráter era menos o de superstição do que o de conhecimento científico e prático inclusive. As sugestões, então, que a observação do céu dava à poesia eram muitas num ambiente já particularmente propício ao tratamento poético dos astros e dos fenômenos naturais. Na posse duma vulgata astronômica e astrológica estabelecida havia séculos, derivada das observações dos babilônios, e seguindo os passos da astronomia grega, particularmente a helenística, os romanos cultos do último século da República e do início do Império já se mostravam suficientemente familiarizados com o mundo celeste e seus fenômenos: Nigídio Fígulo, pretor no ano 58 a.C., introduzira, de certa maneira, o tema da astrologia na prosa romana (De sphaera graecanica e De sphaera barbarica); Varrão (116 a.C. – 27 d.C.), conhecido mais pelo seu tratado sobre a agricultura, dedicou parte de seu saber enciclopédico à teologia astral (Disciplinae); Vitrúvio, também, procede a uma descrição das constelações (De Architectura, 9); na poesia, entretanto, a contemplação do céu e a explicação dos fenômenos naturais, embora impusessem à linguagem uma disciplina diferente, mais difícil, nem por isso foram menos frequentes.

Lucrécio, afastado de seus contemporâneos na sua dicção e estilo de tom arcaico, tratou no sexto livro de seu De rerum natura os fenômenos meteorológicos, o trovão, o relâmpago, as nuvens; Virgílio, no final do livro I das Geórgicas, dedicou-se à descrição das constelações e das zonas celestes, terminando pelos signos de prognóstico do tempo; assim também Horácio (Odes), Propércio, Tibulo, entre outros, demonstraram que não eram indiferentes à matéria.

De sua parte, Manílio se diz o primeiro a trazer para os versos da poesia latina os saberes da doutrina astrológica. Nessa sua “originalidade”, porém, já se reconhece Manílio no interior dum território poético ocupado, por um lado, pelos experimentos da poética helenística e alargado, por outro, em particular no mundo romano, pela renovação operada por Lucrécio no gênero da poesia didática.

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A Tradição Aratéia e o Modelo Lucreciano

Para a composição, em particular, do primeiro livro, mas também para o tratamento de certos temas concernentes ao tempo, no terceiro livro, o poeta das Astronômicas teve, assim como Virgílio nas Geórgicas, um ilustre modelo da poesia grega do século III a.C., bastante lido, admirado e traduzido já desde o último século da república romana: Arato (c. 270 a.C.), natural de Solos, na Cilícia, autor dos Phaenomena (“Fenômenos”), poema didático em hexâmetros que contém a descrição das constelações e dos fenômenos celestes e também uma segunda parte que dá conta dos signos meteorológicos.

Praticamente contemporâneo de Calímaco, emblema este da poesia helenística entre os romanos (sobretudo os elegíacos), Arato fez parte dum meio de produção poética de características estéticas extremamente particulares, cujo influxo na poesia latina foi decisivo. O poema teve por base a obra em prosa de Eudoxo de Cnido (c. 408-335 a.C.), matemático que fora discípulo de Platão. Seu poema desperta a atenção sobretudo porque desfrutou de grande prestígio entre seus leitores antigos, gregos e romanos, a despeito de a obra ser medíocre do ponto de vista científico, mesmo se lavada em conta a época em que foi escrita. Cícero o reconhece, apontando, todavia, no texto de Arato, “uma certa força poética”, razão que lhe valeu, possivelmente, para a tradução em verso que dele fez em sua juventude.

Desse modo, se Quintiliano acerta quando afirma que “a matéria de Arato carece de movimento”, parece haver, por outro lado, uma contraparte estética, nem sempre muito bem delineada, que pode revelar a razão de sua grande notoriedade entre os antigos e o redimir, na medida em que é possível, da interpretação anacrônica. Cum sole et luna semper Aratus erit, “com o Sol e a Lua sempre Arato estará”, é a homenagem que Ovídio rende ao poeta de Solos. Desse seu prestígio dão a medida, também, as numerosas traduções que se fizeram dos Phaenomena para o latim: o próprio Cícero, quando jovem ainda, como já se referiu, legou-nos uma versão também em hexâmetros, dos quais não nos restam mais do que 520 (em boa parte recolhidos de autores que os mencionam); Germânico César (15 a.C. – 19 d.C.), sobrinho de Tibério, traduziu o texto grego fazendo emulação não apenas poética como também científica, oferecendo aos letrados romanos algo como “uma edição melhorada e rejuvenescida dos Fenômenos”; mais tarde, no século IV d.C., é a vez de Rufo Festo Avieno, que traduz e simplifica o texto de Arato. Ainda outros há, que nos chegaram fragmentariamente, e tantos, conforme o testemunho de São Jerônimo, que seria “muito longa tarefa enumerá-los”.

De todo modo, as traduções que existem revelam, por si mesmas, a maneira como o texto foi lido e apreciado pelos antigos, especialmente porque o traduziram no antigo espírito da aemulatio, produzindo cada qual um resultado diferente e novo a partir do mesmo modelo. Cícero, consciente do problema que mais tarde Quintiliano apontará na matéria de Arato (a ausência de “movimento”, de “paixão”, de “personagens”), procurará, na sua tradução quase que verso a verso, reescrever o texto grego, frequentemente sem transpor todos os detalhes da astronomia, usando sempre de expressões e estilo novos, mais de acordo com a índole do hexâmetro latino. Também Germânico, que não o traduziu inteiro (substituindo-lhe a segunda parte, os Prognostica, para os romanos, por um desenvolvimento próprio sobre os planetas), procurou enriquecer a descrição das constelações estendendo as breves alusões do texto grego por meio da evocação das fábulas mitológicas correspondentes. Avieno, pela época em que escreveu, carrega para o seu texto as marcas de estilo próprias de seu tempo, respondendo à brevidade freqüentemente lacônica do modelo com uma verbosidade de intenção didática manifesta.

O caráter poético presente nos Fenômenos responde, à sua maneira (dentro das fronteiras desse gênero de poesia), ao ambiente estético em que o poema foi concebido. Um elemento importante dessa estética, traço presente em praticamente todos seus poetas, parece ainda mais relevante quando é Arato quem está sob exame: trata-se de um certo tipo de erudição, que muito interessará aos poetas latinos, fundada no conhecimento e no uso sistemático dum vasto conjunto de saberes, entre os quais o mitológico, acumulado nos grandes centros de cultura onde essa poesia era lida e praticada, como a famosa biblioteca de Alexandria, à frente da qual estava Calímaco. A poesia redefine, então, o espaço reservado aos antigos mitos, que agora são vistos da perspectiva de quem não mais acredita neles; funcionam como a ilustração da poesia douta, numa espécie de jogo que o poeta pratica como que por necessidade do gênero poético.

O conhecimento dos fenômenos celestes é também um daqueles saberes, e um muito especial, pois que sua relação com a mitologia é necessária e direta, e possivelmente a mais sugestiva que há na poesia antiga. No caso particular de Manílio, o jogo de erudição aparece, por exemplo, a cada vez que o poeta tem a oportunidade de inserir um mito ou uma breve alusão a par de suas explicações “científicas” ou técnicas, e nesse ponto é que os Phaenomena parecem lhe servir ainda mais como modelo.

O poema de Arato, ademais, serve-lhe para a composição de obra realmente própria, porquanto não se trata, em seu caso, de tradução. Como já se referiu, o modelo dos Phaenomena aplica-se especialmente à composição do primeiro livro das Astronômicas, em que o objetivo fundamental do poeta é a descrição da esfera celeste, para depois, nos demais livros, apresentar os detalhes de seu pensamento astrológico.

Mas a tradição de poesia didática representada por Arato, importante que seja, não é a única presente na composição das Astronômicas. Uma análise rápida, aliás, mostraria que o poema de Manílio, ao mesmo tempo em que elege os Fenômenos como um de seus modelos, deles se afasta em pelo menos dois aspectos: em primeiro lugar, parece fazer parte da tradição aratéia a referência, ou pelo menos a alusão, ao famoso (“de Zeus comecemos”), primeiro verso dos Phaenomena, e isso não ocorre nas Astronômicas; depois, o poema de Manílio segue, pelo volume e pela convicção filosófico-moral, o caminho aberto por Lucrécio, porque, semelhantemente ao De rerum natura e diferentemente da tradição didática helenística dos poemas curtos, as Astronômicas se estendem ao longo de vários livros, e também porque, assim como Lucrécio se mostra o fervoroso defensor do epicurismo, assim também Manílio infunde sua demonstração astrológica duma forte convicção estóica.

É na força dessa convicção, aliás, que parece haver o traço fundamental que equipara esses dois poetas, diferentes embora quanto ao que defendem, ao mesmo tempo em que os distingue de outros como Arato ou Nicandro, pertencentes a um meio em que a função verdadeiramente didática da poesia talvez não existisse ou não fosse mais relevante do que o propósito de entreter uma classe sofisticada e erudita.

O mesmo não parece acontecer em Manílio, que não separa a busca científica da elevação religiosa e moral, acreditando que a alma divina preenche o universo e que somente nos astros é que se encontra no estado mais puro. Assim como para Lucrécio, a contemplação do universo, em Manílio, deve conduzir à serenidade da alma, porquanto, não sendo sacrilégio, o conhecimento dos astros seria a integração entre o homem e a própria divindade: Quis caelum posset nisi caeli munere nosse,/et reperire deum, nisi qui pars ipse deorum est? “Quem poderia conhecer o céu, senão que por dádiva do céu,/e descobrir o deus, senão aquele que, ele próprio, é parte dos deuses?”.

Nessas condições, aliás, o leitor das Astronômicas parece colocar-se numa posição semelhante àquela do leitor de Lucrécio, se se considera que, no De rerum natura, o aluno é como que instigado a partilhar, juntamente com seu mestre, a sublimidade da matéria por este ensinada. Com efeito, a fundamentação estoica do ensinamento astrológico de Manílio convida o aluno, ou seja, seu leitor a identificar-se com a própria substância divina que é o objeto da instrução, já que nas pessoas mesmas a divindade se reconhece: Quid mirum, noscere mundum/si possunt homines, quibus est et mundus in ipsis/exemplumque dei quisque est in imagine parua?, “Que há de admirar se os homens podem conhecer o céu, se neles próprios está o céu e cada um é uma cópia do deus numa imagem pequena?”; ademais, é o objeto mesmo do ensinamento, isto é, o céu e os seus segredos, que se abre para o aluno, chamando-o para si: Ipse uocat nostros animos ad sidera mundus/nec patitur, quia non condit, sua iura latere, “O céu mesmo chama as nossas atenções para as estrelas e, como não oculta os poderes que tem, não admite que passem despercebidos”.

Se é, além disso, o próprio céu que chama a atenção do aluno para lhe desvelar os segredos, tal revelação não ocorre senão mediante a palavra poética (certa cum lege canentem), ou o carme (Carmine), do vate, que se vê, também ele, instigado pela divindade de sua matéria: certa cum lege canentem/mundus et immenso uatem circunstrepit orbe/uixque soluta suis immitit uerba figuris, “ao vate que com fixa regra canta o céu estrepitoso assedia com seu imenso orbe e dificilmente a livre prosa ele permite para representar-lhe as figuras” .

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Astronômicas: Estilo e Matéria

É fato conhecido dos leitores de Manílio que sua poética é exigente: prima pela brevidade, mas não dispensa o adjetivo certo e necessário à demonstração da matéria de instrução; este, pela presença, dá densidade ao hexâmetro e, pela posição, torna-o tenso e às vezes sinuoso; hipálages, elipses, quiasmas funcionam dinamicamente, bem como todo um arsenal de perífrases e circunlocuções capazes de redizer de variados modos os mesmos números e proporções.

 A mesma variação, contudo, não ocorre em certas áreas do vocabulário, sobretudo naquelas que, pela natureza dos tópicos que vão sendo expostos e pela imposição mesma do discurso didático, necessitam ser recobradas a todo momento. Manílio incide, então, naquele que é um dos vícios que mais se lhe apontam: a repetição de palavras.

Quanto a outro vício bastante apontado em seu estilo, a obscuridade, que de fato se verifica em não poucos momentos, parece ela decorrer menos de sua poética, como se pode pensar, do que realmente da dificuldade própria da matéria, “que não se curva facilmente às leis da poesia”, como argumenta o poeta:

Facile est ventis dare vela secundis
fecundumque solum varias agitare per artes
auroque atque ebori decus addere, cum rudis ipsa
materies niteat. Speciosis condere rebus
carmina vulgatum est, opus et componere simplex.
At mihi per numeros ignotaque nomina rerum
temporaque et varios casus momentaque mundi
signorumque vices partesque in partibus ipsis
luctandum est. Quae nosse nimis, quid, dicere quantum est?
carmine quid proprio? pedibus quid iungere certis?

(III, 26-35)

(É fácil dar à vela com os ventos favoráveis e revolver o solo fecundo com técnicas variadas, e ao ouro e ao marfim acrescentar ornato, quando a rude matéria mesma tem brilho. Escrever poemas sobre assuntos sedutores é comum, bem como compor uma obra simples. Quanto a mim, porém, tenho de lutar com números, desconhecidos nomes de coisas e frações de tempo, com as diferentes circunstâncias e movimentos do céu, e a ascensão das constelações, e com as partes nas suas próprias partes. Se conhecer essas coisas já é muito, que será então de exprimi-las? E numa poesia adequada a elas? E de submetê-las a um metro fixo?!)

Essa luta Manílio enfrenta sem poder desatender às sugestões que lhe oferece a mitologia estelar, o que é, como já vimos, uma implicação natural do assunto de seu poema; se bem se observa, porém, ela não é propriamente um obstáculo, ao menos em princípio, já que um dos seus propósitos é justamente fazer o contraponto às sequências mais ríspidas da sua exposição astronômica e astrológica.

Assim, se não inteiramente pelo estilo e pelos artifícios de ilustração da poesia douta, o poema de Manílio, além de se distinguir pela convicção didática e filosófica, mostra-se notável, ao menos para nós, pelo que há de particularmente curioso e admirável na destreza com que o poeta verte em seus hexâmetros os pormenores matemáticos de seu ensinamento astrológico.

Seu texto, então, embora muitas vezes cerrado e difícil, numa espécie de tour de force que prolonga as definições e os exemplos como a querer explicar tudo, é também muitas vezes claro, luminoso, em proêmios e excursos considerados dignos de antologia.

No primeiro livro, por exemplo, que tem por tema um “retrato” da esfera celeste, o poeta apresenta o saber astrológico como o termo do desenvolvimento intelectual humano. Um tal saber, que ele assim reputa o coroamento da razão do homem, é tão sublime que só por dádiva celeste é que a ele os mortais, os sacerdotes, tiveram acesso. Antes desse momento de “descoberta” dos mecanismos do universo, numa era marcada pela ignorância do homem, os fenômenos celestes eram objeto apenas da admiração e do medo. A sucessão dos séculos, entretanto, deu acuidade à inteligência dos mortais, que gradativamente foram desvendando os segredos do mundo à sua volta e, como culminância, do mundo acima de suas cabeças:

Omnia conando docilis sollertia uicit.
Nec prius imposuit rebus finemque modumque
quam caelum ascendit ratio cepitque profundam
naturam rerum causis uiditque quod usquam est.
Nubila cur tanto quaterentur pulsa fragore,
hiberna aestiua nix grandine mollior esset,
arderent terrae solidusque tremesceret orbis;
cur imbres ruerent, uentos quæ causa moueret
peruidit, soluitque animis miracula rerum
eripuitque loui fulmen uiresque tonandi
et sonitum uentis concessit, nubibus ignem.
Quae postquam in proprias deduxit singula causas,
uicinam ex alto mundi cognoscere molem
intendit totumque animo comprendere caelum,
attribuitque suas formas, sua nomina signis,
quasque uices agerent certa sub sorte notauit
omniaque ad numen mundi faciemque moueri,
sideribus uario mutantibus ordine fata.

(I, 95-112)

 (A sagacidade, sempre interessada no conhecimento, a tudo venceu com seus esforços; e a razão não impôs nem fim nem limite aos objetos de seu interesse até que se elevou ao céu, compreendeu a natureza profundamente a partir das verdadeiras causas e percebeu tudo o que existe. Entendeu por que as nuvens se abalavam com tanto estrondo ao se tocarem; por que a neve do inverno era mais macia que o granizo do estio; por que a terra se punha em brasa e o sólido orbe começava a tremer; por que caíam chuvas e qual o motivo que colocava os ares em movimento. Livrou também do espírito humano o prodigioso dos acontecimentos, arrebatou a Júpiter o seu raio e o seu poder de trovejar, e atribuiu o som aos ventos e às nuvens o relâmpago. Depois que reduziu cada uma dessas coisas à sua causa própria, intentou conhecer a elevada imensidão do firmamento e compreender com seu bom senso a abóbada celeste inteira; atribuiu forma e nome para cada uma das constelações e notou quais lugares elas ocupavam dentro de uma ordem constante; observou, ainda, que tudo se movia segundo a vontade do deus e a organização dos corpos celestes, se os astros mudavam o destino por meio dum encadeamento diferente.)

Após referir as hipóteses acerca da origem do universo (aludindo a Xenófanes, Hesíodo, Leucipo, Heráclito, Tales e Empédocles), Manílio apresenta os detalhes da visão estoica sobre a criação do mundo a partir da união dos quatro elementos: a água, a terra, o fogo e o ar. Trata, em seguida, com vagar, da esfericidade da terra e do céu, para enfim descrever, na mesma ordem que Arato, nos Phaenomena, as constelações, os planetas (brevemente) e os círculos da esfera celeste (os trópicos, os círculos polares, a eclíptica, a Via Láctea, etc.). Diferentemente do modelo, Manílio trata das constelações zodiacais (Áries, Touro, etc.) separadamente em relação às não zodiacais (Andrômeda, Oríon, etc). Os cometas, pressagiadores dos desastres futuros, dão a nota astrológica ao final desse primeiro livro.

O ponto mais alto, contudo, é o ataque do poeta à filosofia de Epicuro, cujos “elementos mínimos”, os átomos, não condizem, para Manílio, com a extrema organicidade e regularidade do mundo, que só pode ser obra da suma divindade estoica. As “fortalezas do universo” não se podem, pois, reduzir a um emaranhamento caótico de partículas, já que não é o caos que governa os processos do mundo, mas uma força reguladora que se identifica com esse mesmo mundo:

 ‘signa’ non uarios obitus norunt uariosque recursus,
certa sed in proprias oriuntur singula luces
natalesque suos occasumque ordine seruant.
Nec quicquam in tanta magis est mirabile mole
quam ratio et certis quod legibus omnia parent.
Nusquam turba nocet, nihil ullis partibus errans
laxius aut breuius mutatoue ordine fertur.
Quid tam confusum specie, quid tam uice certum est?
Ac mihi tam praesens ratio non ulla uidetur,
qua pateat mundum diuino numine uerti
atque ipsum esse deum, nec forte coisse magistra,
ut uoluit credi, qui primus moenia mundi
seminibus struxit minimis inque illa resoluit;
e quibus et maria et terras et sidera caeli
aetheraque immensis fabricantem finibus orbes
soluentemque alios constare, et cuncta reuerti
in sua principia et rerum mutare figuras.
Quis credat tantas operum sine numine moles
ex minimis caecoque creatum foedere mundum?
Si fors ista dedit nobis, fors ipsa gubernet.
At cur dispositis uicibus consurgere signa
et uelut imperio praescriptos reddere cursus
cernimus ac nullis properantibus ulla relinqui?
Cur eadem aestiuas exornant sidera noctes
semper et hibernas eadem, certamque figuram
quisque dies reddit mundo certamque relinquit?

(I, 475-500)

(‘as constelações’ não variam nem o seu pôr nem o seu retorno ao céu, mas cada uma, constante, eleva-se de acordo com o seu tempo específico e conserva ordenados os momentos do seu nascer e do seu ocaso. Nada, nessa máquina tamanha, é mais admirável do que sua regularidade e o fato de que tudo obedece a leis constantes. Em lugar nenhum uma perturbação lhe causa dano; nada, em parte alguma, é levado a vagar por um caminho mais extenso ou mais breve ou a mudar a direção do seu curso. O que mais pode haver de aparência tão complicada e, no entanto, de movimentação tão regular?

Quanto a mim, nenhuma razão me parece tão evidente quanto essa, para mostrar que o mundo se move segundo uma força divina e que ele próprio é o deus, e que não se formou por ordem do acaso, conforme quis que acreditássemos o primeiro que ergueu as fortalezas do universo a partir dos elementos mínimos e a eles reduziu-as; a partir deles, pensava, formavam-se os mares e as terras e os astros do céu e o ar, capaz na sua imensidão de criar mundos e destruir outros tantos; pensava, ainda, que tudo retornava para os seus elementos primordiais e que mudava as suas formas. Quem poderia acreditar em tamanha quantidade de obras a partir de tais elementos mínimos, sem o poder de uma divindade, e num mundo criado pela combinação cega entre eles? Se o acaso nos deu estas coisas, diga-se que o acaso mesmo as governa. Mas então por que vemos as constelações, reunidas, elevarem-se numa sucessão regular e repetirem, como que mandadas, seus cursos já determinados, sem que nenhuma seja deixada para trás enquanto outra se adianta? Por que sempre as mesmas estrelas embelezam as noites do verão e as mesmas as do inverno, e cada dia traz ao céu um determinado desenho e um determinado desenho deixa para trás?)

Para observar essa constância, espaço melhor que o céu não há, pois ele não se submete à lei da mortalidade, já que é divino e, por conseqüência, sempiterno:

 Omnia mortali mutantur lege creata,
nec se cognoscunt terrae uertentibus annis
exutas uariam faciem per saecula ferre.
At manet incolumis mundus suaque omnia seruat,
quem neque longa dies auget minuitque senectus
nec motus puncto curuat cursusque fatigat;
idem semper erit quoniam semper fuit idem.
Non alium uidere patres aliumue nepotes
aspicient. Deus est, qui non mutatur in aeuo.

(I, 515-23)

(Tudo o que nasce submete-se, por lei mortal, à mudança; nem a terra, explorada com o passar dos anos, se dá conta da aparência diferente que carrega pelos séculos. O céu, todavia, permanece incólume e conserva as suas partes todas; nem a longa sucessão do tempo o faz aumentar nem a velhice o diminui; nem por um instante seu movimento se curva ou seu curso se cansa. Ele será sempre o mesmo, porque sempre foi o mesmo; não viram um outro os nossos pais nem um outro os nossos netos verão. É o deus, que não muda no tempo.)

O segundo livro, ainda introdutório, apresenta apenas definições acerca dos signos zodiacais e das relações entre eles. Seu proêmio encerra a enumeração dos diferentes assuntos já tratados pela poesia hexamétrica desde Homero e Hesíodo, culminando numa espécie de priamel em que Manílio, mais uma vez, reclama para si o primeiro lugar na poesia astrológica, reafirmando sua crença no estoicismo.

O poeta classifica os signos, então, em várias ordens: masculinos ou femininos; diurnos ou noturnos; terrestres ou aquáticos ou anfíbios; férteis ou estéreis; etc. Quanto às relações de influência mútua entre as doze constelações do zodíaco, elas se dão em grupos de dois, três, quatro ou seis signos entre si, ou numa distribuição tal, que um signo possa ver, ouvir, amar ou prejudicar um outro que lhe seja oposto. As influências que cada signo exerce sobre cada parte do corpo humano também são aí tratadas, finalizando essa seqüência de definições.

Para dar conta das diferentes influências que um mesmo signo pode exercer, já que a máquina do universo não é incoerente em nenhum momento, Manílio expõe a divisão do céu em doze casas, dentro das quais os astros têm suas forças alteradas; mas, como a criação prima pela cuidadosa simetria, também os signos, dentro de si, apresentam uma divisão em doze partes, cada qual dona duma força particular. Como é assunto novo e não muito simples, o poeta pede atenção:

 Perspice nunc tenuem uisu rem, pondere magnam
et tantum Graio signari nomine passam,
dodecatemoria, in titulo signantia causas.
Nam, cum tricenas per partes sidera constent,
rursus bis senis numerus diducitur omnis;
ipsa igitur ratio binas in partibus esse
dimidiasque docet partes. His finibus ecce
dodecatemorium constans, bis senaque tanta
omnibus in signis; quae mundi conditor ille
attribuit totidem numero fulgentibus astris,
ut sociata forent alterna sidera sorte,
et similis sibi mundus, et omnia in omnibus astra,
quorum mixturis regeret concordia corpus
et tutela foret communi mutua causa.
In terris geniti tali sub lege creantur;
idcirco, quamquam signis nascantur eisdem,
diuersos referunt mores inimicaque uota;
et saepe in peius derrat natura, maremque
femina subsequitur : miscentur sidere partus,
singula diuisis uariant quod partibus astra,
dodecatemoriis proprias mutantia uires.

(II, 693-712)

(Examina agora uma coisa aparentemente simples, porém grande na sua importância, e que só admite ser designada por uma palavra grega: as dodecatemórias, nome que já aponta a sua razão. Como cada signo celeste consta de trinta partes, divide-se o número todo por doze; o próprio cálculo ensina, então, que cada fração é de duas partes e meia. Dentro destes limites, pois, é que se estabelece a dodecatemória; em todos os signos há tais doze partes, as quais o criador do firmamento atribuiu a um mesmo número de astros brilhantes, para que os signos celestes se encontrassem associados numa ordem alternada, e para que o céu fosse semelhante a si mesmo, e os astros todos fizessem parte uns dos outros, e por meio das combinações entre eles a concórdia regesse todo o conjunto, e para que, em razão da causa comum, a proteção fosse recíproca entre eles. Na terra, são criados sob tal lei os que nascem; por isso, conquanto nasçam sob o mesmo signo, apresentam costumes diferentes e vontades opostas; e freqüentemente a natureza se desencaminha, para pior, e ao nascer de um menino segue o de uma menina: os dois nascimentos reúnem-se sob a mesma estrela; o fato é que cada astro sofre variação por causa das divisões que tem, e muda, nas dodecatemórias, as suas influências específicas.)

O terceiro livro, assim como o anterior, é também de natureza introdutória, concluindo o quadro das definições e descrições que preparam o leitor para o assunto dos dois livros finais. Advertindo, no breve proêmio, a respeito da dificuldade da matéria e suas implicações na clareza e na beleza do texto, o poeta passa, de modo mais imediato agora, à parte matematicamente mais complexa de sua doutrina.

Expõe, então, a divisão do círculo celeste das doze casas, os athla, com relação ao círculo móvel dos signos zodiacais, referindo as influências que cada uma delas recebe, a partir de suas atribuições, do signo que a está ocupando no momento de uma natividade, de acordo com a determinação do horóscopo. As doze casas regulam, na seqüência: a fortuna (propriedades, escravos, etc.), a milícia, as ocupações civis, os julgamentos, o casamento, a riqueza, os perigos, a nobreza, as crianças, a família, a saúde e o sucesso. O cálculo que determina a posição dos athla em relação aos signos da eclíptica zodiacal também é ensinado por Manílio, assim como as regras para a determinação do tempo que as constelações levam para surgir ou se pôr no horizonte.

Antes de descrever os signos trópicos nos passos finais do livro, sequências que parecem tentar resgatar o leitor do mar de números em que estava imerso até então, o poeta ainda prolonga o trato com as partes das próprias partes e descreve o poder dos signos, isoladamente, sobre a duração da vida:

 Et, quoniam docui, per singula tempora, uitae
quod quandoque genus ueniat, cuiusque sit astri
quisque annus, cuius mensis, simul hora diesque,
altera nunc ratio, quae summam continet aeui,
reddenda est, quot quaeque annos dare signa ferantur.
Quae tibi, cum finem uitae per sidera quaeris,
respicienda manet ratio numerisque notanda.
Bis quinos annos Aries unumque triente
fraudatum dabit. Appositis tu, Taure, duobus
uincis, sed totidem Geminorum uinceris astro,
tuque bis octonos, Cancer, binosque trientes,
bisque nouem, Nemeaee, dabis bessemque sub illis.
Erigone geminatque decem geminatque trientem,
Nec plures fuerint Librae quam Virginis anni.
Scorpios aequabit tribuentem dona Leonem.
Centauri fuerint eadem quae munera Cancri.
Ter quinos, Capricorne, dares, si quattuor essent
appositi menses. Triplicabit Aquarius annos
quattuor et menses uitam producet in octo.
Piscibus est Aries et sorte et finibus haerens:
lustra decem tribuent solis com mensibus octo.

(III, 560-80)

(Uma vez que já ensinei, em cada parte do tempo, que gênero de vida há de vir e em que momento, de que astro é cada ano, cada mês, e igualmente a hora e o dia, deve ser explicado agora um outro cálculo, que dá conta da duração da vida e de quantos anos cada signo celeste é obrigado a conceder. Quando entre os astros indagas o fim da vida, deves permanecer atento a esta regra e anotar-lhe os números. Áries dará duas vezes cinco anos e mais um privado de um terço. Tu, ó Touro, o vences com o acréscimo de mais dois, mas por este mesmo número és superado pelo astro de Gêmeos; tu também, ó Câncer, darás duas vezes oito mais dois terços; e duas vezes nove darás, ó Leão de Neméia, seguidos de mais oito meses. Erígona duplica dez e duplica um terço, e não terão sido os anos de Libra mais numerosos que os de Virgem. Escorpião igualará o Leão nos dons que este concede. Os benefícios concedidos pelo Centauro terão sido os mesmos que Câncer oferece. Três vezes cinco anos, ó Capricórnio, darias, se tivessem sido acrescentados quatro meses. Aquário triplicará quatro anos e estenderá a vida para mais oito meses. Áries se aproxima dos Peixes tanto na sorte quanto no fim que impõem: eles concederão o sol de dois lustros e mais oito meses.)

O quarto livro é já decisivo: o poeta parte das definições expostas nos livros anteriores e trata da influência das constelações (zodiacais) sobre os destinos humanos. No melhor dos proêmios, Manílio eleva o tom e se mostra o estoico fervoroso, versando sobre a inexorabilidade do destino e sobre a necessidade de nos resignarmos diante disso. Tudo se decide pela disposição dos astros no céu no momento em que nascemos; a partir dela é que o nosso futuro está selado e nossa vida, longa ou breve, marcada por eventos irrevogáveis:

Quid tam sollicitis uitam consumimus annis
torquemurque metu caecaque cupidine rerum
aeternisque senes curis, dum quaerimus, aeuum
perdimus et nullo uotorum fine beati
uicturos agimus semper nec uiuimus umquam,
pauperiorque bonis quisque est, quia plura requirit
nec quod habet numerat, tantum quod non habet optat,
cumque sibi paruos usus natura reposcat
materiam struimus magnae per uota ruinae
luxuriamque lucris emimus luxuque rapinas,
et summum census pretium est effundere censum?
Soluite, mortales, animos curasque leuate
totque superuacuis uitam deplete querellis.
Fata regunt orbem, certa stant omnia lege
longaque per certos signantur tempora casus.
Nascentes morimur, finisque ab origine pendet.
Hinc et opes et regna fluunt et, saepius orta,
paupertas, artesque datae moresque creatis
et uitia et laudes, damna et compendia rerum.
Nemo carere dato poterit nec habere negatum
fortunamue suis inuitam prendere uotis
aut fugere instantem: sors et sua cuique ferenda.

(IV, 1-22)

(Por que consumimos com tanta ansiedade os anos de nossa vida e nos torturamos com o medo e com a cega cobiça? Envelhecidos por eternas preocupações, enquanto procuramos o tempo, nós o perdemos e, não pondo um fim a nossos desejos, sempre agimos como quem há de viver e não vivemos nunca. Cada um, apesar dos bens que tem, é ainda mais pobre, porque quer mais e não considera o que tem, somente aquilo que não tem deseja. Embora a natureza peça pouco para si, aumentamos com os nossos desejos a causa para uma grande ruína e com os nossos lucros adquirimos o luxo e por causa do luxo partimos para o roubo. Então a mais alta recompensa da riqueza é esbanjar a própria riqueza? Libertai, ó mortais, os vossos espíritos, aliviai-vos das preocupações e esvaziai a vida de tantas queixas supérfluas. O fado rege o mundo, tudo se mantém sob uma lei constante e o tempo, na sua longa sucessão, está marcado por acontecimentos certos. Ao nascer, estamos destinados a morrer: nosso fim depende do nosso princípio. Desse momento decorrem as riquezas e os reinos, e ainda a pobreza, que mais vezes se origina, e as artes e os costumes dados aos que nasceram e também os seus vícios e os seus méritos, os seus prejuízos e os seus ganhos. Ninguém poderá carecer do que lhe foi dado nem ter o que lhe foi negado, ou constranger a fortuna por meio de rogos, ou escapar-lhe quando ela o acossa: cada um deve suportar a própria sorte.)

No concerto do universo, nada é por acaso. A imensa máquina do céu determina as porções do bom e do ruim como partes dum todo uniforme e perfeito, que funciona em equilíbrio. Assim, a virtude humana está tão determinada quanto o prêmio que virá por ela; e o delito, hediondo que seja, é um evento tão certo no tempo quanto a punição que lhe será aplicada. Mas aí não está, todavia, julga o poeta, a justificativa para a recusa do prêmio ou para o perdão do crime:

Ecce patrem nati perimunt natosque parentes
mutuaque armati coeunt in uulnera fratres.
Non hominum hoc bellum est; coguntur tanta moueri
inque suas ferri poenas (…).

(IV, 82-5)

Nec tamen haec ratio facinus defendere pergit
uirtutemue suis fraudare in praemia donis.

(108-9)

(…) Sic hominum meritis tanto sit gloria maior
quod caelo laudem debent, rursusque nocentis
oderimus magis in culpam poenasque creatos.
Nec refert scelus unde cadat, scelus esse fatendum.

(114-7)

(Eis que filhos matam o pai e pais os filhos, e irmãos enfrentam-se armados, ferindo-se mutuamente. Não é dos homens esta guerra; são obrigados a cometer tamanhos atos e a sofrer a punição devida (…).

Essa maneira de pensar, todavia, não prossegue até o ponto de defender o crime ou despojar a virtude dos benefícios de sua recompensa.

 (…) Assim, tanto maior seja a glória dos homens em razão de seus méritos, porque eles devem ao céu o seu valor; por outro lado, odiaremos ainda mais os que praticam o mal, visto que nasceram para a sua culpa e o seu castigo. Não importa de onde venha o crime, deve-se reconhecer que é crime.)

Na seqüência, ocupa-se Manílio da descrição dos costumes, das afecções, das inclinações e das profissões que os astros determinam sobre os mortais. Logo após a apresentação de uma nova divisão dos signos (em três partes, as decanias, de função assemelhada à das outras divisões), o poeta procede à enumeração dos graus perniciosos dos signos, num esforço de variação das imagens que exige muito de seu fôlego de poeta. A apresentação geográfica do mundo com relação às influências dos astros sobre cada região específica, bem como o poder malfazejo dos eclipses sobre os signos são a matéria final desse quarto livro, antes do seu grande epílogo.

Este, à semelhança do exórdio do primeiro livro, eleva novamente o tom e versa sobre o triunfo da razão. O homem, conquanto sujeito à lei da mortalidade, é filho dos astros, é parte da divindade que rege o universo. Nessa qualidade, ele sobreleva aos demais seres e os domina. A sua inteligência, ainda que sediada na estreiteza da frágil matéria, é capaz de alcançar o sublime, que a chama para si:

Iam nusquam natura latet; peruidimus omnem
et capto potimur mundo nostrumque parentem
pars sua perspicimus genitique accedimus astris.

(IV, 883-5)

(…) Quid mirum, noscere mundum
si possunt homines, quibus est et mundus in ipsis
exemplumque dei quisque est in imagine parua?
An cuiquam genitos, nisi caelo, credere fas est
esse homines?

(893-7)

(…) Vnus in spectus rerum uiresque loquendi
ingeniumque capax uariasque educitur artes
hic partus, qui cuncta regit: secessit in urbes,
edomuit terram ad fruges, animalia cepit
imposuitque uiam ponto, stetit unus in arcem
erectus capitis uictorque ad sidera mittit
sidereos oculos propiusque aspectat Olympum
inquiritque Iouem; nec sola fronte deorum
contentus manet, et caelum scrutatur in aluo
cognatumque sequens corpus se quaerit in astris.

(901-10)

(…) Ipse uocat nostros animos ad sidera mundus
nec patitur, quia non condit, sua iura latere.
quis putet esse nefas nosci, quod cernere fas est?
Nec contemne tuas quasi paruo in pectore uires:
quod ualet, immensum est. Sic auri pondera parui
exsuperant pretio numerosos aeris aceruos;
sic adamas, punctum lapidis, pretiosior auro est;
paruula sic totum peruisit pupula caelum,
quoque uident oculi minimum est, cum maxima cernant;
sic animi sedes tenui sub corde locata
per totum angusto regnat de limite corpus.
Materiae ne quaere modum, sed perspice uires,
quas ratio, non pondus, habet: ratio omnia uincit.

(920-32)

(A natureza já não se esconde em nenhuma parte; nós a conhecemos inteiramente, somos os senhores do céu, que conquistamos, observamos o nosso criador como parte que somos dele, e, filhos dos astros, deles nos aproximamos. (…) Que há de admirar se os homens podem conhecer o céu, se neles próprios está o céu e cada um é uma pequena cópia da imagem do deus? Acaso é possível acreditar que os homens nasceram de algo que não o céu? (…) Prole que rege todas as coisas, o homem é o único dotado da capacidade de examinar a matéria, do poder da fala e do entendimento, e é ainda instruído em diversas habilidades: ele se refugiou nas cidades, domou a terra para que ela desse frutos, domesticou animais e abriu passagem no mar; firme e de cabeça erguida no alto de sua fortaleza, dirige para as estrelas, como um vencedor, os seus olhos semelhantes às estrelas, observa mais de perto o Olimpo e interroga Júpiter; não contente só com o aspecto exterior dos deuses, também perscruta o céu no seu âmago e, tomando em consideração um corpo que é da mesma espécie que o seu, procura a si mesmo nos astros. (…) O céu mesmo chama as nossas atenções para as estrelas e, como ele não oculta os poderes que tem, não admite que eles passem despercebidos. Quem julgaria ser um crime conhecer aquilo que é permitido conhecer? Não desprezes as tuas forças como se elas estivessem presas numa alma pequena: o que há de poderoso em ti não tem medida. Assim como uma pouca quantidade de ouro supera em valor numerosos montes de bronze; assim como o diamante, um nada de pedra, é mais precioso que o ouro; assim também a pupila, pequenina que seja, vê todo o céu perfeitamente, e aquilo com que os olhos exercem a visão é muito pequeno, enquanto o que observam é muito grande; do mesmo modo, a alma, cuja sede está posta dentro do diminuto coração, governa, a partir desse estreito limite, toda a extensão do corpo. Não meças o tamanho da matéria, mas atenta, sim, para as forças que a razão, e não o peso do teu corpo, tem: a razão a tudo vence.)

§

O quinto livro, finalmente, prossegue e encerra a parte decisiva, ou decretória, das Astronômicas, ao lidar ainda com a influência das constelações, agora as extra-zodiacais, sobre os destinos humanos. Curto como o do terceiro livro, o proêmio deste último promete também o tratamento dos planetas, o que não acontece, em razão de uma lacuna no texto do poema.

Assim como nos Phaenomena, de Arato, Manílio apresenta o nascer das constelações extra-zodiacais com referência ao nascer dos signos da eclíptica (paranatellonta). A partir daí, deixando para trás os números e as divisões, o poeta retoma o fôlego da descrição e reativa seu conjunto de imagens, para compor talvez o mais elogiado livro, em razão do estilo e da matéria, do seu poema inteiro. As inclinações, as profissões, os costumes determinados pelo poder dos astros ensejam ao poeta o jogo da mitologia, que ele aceita e desenvolve, chegando mesmo a prolongar, como Virgílio no último livro das Geórgicas, o tratamento de um episódio em particular, o mito de Perseu e Andrômeda. Veja-se, por exemplo, a descrição do caráter humano que a constelação desta última determina:

Quisquis in Andromedae surgentis tempora ponto
nascitur, immitis ueniet poenaeque minister
carceris et duri custos, quo stante superbe
prostratae iaceant miserorum in limine matres
pernoctesque patres cupiant extrema suorum
oscula et in proprias animam transferre medullas.
Carnificisque uenit mortem uendentis imago
accensosque rogos, cui stricta saepe securi
supplicium uectigal erit, qui denique posset
pendentem e scopulis ipsam spectare puellam,
uinctorum dominus sociusque in parte catenae
interdum, poenis ut noxia corpora seruet.

(V, 619-30)

(Aquele que nasce no momento em que Andrômeda se eleva do mar se mostrará cruel, ministrará castigos e guardará o penoso cárcere; aos seus pés, verá com arrogância as mães dos desgraçados prisioneiros, prostradas no chão, à sua soleira, e os pais a pernoitar, desejando dar o último beijo nos filhos e assim trazer o último suspiro deles para o fundo de seus próprios corações. Daí vem também uma forma de sanguinário negociante da morte e do acendimento das piras, para o qual, freqüentemente de machado em punho, o suplício é fonte de lucros; ele, enfim, seria capaz de se limitar à posição de espectador da própria menina presa aos rochedos. Tendo o domínio sobre os acorrentados, algumas vezes também toma parte nas cadeias deles, a fim de que guarde seus corpos criminosos para a futura expiação.)

Encerra o livro, e o poema, a metáfora do céu como uma enorme cidade: assim como ao numeroso povo não se pode atribuir autoridade igual à dos senadores e dos cavaleiros, porque fazê-lo seria provocar o caos, assim também as estrelas, em sua distribuição pelo firmamento e arranjadas em diferentes ordens de grandeza, havendo as categorias das maiores, menos numerosas, e uma profusão das menores, não poderiam ter recebido da natureza a mesma parcela de força, sob pena de o Olimpo, qual uma república arruinada, consumir-se em chamas.

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Edições e Traduções

O trabalho de estabelecimento do texto, de edição e anotação do Astronomica já conta com uma história de pelo menos cinco séculos. Em 1579 aparece em Paris a primeira grande edição do poema, feita por Escalígero; mais tarde, entre os ingleses, aparece a de Bentley, em 1739; segue-se a de Pingré, em 1786, que traduziu o poema para o francês. No início do século XX, destacam-se os trabalhos de Breiter, em 1907, entre os alemães, e a edição inglesa de Garrod, em 1911, apenas para o segundo livro do poema, acrescida de tradução; Van Wageningen o traduziu para o holandês, em 1914, e lhe preparou a primeira edição Teubner, em 1915; entre 1903 e 1930, Housman, entre os ingleses, preparou a melhor edição de Manílio até então, provida de notas, comentários, correções e outros apêndices (sua editio maior, seguida, em 1932, duma editio minor).

Mais recentemente, foi a vez de Goold, que o editou, conservando a maior parte das transposições e conjeturas de Housman, e traduziu para o inglês (Loeb, 1977), preparando-lhe cuidadosa e detalhada introdução, voltando mais tarde a editá-lo, com poucas alterações (Teubner, 1985; 1998); e de Flores, entre os italianos, a cujo texto crítico soma-se a tradução de Scarcia, que divide com Feraboli os comentários (Mondadori, 1996).

Além das traduções acima referidas, mencionem-se as inglesas de Edward Sherburne, 1674, em versos, apenas para o Livro I, bem como a de Thomas Creech, 1697, também em versos, para o poema inteiro; e, finalmente, a de Ângelo Baldini, 1737, para o italiano.

Ω

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