Agostinho, Tomás de Aquino e o Problema da Astrologia – II

Tomás de Aquino
Paulo S. Terra
Universidade Estadual de Santa Cruz
Resumo
O objetivo deste estudo é investigar como Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino analisaram o problema da astrologia. Agostinho condenou a astrologia; segundo ele, a astrologia não tem nenhuma base lógica e é totalmente contrária às crenças cristãs. Tomás de Aquino aceitou as ideias de Agostinho e também condenou a astrologia. A refutação do método astrológico por Agostinho e Tomás de Aquino assemelha-se, mutatis mutandi, à que é feita atualmente por muitos filósofos da ciência.
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Do recurso lícito e do ilícito ao juízo dos astros
De iudiciis astrorum
Também Tomás de Aquino examinou o problema da astrologia. Não dissertou ele, ao contrário de Agostinho, longamente, nem muitas vezes, sobre o tema e toda a sua doutrina sobre o assunto parece estar resumida num pequeno texto avulso denominado De iudiciis astrorum. Trata-se da resposta a uma consulta feita ao Aquinate “sobre a licitude do uso dos conhecimentos sobre os astros”. Informa Tomás ao interessado que procurou escrever “sobre aquelas coisas que nos são transmitidas pelos doutores sagrados”, os quais, como será visto, são pela ordem em que aparecem, Agostinho de Hipona, o profeta Jeremias e o apóstolo Paulo.
O princípio de solução da questão proposta assenta-se em Agostinho. Diz Tomás:
Em primeiro lugar, é necessário que tu saibas que a força dos corpos celestes produz mudanças nos corpos inferiores. Com efeito, diz Agostinho no livro V Sobre a cidade de Deus: ‘Pode-se dizer, nem sempre nesciamente, que certos hálitos astrais têm eficácia quanto às diferenças dos corpos’ ”.
Explica, então, Tomás que, em sendo assim,
“se alguém se serve do juízo dos astros para conhecer efeitos corporais, por exemplo, a ocorrência de tempestades ou de tempo bom, a saúde ou doença dos corpos, a abundância ou a esterilidade das colheitas e outras coisas que dependem de causas naturais cognoscíveis, não há nisso pecado, pois todos os homens são obrigados a nisso submeter-se aos astros. O agricultor só pode semear ou colher prudentemente se se assegurar dos movimentos do sol; os marinheiros evitam as navegações na lua cheia ou durante o eclipse da lua; os médicos, no que tange às doenças, observam os dias críticos, que são determinados segundo o curso do sol e da lua.”
É, pois legítimo ao homem, segundo Tomás, submeter suas ações aos astros, desde que haja conexão lógica de causa e efeito entre os fenômenos celestes e os terrestres e que isso envolva questões técnicas relativas às atividades econômicas e produtivas, à segurança e à saúde.
Há, contudo, adverte o Aquinate, perigo e ilicitudes na questão da natureza do influxo dos astros na vida humana, pelo que é indispensável considerar que
“a vontade humana não está sujeita à necessidade dos astros; do contrário, pereceria o livre arbítrio, o qual, se suprimido, não seriam imputadas ao homem nem as boas obras, meritórias, nem as más, culposas. E, por isso, deve ser mantido com toda certeza, por todo cristão, qualquer seja, que aquelas coisas que dependem da vontade do homem, como são todas as obras humanas, não estão submetidas por necessidade aos astros; e, por isso, se diz em Jeremias 10, 2: ‘Não tenhais medo dos sinais celestes, aos quais temem os pagãos’ ”.
Explicado o problema doutrinário de natureza ontológica e antropológica em que incide quem, no seguimento dos pagãos, crê, erroneamente, na submissão da vontade humana aos corpos celestes, Tomás aponta ainda um agravante e nisso recorre outra vez a Agostinho:
“O diabo – adverte o Aquinate -, para arrastar todos ao erro, interfere nas operações dos que lidam com os juízos sobre astros; e por isso diz Agostinho, no livro II, Sobre o Gênesis segundo o sentido literal: ‘É preciso confessar que, quando pelos astrólogos são ditas coisas verdadeiras, o são devido a certa ocultíssima inspiração que, sem sabê-lo, padecem as mentes humanas; a qual, dado que se faz para enganar aos homens, é uma operação dos espíritos imundos e sedutores, aos que se lhes permite conhecer certas coisas verdadeiras sobre os assuntos temporais’ ”.
E completa Tomás esse texto sobre a consulta aos astros, com mais uma referência Agostinho, acrescida de uma determinação paulina:
“E por isso, disse Agostinho, no livro II Sobre a doutrina cristã, que este tipo de observações dos astros deve ser referida a certos pactos celebrados com os demônios. Agora bem, o fato de ter pacto ou sociedade com os demônios, deve ser absolutamente evitado pelos cristãos, como observa o Apóstolo em I Coríntios 10, 20: “Não quero que vos associem aos demônios”. E por isso, deve-se ter como certo que é grave pecado recorrer aos juízos astrológicos sobre as coisas que dependem da vontade humana”.
Está nesse texto resumidamente toda a doutrina tomasiana sobre a astrologia. Como se vê, ela deriva fortemente de Agostinho, de quem o Aquinate cita três obras. A doutrina tomasiana é clara quanto às restrições ao uso das técnicas astrológicas e aponta objetivamente para os graves perigos contidos nessa arte. Há, contudo, conhecimentos proveitosos e lícitos decorrentes da consulta aos astros e Tomás aponta quais são eles. É dos ensinamentos de Agostinho que Tomás deriva seu arrazoado sobre os usos lícitos da astrologia, mas o Aquinate vai um pouco além do ponto em que chegou o Hiponense, e aponta, por exemplo, a importância médica da astrologia.
Faltam no texto de Tomás em tela algumas considerações importantes. Não trata, por exemplo, o Aquinate do método astrológico; sabe-se que as previsões dos que consultam os astros são acertadas, tanto as que ele afirma serem lícitas e necessárias, quanto às que ele julga que são ilícitas, pois nestas o acerto decorre exclusivamente do concurso dos demônios. O método astrológico, contudo, não interessará ao Aquinate. Nos seus textos mais extensos sobre a astrologia, que serão examinados a seguir, Tomás não se deterá no exame dos procedimentos adotados pelos astrólogos e não se ocupará ele minimamente, por exemplo, do problema que os gêmeos causam aos horoscopistas, assunto recorrente nos textos contra a astrologia da lavra de Agostinho.
Quanto ao problema do influxo dos astros no intelecto e na vontade, Tomás, nesse breve texto sobre a astrologia, limitou-se a dizer que tal influência inexiste. Contudo, esse complexo assunto é examinado na Suma Contra os Gentios e na Suma Teológica e um certo tipo de interferência é apontado, o que marca a diferença que há entre Tomás e Agostinho no que diz respeito à astrologia e faz a análise do Aquinate avançar mínima, porém significativamente, em relação à do Hiponense.

Do influxo dos astros no intelecto e na vontade
Summa Contra Gentiles
Na Suma Contra os Gentios, Tomás de Aquino não tratou diretamente da astrologia mas dedicou dois capítulos do terceiro livro ao exame das influências que os corpos celestes exercem nos seres humanos. Nas análises aí empreendidas, destacam-se as principais diferenças entre as ideias sustentadas pelo Aquinate e as defendidas por Agostinho no tocante à astrologia.
Os corpos celestes não têm influência em nosso intelecto
SCG III, 84
Dedica-se Tomás de Aquino, na Suma Contra os Gentios, a investigar, em primeiro lugar, no capítulo 84 da terceira parte, se os corpos celestes têm influência em nosso intelecto e conclui que eles não exercem diretamente nenhum influxo. O Aquinate embasa seus argumentos principalmente na Física de Aristóteles.
Começa Tomás com a afirmação de que não podem os corpos celestes influir no intelecto humano, porque não é da ordem natural que as coisas inferiores dirijam as superiores; logo, os corpos celestes não podem operar diretamente no intelecto.
Prossegue o Aquinate afirmando que não é próprio das coisas operarem senão pelo movimento e que as coisas do intelecto estão completamente fora do movimento; ademais, como nada que se move o faz senão por ação de um corpo, como o intelecto não é corpo, nem virtude corpórea, não pode ele receber influxo dos corpos celestes.
Em seguida, Tomás de Aquino afirma que nada passa da potência ao ato a não ser por algo que já esteja em ato. Ora, os corpos celestes não são inteligíveis em ato, e como o intelecto não está em potência senão para os inteligíveis em ato, é impossível que os corpos celestes ajam sobre ele. Isso porque não é próprio da natureza do intelecto a sujeição aos corpos celestes. Além disso, o intelecto, como não é corpo, não está submetido ao tempo e ao espaço e as coisas que não estão submetidas ao tempo não estão, por isso, sujeitas aos movimentos celestes, que são, eles mesmos, a marca do tempo.
Além disso, continua o Aquinate, nenhum corpo opera acima de sua espécie; disso decorre não serem os corpos celestes capazes de causar o conhecimento intelectual, pois, por serem inferiores ao intelecto, não podem, por isso mesmo, agir diretamente sobre ele.
Equivocaram-se, assim, assevera Tomás, os filósofos que ensinaram que os corpos celestes são diretamente a causa de nosso conhecimento intelectivo; Aristóteles, diz o Aquinate, mostrou, sobretudo no livro De anima, o erro deles.
Também, complementa Tomás, a Escritura Sagrada não põe nas coisas, mas em Deus, a causa do conhecimento, conforme se lê no livro de Jó e num dos Salmos.
Contudo, afirma o Aquinate, na conclusão do capítulo, que, se não podem os corpos celestes operar diretamente no intelecto, podem eles afetar mediatamente o conhecimento; e fariam isso de dois modos contrários, ou impedindo as operações intelectuais, ao causar alguma indisposição corporal, ou ampliando a capacidade de intelecção, ao causar boa disposição corpórea no homem, tornando-o, assim, apto para um bom conhecimento intelectivo. Assim, lê-se no final do último item do capítulo:
“No entanto, deve-se saber que embora os corpos celestes não possam ser causa de nossos conhecimentos, indiretamente podem operar neste sentido. Apesar de o intelecto não ser potência corpórea, em nós ele não atua sem a operação das potências corpóreas, que são a imaginação, a estimativa e a memória, como anteriormente vimos. E daí acontecer que quando estão impedidas as operações dessas potências, por alguma disposição corporal, fica também impedida a operação do intelecto, como, por exemplo, se observa nos loucos, nos letárgicos e em outros assim indispostos. Por essa razão, também a boa disposição corpórea do homem torna-o apto para um bom conhecimento intelectivo, porque, por ela, as potências supramencionadas tornam-se mais fortes, tendo por isso escrito o Filósofo: Vemos serem os de composição delicada mais aptos para a ordem intelectual [De anima II, 9, 421a; In De anima II, lect 19].
Mas a disposição do corpo humano está sujeita aos corpos celestes. Diz, por isso, Agostinho: Não é totalmente absurdo afirmar que as influências dos astros possam produzir ao menos mudanças em nossos corpos [De civitate Dei V, 6]. E [João] Damasceno: Uns e outros planetas causam em nós diversos temperamentos, hábitos e disposições [De fide orthodoxa, II, 7]. Por isso, os corpos celestes influenciam indiretamente no bom conhecimento intelectivo. Pois, assim como os médicos podem julgar a saúde pela compleição corpórea, como sendo esta disposição próxima, também o astrólogo [astrologus] o pode pelos movimentos dos corpos celestes, ao serem estes causa daquela compleição. E assim se pode verificar o que disse [Pseudo-]Ptolomeu: quando Mercúrio se encontra em uma das moradas de Saturno, dá inteligência capaz de penetrar no conhecimento das coisas, fazendo forte no seu ser a quem nascer neste tempo [Centilogium, sent. 38].”
Decorreria dessa conclusão, uma nova questão: Se não podem os corpos celestes afetar a capacidade intelectual, a não ser, como visto, mediatamente, não poderiam eles, então, causar as volições e eleições? A isso, responde negativamente o Aquinate no capítulo seguinte.

Os corpos celestes não são causa das nossas volições e eleições
SCG, III, 85
A análise do Aquinate começa com a afirmação de que se não podem os corpos celestes agir sobre o intelecto, não podem também atuar, conforme ensina o Estagirita, sobre a vontade, que está na parte intelectiva da alma. Por isso mesmo, continua Tomás, não podem os corpos celestes afetar a volição, visto que também ela depende do intelecto, pois o objeto da vontade é o bem, que se conhece pelo intelecto.
Argumenta então Tomás, alicerçado em Aristóteles, que se os corpos celestes influenciassem as volições, não existiriam, consequentemente, dois princípios de ação, o propósito e a natureza, mas apenas um, a natureza; como é evidente que não há um único princípio, é certo que as volições não resultam do influxo dos corpos celestes. Em seguida, explica o Aquinate que, como as eleições humanas apresentam caminhos diversos para atingir fins, mostraria isso que elas não se realizam naturalmente, pois os caminhos naturais são invariáveis. Além disso, acrescenta, os caminhos naturais são sempre corretos e os seguidos pelas eleições humanas amiúde não o costumam ser; logo, o homem não elege por influxo celeste, pois se assim o fosse, ele só agiria corretamente. Ademais, explica Tomás, as eleições humanas são variáveis e não o seriam se operassem somente as causas naturais, pois se as eleições humanas fossem tão-somente naturais, então todos elegeriam uniformemente, do mesmo modo que as andorinhas constroem ninhos iguais. Serem as eleições humanas variáveis, tanto em questões morais, quanto em operacionais, e existirem tanto eleições virtuosas quanto viciadas, mostram esses fatos que não são elas naturais, mas que resultam do hábito.
No seguimento da argumentação, Tomás afirma que fossem os astros capazes de influir em nossos corpos de modo suficiente para induzir uma ação, elegeríamos sempre necessariamente o que se apresentasse apetecível externamente, o que não ocorre; a existência da potência de julgar e escolher, relativamente, a tudo que é humanamente realizável, mostra que os astros não agem determinantemente sobre as eleições humanas.
Além disso, fossem os influxos celestes determinantes, afirma Tomás, não seria o homem um ser naturalmente político e social e seriam inúteis as leis, os preceitos, as penalidades e os prêmios; assim, indiscutivelmente, não foi o homem constituído pela providência divina de maneira que suas eleições fossem provenientes dos corpos celestes.
Ademais, argumenta o Aquinate, o que é mau, relativamente às eleições humanas, não ocorre por causa natural, mas por falha; assim, por ser possível ao homem eleger coisas más, conclui-se que é impossível que as eleições provenham do movimento dos corpos celestes. Ora, prossegue Tomás, uma eleição má, como a do adultério, provém de um bem deleitável que é o desejo sexual. Pode ser que os corpos celestes impulsionem o homem para tal bem, como acontece com os animais. Esse bem, contudo, considera Tomás, não pode afetar o julgamento do mal a ele relacionado; um influxo universal, como o deleite sexual que se relaciona à reprodução, é recebido por cada espécie animal segundo o que lhe é próprio. No caso do homem, os influxos são avaliados pelo intelecto e pode ocorrer que a eleição seja má; ora, jamais o seria se a causa das eleições humanas fossem os corpos celestes.
Acrescenta Tomás, ainda, que a vontade humana se inclina sempre para o universal, o que não ocorreria se o querer humano fosse causado por um corpo celeste, pois, decorreria disso que a inclinação seria exclusivamente dirigida para coisas específicas. Ademais, as eleições humanas, afirma, visam à felicidade e objetivam unir a alma, mediante o intelecto, às coisas divinas; com isso, há uma razão a mais para não crer que os corpos celestes determinam as nossas eleições.
Ao aproximar-se da conclusão do capítulo, lembra Tomás o que está em Jeremias 10, 2-3: “Não temas os sinais dos céus temidos pelos povos, porque os costumes dos povos são vãos”. Lista então o Aquinate os muitos que erraram no assunto em tela: os estoicos, os fariseus, os priscilianos e os filósofos naturalistas, em especial Empédocles.
Coloca, então, Tomás um novo rumo à argumentação ao considerar a existência de situações em que os corpos celestes podem sim influenciar a vontade humana; trata-se, contudo, de influxo indireto, que ocorre, por exemplo, ilustra o Aquinate, quando eles causam frio intenso e nos impulsionam a buscar o aquecimento, ou quando levam o corpo a adoecer e assim nos induzem à busca de remédio, ou, ainda, quando provocam paixões, como fazem com os coléricos, predispondo-os à ira. Assim sendo, é indubitável, para o Aquinate, que certos influxos celestes podem causar indisposições corpóreas que privam alguns da razão e estes, então, perdem a capacidade de eleição e passam a mover-se por impulsos naturais, como animais. Em conclusão, diz Tomás:
“Muitas vezes o ato humano também é causado pelos corpos celestes, enquanto, por causa da indisposição corpórea, uns ficam amentes, privados do uso da razão. Neles propriamente não há eleição, pois são movidos por algum instinto natural, como os animais.
É evidente, e o atesta a experiência, que estas ocasiões [de indisposições corpóreas causadas pelos corpos celestes], sejam elas interiores ou exteriores, não causam as nossas eleições, porque o homem pode pela sua razão resistir-lhes ou obedecer a elas. Ora, há muitos que seguem os impulsos naturais, mas poucos há, só os sábios, que resistem às ocasiões de fazer o mal e aos impulsos naturais. Por esse motivo disse [Pseudo-]Ptolomeu que o trabalho das estrelas ajuda os sábios, e que o astrólogo não pode julgar do influxo dos astros se não conhece bem a capacidade da alma e o temperamento natural, e que o astrólogo não pode dizer coisas particulares, mas só de um modo geral [Centiloquium, sent. 8]. Com efeito, o influxo das estrelas produz efeitos em muitos que não resistem à inclinação corpórea. No entanto, isto não acontece neste ou naquele que resiste à inclinação natural”.
Parece encontrar Tomás de Aquino em Aristóteles, sobretudo na Physica e no De anima, ideias que permitem acomodar o princípio do livre arbítrio às evidências, que então pareciam existir inegavelmente, de que os corpos celestes influenciam o corpo humano e, em algum grau, o comportamento humano. Agostinho claramente reconhecia a existência desses influxos sobre os homens, mas não sabia como isso se dava e limitou-se a afirmar que não é totalmente absurdo afirmar que os astros podem produzir algumas mudanças em nossos corpos. Orientado pelo Estagirita, o Aquinate esclarece que mudanças seriam essas e mostra que é legítimo afirmar que elas podem se dar em órgãos que afetam as disposições humanas, de modo a tornar os homens ou menos ou mais aptos para determinadas ações. Não se trataria pois de afetar diretamente o comportamento, mas de fazê-lo indiretamente, e apenas de maneira a agir sobre a disposição, pelo que fica totalmente livre o homem para eleger a resistência ou a obediência ao impulso.
Há ainda o que dizer sobre o influxo dos astros sobre o homem e Tomás o fará conclusivamente na Suma Teológica.

Summa Theologica
Encontra-se várias vezes na Suma Teológica a palavra astrologia. Em muitos casos, o vocábulo é usado para designar atividades e ideias que hodiernamente se vinculam ao que é denominado de astronomia. Quanto às considerações do Aquinate pertinentes ao estudo não especificamente astronômico dos astros, há que destacar inicialmente o que está posto na questão 115 da primeira parte da Suma Teológica, em que se encontram ideias não constantes no já mencionado estudo De iudiciis astrorum.
Os corpos celestes são a causa do que ocorre nos corpos neste mundo
STh I, q115, a3
Tomás dedica o artigo terceiro da questão 115 da primeira parte da Suma Teológica a estudar se os corpos celestes são a causa do que ocorre nos corpos neste mundo. O Aquinate conclui afirmativamente e o faz com base nas teses seguintes retiradas de Agostinho e de Pseudo-Dionísio:
“Diz Agostinho: os corpos mais grosseiros e inferiores são regidos, numa certa ordem, pelos mais sutis e poderosos. E [Pseudo-]Dionísio diz: a luz do sol contribui para a geração dos corpos sensíveis, gera a própria vida, nutre, faz crescer e leva ao termo.”
Assim, é correto afirmar que os corpos celestes são a causa do que é feito, neste mundo, nos corpos inferiores.
A solução dada por Tomás ao problema apoia-se em Aristóteles e centra-se na questão do movimento e na ideia de que os movimentos dos corpos deste mundo têm como causa o movimento dos corpos celestes.
Convém atentar para a quarta e última objeção apresentada por Tomás no artigo, que contém a ideia de que os corpos celestes são a causa do que ocorre nos corpos neste mundo, porque se discute nela o assunto levando em conta a arte astrológica. Coloca assim o Aquinate:
“Como diz Agostinho, nada é mais corpóreo do que o sexo. Ora, o sexo não é causado pelos corpos celestes; e a prova é que, de dois gêmeos, nascidos sob a mesma constelação, um é masculino e outro, feminino. Logo, os corpos celestes não são causa das coisas corpóreas realizadas neste mundo.”
Não é a primeira vez que Tomás se refere a Agostinho nas discussões sobre a astrologia, mas o problema dos gêmeos, que era o preferido pelo Hiponense no combate antiastrológico, nunca havia sido considerado nas análises tomasianas e agora aparece em realce. Essa referência a Agostinho apresenta-se, contudo, para ser criticada, pois o que se lê na refutação a ela é o seguinte:
“As ações dos corpos celestes são recebidas diversamente pelos corpos inferiores, conforme a disposição diversa da matéria deles. Assim, acontece às vezes que a matéria da concepção humana não está totalmente disposta para o sexo masculino e, por isso forma em parte o masculino e em parte o feminino. E disto se serve Agostinho para repelir a adivinhação por meio dos astros, porque os efeitos destes variam, mesmo em relação às coisas corpóreas, segundo as disposições diversas da matéria.”
Erra Agostinho, portanto, segundo Tomás, em atribuir ao atribuir o sexo dos gêmeos a causas celestes, quando ele próprio afirma que a determinação do sexo é devido a fatores terrenos. Não obstante estar Agostinho correto em dizer que os corpos inferiores são regidos pelos superiores, equivoca-se ele em colocar nessa regência a determinação do sexo, pelo que a existência de gêmeos de sexos diferentes não constitui elemento de refutação da tese de que os corpos celestes são a causa do que ocorre nos corpos neste mundo.
Como dito, a conclusão de que os corpos celestes são a causa do que ocorre nos corpos deste mundo leva em conta a questão do movimento e apresenta-se assim:
“Considerando que toda multidão procede da unidade; que o imóvel conserva-se do mesmo modo, e o movido tem aspectos multiformes, deve-se concluir que em toda a natureza, qualquer movimento procede do que é imóvel. Por onde, quanto mais um ser é imóvel, tanto mais é causa do que é móvel. Ora, os corpos celestes são os mais imóveis de todos os corpos, pois só têm movimento local. E, portanto, os movimentos vários e multiformes dos corpos inferiores deste mundo dependem do movimento dos corpos celestes, como de causa.”
Deriva-se isso de Aristóteles, como já apontado, e a argumentação de Tomás começa com o que está na segunda objeção, onde se lê:
“O agente e a matéria bastam para produzir uma coisa. Ora, há nos corpos inferiores deste mundo a matéria paciente e também agentes contrários, como o calor, o frio e outros semelhantes. Logo, não é necessário, atribuir a causalidade do que é feito, nas coisas inferiores sobreditas, aos corpos celestes.”
Ora, não há, segundo o Aquinate, tal autonomia das coisas deste mundo quanto às causas de transformação e, ao justificar isso, Tomás expõe as fontes aristotélicas que sustentam suas ideias nesse assunto:
“Como princípios ativos, os corpos inferiores deste mundo têm só as qualidades ativas dos elementos, a saber, o calor, o frio e outros. E se as formas substanciais dos corpos inferiores só se diversificassem por esses acidentes, cujos princípios os antigos fisiólogos diziam ser a rarefação e a condensação, não seria necessária a existência de nenhum princípio ativo superior a esses corpos, mas eles agiriam por si mesmos. Os que pensarem bem, pois, concordarão que esses acidentes se comportam como disposições materiais para as formas substanciais dos corpos naturais. Ora, a matéria não podendo agir por si mesma, é necessário admitir-se algum princípio ativo superior a essas disposições materiais. Daí o terem os Platônicos admitido as espécies separadas, pela participação das quais os corpos inferiores alcançam as suas formas substanciais. Estas porém não bastam; porque, tais espécies sendo consideradas como imóveis, daí resultaria que os corpos inferiores não teriam nenhuma variação, quanto à geração e à corrupção, o que é falso. Por onde, segundo o Filósofo53, necessário é admitir-se algum princípio ativo móvel, causa, pela sua presença e ausência, da variedade dos corpos inferiores, quanto à geração e à corrupção; e tais são os corpos celestes. E por isso, tudo o que, nos corpos inferiores deste mundo, gera e especifica, é como que instrumento do corpo celeste, o que permite dizer que o homem e o sol geram o homem.”
Estabelecido isso, põe-se Tomás a examinar em seguida se os astros podem causar os atos humanos.

Os corpos celestes não são causa dos atos humanos
STh I, q115, a4
Dispõe Tomás o artigo quarto da questão 115 da primeira parte da Suma Teológica para examinar se os corpos celestes são causa dos atos humanos. A tese que o Aquinate sustenta nessa questão apoia-se no ensinamento de João Damasceno de que os corpos celestes não são de modo nenhum causa dos atos humanos.
Destaque-se que na terceira objeção apresentada contra a tese que será defendida pelo Aquinate lê-se:
“Os astrólogos frequentemente vaticinam sobre os acontecimentos bélicos e outros atos humanos, cujos princípios são o intelecto e a vontade. Ora, tal não poderiam fazer se os corpos celestes não fossem causa dos atos humanos. Logo, eles são tal causa.”
Ora, como dito, Tomás trabalha, com base no que é dito por João Damasceno, com a tese de que os corpos celestes não são de nenhum modo causa dos atos humanos.
A solução da questão atém-se também, como ocorreu na investigação anterior, na questão do movimento, mas agora realça como os corpos celestes podem afetar a inteligência e a vontade. Diz o Aquinate:
“Os corpos celestes podem diretamente e por si impressionar os outros corpos, como já se disse; nas potências da alma humana, porém, que são atos de órgãos corpóreos, causam impressão, direta, mas acidentalmente; pois, os atos dessas potências são necessariamente obstruídos pelo obstáculo dos órgãos; assim, os olhos torvos não vêm bem.
Por onde, se o intelecto e a vontade fossem virtudes ligadas a órgãos corpóreos, como ensinaram alguns, dizendo que o intelecto não difere do sentido, daí necessariamente resultaria que os corpos celestes são causa das eleições e dos atos humanos. E, por consequência o homem agiria por instinto natural, como os animais, que lhe são inferiores e que. tendo as virtudes da alma ligadas a órgãos corpóreos, sempre agem naturalmente, por impressão dos corpos celestes. E daí a conclusão que o homem não teria livre arbítrio, mas seria determinado nas suas ações, como os outros seres naturais. Conclusões manifestamente falsas e contrárias à linguagem humana.
Deve-se pois saber que, indiretamente e por acidente, as impressões dos corpos celestes podem influir sobre o intelecto e a vontade, enquanto aquele e esta recebem algo das virtudes inferiores, ligadas a órgãos corpóreos. Mas, relativamente a isso, o intelecto se comporta diferentemente da vontade. Pois, recebe os seus dados, necessariamente, das virtudes inferiores; por onde, turbadas as virtudes imaginativa, cogitativa ou memorativa, necessariamente há de turbar-se a ação do intelecto. A vontade porém não segue necessariamente a inclinação do apetite inferior. Pois, embora as paixões do irascível e do concupiscível exerçam certa influência para inclinar a vontade, contudo, esta conserva o poder de as seguir ou combater. Por onde, a impressão dos corpos celestes, na medida em que podem imutar as virtudes inferiores, alcança menos a vontade, causa próxima dos atos humanos, que o intelecto. Admitir, pois, que os corpos celestes são causa dos atos humanos, é opinião própria dos que dizem que o intelecto não difere dos sentidos. Assim, um deles dizia: a vontade dos homens é tal qual o pai dos homens e dos deuses a causa, cada dia59. Ora, como é certo que o intelecto e a vontade não são atos de órgãos corpóreos, impossível é sejam os corpos celestes a causa dos atos humanos.”
Com base nessas ideias, Tomás explica as razões de os astrólogos acertarem as previsões que fazem relativamente a acontecimentos bélicos e outros comportamentos que envolvem a inteligência e a vontade. Diz o Aquinate:
“A maior parte dos homens seguem as paixões, movimentos sensitivos do apetite, para as quais podem concorrer os corpos celestes; ao passo que são poucos os prudentes, que resistem a tais paixões. E por isso os astrólogos, na maioria dos casos, podem predizer a verdade; e, sobretudo, em comum. Não porém em especial, porque nada impede que um homem, com o livre arbítrio, resista às paixões. Por onde, os próprios astrólogos dizem, que o homem prudente domina os astros, na medida em que domina as paixões próprias.”
É, pois, evidente, segundo Tomás, a causa de os astrólogos acertarem algumas previsões. Restringem-se esses vaticínios, contudo, aos comportamentos de massas humanas e explicam-se porque certos órgãos corpóreos, vinculados às virtudes inferiores, podem ser afetados pelos astros e assim predispor os homens a certos atos, como se fossem a causa direta deles, embora sejam apenas a mediata. Tratando-se nesses casos apenas de paixões, pode o livre arbítrio, explica o Aquinate, resistir-lhes ou não. Contudo, opõem-se a essas paixões mais os prudentes, que são a minoria, do que as massas humanas que se deixam levar comumente pelos apetites. Daí a causa de os astrólogos vaticinarem, afirma Tomás, os acontecimentos bélicos e outros similares. Há, assim, segundo Tomás conjunto legítimo de estudo dos astros relativo ao comportamento humano, que liga a medicina à psicologia social. Esse tipo de estudos astrológicos não foi considerado por Agostinho.
Da consulta supersticiosa e ilícita dos astros
STh II-II, q95, a5
Ao tratar mais adiante, em outra questão da Suma Teológica, da licitude da adivinhação por meio dos astros, retoma o Aquinate a tese desenvolvida em STh I, q115, a4 de que o comportamento das massas humanas pode ser determinado pelos astros e assim ser previsto pelos astrólogos, o que se dá, explica,
“porque muitos homens obedecem às paixões corpóreas. Por isso os atos deles sofrem, muitas vezes, as influências dos corpos celestes. E são poucos, i. é, só os sábios, que moderam racionalmente essas influências. Donde vem que os astrólogos [astrologi] predizem a verdade em muitos casos, sobretudo relativamente aos acontecimentos comuns dependentes da multidão.”
Essa seria, segundo Tomás, uma das razões de acerto de previsões astrológicas e não haveria como apontar nessas predições alguma ilicitude. Contudo, Tomás está preocupado com uma outra razão de acertos astrológicos, esta sim ilícita, pois se daria, explica ele,
“por causa da intromissão dos demônios. Donde o dizer Agostinho: Devemos confessar que, quando os matemáticos [astrólogos] dizem a verdade, eles o fazem por uma certa e ocultíssima inspiração, que influi no espírito do homem sem ele o saber. E é obra dos espíritos, que nos seduzem para nos enganar; pois, a eles lhes é permitido conhecer certas verdades a respeito das cousas temporais. Daí conclui: Por isso o bom cristão deve acautelar-se do matemático [astrólogo] ou de quaisquer ímpios adivinhos, sobretudo se falam verdade; a fim de que a sua alma, enganada com o consórcio com os demônios, não fique presa na sociedade deles.”
A conclusão a que chega o Aquinate nessa questão da Suma Teológica assemelha-se ao que está posto no estudo De iudiciis astrorum:
“Funda-se numa opinião falha e vã quem recorre à observação dos astros para prever os acontecimentos futuros casuais ou fortuitos, ou para conhecer com certeza os atos humanos futuros. E aí intervém a ação do demônio, e portanto a adivinhação será supersticiosa e ilícita. Mas não será ilícita nem supersticiosa quando nos baseamos na observação dos astros e de cousas semelhantes para prever os futuros que eles causam nos corpos, como o tempo seco ou chuvoso.”
A causa de não poderem os astros interferir significativamente no comportamento humano e, por isso, não poderem ser antevisto pelos astrólogos, deve-se, esclarece Tomás, ao fato de que
“o intelecto ou a razão não é corpo nem ato de um órgão corpóreo; e por consequência também não o é a vontade, dependente da razão, como está claro no Filósofo69. Ora, nenhum corpo pode influir sobre um ser incorpóreo. Portanto é impossível os corpos celestes influírem diretamente sobre o intelecto e a vontade; o contrário seria dizer que o intelecto não difere dos sentidos, consequência que Aristóteles impõe aos que dizem ser a tal vontade dos homens qual a determina a pai dos homens e dos deuses, i. é, o sol ou o céu. Por onde os corpos celestes não podem ser a causa dos atos livres. Mas podem inclinar dispositivamente para eles, influindo sobre o corpo humano e, por conseguinte, sobre as potências sensitivas, atos de órgãos corpóreos, que levam o homem a agir. Mas, como as potências sensitivas obedecem à razão, segundo o Filósofo, elas não impõem nenhuma necessidade ao livre arbítrio, podendo o homem agir racionalmente, contrariando a influências dos corpos celestes.”
Fica claro, pois, para Tomás o erro da astrologia e o grande perigo dessa arte adivinhatória. Há, contudo, que considerar que o Aquinate reconhece a existência de adivinhação lícita por meio dos astros, restrita à previsão de fenômenos naturais (eclipses e condições climáticas) e à previsão de certos comportamentos de multidões humanas ligados às paixões corpóreas.
Certos elementos gerais da análise que Tomás de Aquino faz da astrologia presentes no artigo da Suma Teológica em discussão não devem passar sem comentários. Ao colocar em debate o problema da licitude da adivinhação do futuro por meio da consulta aos astros, apresenta o Aquinate inicialmente duas teses, ambas destinadas a qualificar positivamente a astrologia por meio da comparação dela com outras artes reconhecidamente eficientes. Primeiramente, Tomás compara a astrologia com a medicina, pelo que, afirma que, se o médico pode fazer prognósticos, de modo análogo se pode prever acontecimento futuro neste mundo a partir da observação dos corpos celestes, pois estes são a causa daquele, pelo que não há ilicitude na adivinhação por meio dos astros.
Em seguida, Tomás recorre à teoria geral da ciência de Aristóteles e apresenta a tese de que como a experiência mostra que é possível a previsão de eventos futuros por observação dos corpos celestes, não há ilicitude alguma em recorrer aos astros para a adivinhação.
Tomás refuta essas duas teses no corpo da solução do artigo, pois argumenta que uma coisa é prever eclipses e tempo seco ou chuvoso, atividade indiscutivelmente lícita, e outra é prever atos humanos futuros, razão pela qual o bom sucesso das previsões da primeira atividade não pode ser usado para justificar as adivinhações da segunda.
Há, contudo, que realçar que nessa questão Tomás de Aquino reconhece que de algum modo os corpos celestes podem influenciar os comportamentos humanos e que os astrólogos podem prever esses acontecimentos. Trata-se de reabertura do programa de investigações astrológicas em relação ao que colocava Agostinho. Para o Bispo de Hipona, a antevisão de comportamentos humanos, individuais ou coletivos, era impossível e as artes práticas já haviam definido todo tipo de influência que os astros poderiam exercer sobre os corpos terrestres. Agostinho não se ocupa em discutir o influxo dos astros no corpo humano. Tomás, diferentemente do Hiponense, fala da astrologia médica e ainda aponta que os astros podem influir nos órgãos humanos de modo a que causem eles paixões, pelo que os astrólogos poderiam então prever os momentos em que os corpos celestes predisporiam os homens a certos comportamentos. Como tais influxos astrais não seriam determinantes dos tais comportamentos, mas apenas predisporiam os homens a eles, o livre arbítrio atuaria contrariando ou não a tendência comportamental, com a ressalva colocada pelo Aquinate de que isso certamente ocorreria somente a um diminuto conjunto de sábios, posto que as multidões se deixariam levar pela paixão provocada indiretamente pelos astros. Por isso, explicou Tomás, verificava-se que os astrólogos eram capazes de prever guerras acertadamente; faziam-no, assim, porque a experiência lhes tornou capazes de correlacionar certas configurações celestes com certos comportamentos de convulsão social, causados pelo influxo dos tais astros sobre os órgãos humanos. Esse processo de previsão astrológica não envolve a ilícita consulta aos demônios e pode, no entender de Tomás, ser incluso no rol das atividades lícitas e úteis.
Tomás e o problema dos Magos do Oriente
Ao tratar da vida de Cristo na terceira parte da Suma Teológica, Tomás de Aquino considerou de passagem a questão da astrologia, ao examinar o problema de se o nascimento do Salvador deveria ser anunciado tanto pelos anjos aos pastores, quanto pela Estrela de Belém aos Magos do Oriente.
Para o Aquinate era necessário que a comunicação da natividade de Jesus Cristo aos Magos se tivesse dado mediante a estrela. Assim explica ele a razão disso:
“Como a demonstração silogística nós a fazemos partindo do que nos é mais conhecido, assim o que se nos manifesta por sinais deve apoiar-se em sinais que nos sejam mais familiares. Ora, é claro que aos varões justos é familiar e habitual serem ensinados pela inspiração interna do Espírito Santo, sem manifestação de sinais sensíveis, ou seja, pelo espírito de profecia. Ao contrário, os dados às causas corpóreas são conduzidos ao inteligível pelo sensível. Ora, os Judeus estavam habituados a receber as determinações divinas por ministério dos anjos, mediante os quais também receberam a lei, segundo àquilo do Evangelho: Recebestes a lei por ministério dos anjos82 Ao passo que os gentios, e sobretudo os astrólogos, estavam habituados a observar o curso dos astros. Por isso aos justos Simeão e Ana, manifestou-se a natividade de Cristo por inspiração interior do Espírito Santo, segundo a Escritura: Havia recebido resposta do Espírito Santo, que ele não veria a morte sem ver primeiro ao Cristo do Senhor83. Mas aos Pastores e aos Magos, como dados às causas materiais, a natividade de Cristo manifestou-se por aparições visíveis. E como a sua natividade não era puramente terrena, mas de certo modo celeste, por isso foi-lhes revelada por sinais celestes. Pois como diz Agostinho84, os anjos habitam o céu e os astros lhes servem de ornamento; a ambos, pois, os céus narram a glória de Deus. E era natural aos Pastores, como judeus, aos quais frequentemente se faziam as aparições dos anjos, por estes lhes fosse revelada a natividade de Cristo; e que aos Magos, habituados à consideração dos corpos celestes, se lhes manifestasse ela pelo sinal das estrelas. Pois como disse [João] Crisóstomo85, o Senhor, condescendendo com eles, quis chamá-los, por meios que lhes eram apropriados. – Mas há ainda outra razão: aos judeus, diz Gregório [Magno]86, como usavam da razão devia lhes pregar um ser racional, i. é, o anjo. Ao passo que os gentios, por não saberem usar da razão para chegar ao conhecimento do Senhor, não pela voz, mas por um sinal. E assim como o Senhor, quando lá falava, o anunciaram, aos gentios, pregadores, por meio da palavra, assim, enquanto ainda não falava foi anunciado pelos elementos mudos. Mas Agostinho [Papa Leão Magno]87 dá ainda a razão seguinte: A Abraão, diz, foi-lhe prometida uma sucessão inumerável, que devia ser gerada, não por via seminal, mas pela fecundidade da fé. Por isso foi comparada à multidão das estrelas, para que fosse esperada uma progênie celeste. E eis por que os gentios designados pelas estrelas, são advertidos, pelo nascimento de um novo astro, a se darem a Cristo, que os tornará filhos de Abraão.”
Assim, Tomás concorda com Agostinho ao considerar que os Magos não leram, pelos métodos astrológicos, nas estrelas, que Cristo haveria de nascer. Fez-se-lhes, na verdade, comunicação especial e particular desse fato extraordinário, por meio de inserção de mensagem em elementos com que eles estavam habituados e que manejavam comumente.
Síntese do Problema da Astrologia, Conforme a Análise de Agostinho e de Tomás de Aquino
Conclui-se assim o longo programa de investigação sobre a astrologia que se estende de Agostinho a Tomás de Aquino. Vista como arte de investigação do mundo, Agostinho aponta-lhe a ausência de fundamento metodológico e vê nela não mais do que uma perigosa sedução que afasta o cristão incauto da sã doutrina. Arruína-se mesmo qualquer sociedade que a considere seriamente, pois a crença na determinação das ações humanas pelos astros torna até mesmo impossível o ordenamento social, pois não há, com a aceitação de seus princípios, como justificar nenhum sistema legal e de prêmios e castigos. Não exclui o Hiponense a ideia de que os corpos celestes causem algo neste mundo, mas o que ocorre nesse aspecto limita-se a um certo número de fenômenos adstritos a questões materiais relativas às atividades práticas comuns, sendo que essas relações são de há muito conhecidas.
Tomás de Aquino, não obstante aceitar o parecer de Agostinho sobre a astrologia, considera a possibilidade de haver fundamento na ideia de que os corpos celestes podem influir em certos órgãos do corpo humano relacionados com as virtudes inferiores e as paixões. Os astros, assim sendo, inclinam o homem a alguns comportamentos, mas não o determinariam. As massas humanas podem deixar-se tomar pelas paixões despertas pelo influxo dos astros, mas os sábios conseguirão resistir a elas. Por causa disso, os astrólogos são capazes de prever guerras e outros tipos de distúrbios semelhantes. Há um pequeno espaço para a astrologia, sem contudo haver incompatibilidade entre o influxo astral e o livre arbítrio.
Destarte, o que para Agostinho era um programa de pesquisa esgotado, para Tomás apresentava-se como um programa aberto. Toda uma área médica, a medicina astrológica ou iatromatemática, poder-se-ia desenvolver e os seus frutos, oriundos da aplicação de método fundamentado e de prática totalmente lícita, apresentar-se-iam para uso, tanto no campo estrito da saúde física e mental, quanto em outros campos de interesse social. Contudo, esse programa de pesquisa de medicina astrológica, tal como delimitado por Tomás de Aquino, não obstante parecer à época do Aquinate promissor, mostrou-se nos séculos seguintes falível, pelo que a astrologia voltou ao estatuto anterior e a apresentar tão-somente todas as deficiências graves que lhe apontou Agostinho. Parece agora totalmente impossível retirar essa arte da categoria de pseudociência. Contudo, a astrologia ainda é popular e influente e se apresenta de formas variadas e constitui interessante e importante desafio cultural. Em face disso, convém examinar alguns aspectos do problema da astrologia na cultura hodierna e de como as ideias de Agostinho e de Tomás de Aquino ainda oferecem material para criticar e combater essa arte.

O Problema da Astrologia na Cultura Hodierna
Não obstante as duras críticas que lhe são dirigidas há tempos, a astrologia permanece pujante e ocupa espaço significativo na cultura em todos os períodos. Não passa despercebida sua presença hodiernamente. Em que pese ser incompatível com a ciência e a tecnologia modernas mantém-se ela alheia aos ataques que lhe são dirigidos pelos defensores dessas duas importantes forças construtoras da cultura contemporânea. Assim sendo, continua ela imune também ao multivariado repertório de críticas que lhes lançaram Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino. Trata-se, pois, de um curioso e importante fenômeno cultural, cujos componentes psicológicos e sociais não parecem despertar a curiosidade dos pesquisadores. Estudar esse assunto parece ter como uma de suas consequências a revelação do frágil alicerce e da confusa urdidura da cultura contemporânea.
Não é capaz a astrologia de submeter suas teorias ao crivo da comprovação empírica. Já o sabia Agostinho, como visto, que mesmo na sua época verificou a inconsistência da astrologia, ao certificar-se de que os horóscopos nada eram capazes de dizer sobre as pessoas. Passado o tempo, cada vez menos a astrologia mostrou-se capaz de evidenciar que as suas afirmações suportam algum tipo de averiguação experimental. Se isso já não ocorria no tempo de Agostinho, e de Tomás, menos ainda conseguem nos tempos atuais cujos métodos e técnicas da averiguação são ainda mais precisos e rigorosos do que eram no tempo desses dois gigantes da história do pensamento.
Se falha cabalmente em mostrar-se capaz de suportar os testes experimentais, não consegue também a astrologia explicar de forma razoável por que processos os astros afetam a vontade e o arbítrio das pessoas. Suas teorias, portanto, não se compatibilizam com as teorias da astrofísica, da biologia (incluindo as da medicina) e da psicologia.
Um observador da cultura contemporânea, que valoriza maximamente a ciência e a tecnologia, admira-se de verificar que no final do século XX, havia, nos Estados Unidos dez vezes mais astrólogos do que astrônomos e, na França, mais astrólogos do que padres. Tais sociedades, portanto, rejeitam maciçamente os critérios atualmente usados no âmbito da discussão das questões científicas. Tais critérios, quando aplicados à astrologia, rebaixam-na à condição de pseudociência. Destarte, os que aceitam atualmente a astrologia desconsideram também os pareceres negativos de Agostinho e de Tomás sobre essa arte adivinhatória, que além de a desqualificarem quanto aos quesitos de cientificidade, pois estão em sintonia com os critérios da hodierna filosofia da ciência, também a julgam completamente incompatível com as doutrinas cristãs.
O exame de alguns casos que envolveram a astrologia no século XX e início do século XXI, arbitrariamente colhidos entre muitos, pode dar ideia do estado da cultura contemporânea e da pertinência do uso dos ensinamentos de Agostinho e de Tomás no mundo hodierno. Como se verá, passados muitos séculos, verifica-se que permanecem válidas as análises e as estratégias de crítica do Hiponense e do Aquinate à astrologia.
O Caso Louis de Wohl
O escritor húngaro de expressão alemã Louis de Wohl, católico, a par da redação de notáveis biografias romanceadas de santos, dedicou-se intensamente ao estudo e à prática da astrologia. Por ocasião da ascensão do nazismo, de Wohl abandonou a Alemanha, onde vivia, e exilou-se na Inglaterra. Durante a Segunda Guerra Mundial, seus conhecimentos astrológicos propiciaram-lhe um curioso cargo oficial, no posto de capitão, no Departamento de Guerra Psicológica do Exército, onde teve, nas suas próprias palavras, “a oportunidade de aplicar o conhecimento astrológico contra um dos inimigos mais perigosos da Humanidade, que se servia ele mesmo da astrologia [, de modo que essa arte se transformou em] uma arma tão moderna quanto os tanques ou as bombas”.
Neste breve comentário, contudo, esse caso astrológico deve ser analisado porque Louis de Wohl buscou justificação para sua dedicação à arte dos horóscopos em Tomás de Aquino. Diz de Wohl que
“foi santo Tomás de Aquino, quem, em sua Summa Theologica (Secunda Secundae, Questio 95), fez um dos mais inteligentes comentários jamais expressados sobre a astrologia. Em sua opinião, as estrelas têm um efeito mais forte sobre as massas do que sobre o indivíduo e sobre a gente primitiva e ignorante do que sobre o homem ajuizado. Em outras palavras, o homem prudente e sábio é mais livre, mais independente, porque sua mente e sua vontade podem tratar com influências cujo efeito, no principal, tende a ser de natureza instintiva.”
A visão que de Wohl tem da astrologia parece ser muito pessoal e incomum. Ele se convenceu de que a astrologia é uma ciência autêntica, porque acreditava ser possível comprovar, mediante a observação, o que dizem os astrólogos. É evidente que de Wohl busca conciliar sua concepção da astrologia com o catolicismo, baseado no parecer de um jesuíta não nominado que lhe disse que a razão de a Igreja condenar a astrologia se deve ao fato de os hereges se servirem dela, o que se faria desde os priscilianistas no século V e VI. Pesaria também fortemente contra a arte dos horóscopos, acrescentou o dito jesuíta, o duro parecer de Agostinho. Todavia, pondera de Wohl, a astrologia que o Bispo de Hipona conheceu e praticou e depois combateu intensamente era primitiva e defeituosa e “não se pode surpreender – diz ele – que santo Agostinho tenha condenado a fatalista e corrompida astrologia de seu tempo; surpreendente seria se não o houvesse feito.” Afirma, então, de Wohl que “sempre que neguem o livre arbítrio do homem” está certa a Igreja em combater os que o fizerem. Adicionalmente, lamenta o escritor húngaro a crença generalizada de que o astrólogo tem de ser necessariamente ocultista; ideia equivocada que certamente afasta muitos da astrologia. Ora, afirma de Wohl, se ela é uma ciência, e quer seu lugar entre as ciências, deve ela valer-se por si mesma, em vez de veículo para a difusão de alguma doutrina.
No entendimento de de Wohl,
“o principal resultado das influências cósmicas sobre o homem é de caráter psicológico. Não se trata de uma influência que se exerça sobre sua alma, mas sobre sua mente e seu corpo. Não é uma influência coercitiva, pois o homem é livre por sua vontade, sendo, portanto, inteiramente responsável por seus atos e decisões.”
A astrologia, afirma de Wohl, não faz profecias e “trata não de certezas, mas de tendências [e] tem uma margem de erro muito ampla.” Parece ser diminuto o número de astrólogos que partilham com de Wohl essas ideias sobre a astrologia. Durante a Segunda Guerra Mundial, envolveram-se diretamente no conflito, segundo as contas do próprio escritor, apenas sete praticantes dessa seleta visão, um apenas com os Aliados, o próprio de Wohl, e seis do lado das potências do Eixo.
De Wohl parece crer que o programa de pesquisa astrológico delineado no século XIII por Tomás de Aquino encontrou no século XX plenas condições de desenvolvimento. Defende o escritor húngaro enfaticamente que a arte astrológica em muito se assemelha à pesquisa científica, pelo menos da forma como ele caracteriza esta última.
De Wohl, no tocante à astrologia, foi uma voz solitária, a que se deu pouca atenção. Seu programa de pesquisa astrológica foi não mais do que uma aventura meramente pessoal. Para não incompatibilizar sua condição de católico com a prática da astrologia, de Wohl foi buscar aprovação em Tomás, mas desconsiderou a falência da medicina astrológica e não mostrou que os astrólogos são eficientes em prever acontecimentos bélicos. Ora, sem precisão nesse tipo de previsões e sem que se mostre a correlação entre as conjunções astrais e certos estágios fisiológicos não se sustentam os argumentos de Tomás. Visivelmente para de Wohl o estudo dos horóscopos era um hábito intelectual agradável e o sucesso que teve em introduzir a astrologia no esforço de guerra britânico contra a Alemanha nazista, mais do que outra razão qualquer, aumentou-lhe fortemente a convicção da validade dessa arte.
O Caso do Manifesto dos 186 Cientistas
Em 1975, um grupo de renomados cientistas publicou um manifesto com objeções à astrologia em que se lê:
“Cientistas de vários campos tornaram-se preocupados com a crescente aceitação da astrologia em muitas partes do mundo. Nós, abaixo-assinados, astrônomos, astrofísicos e cientistas de outros campos desejamos advertir o público relativamente à aceitação sem questionamento das previsões e de aconselhamento dado, privada e publicamente, por astrólogos. Os que desejam acreditar na astrologia devem perceber que não há nenhum fundamento científico nos seus princípios.
Nos tempos antigos, as pessoas acreditavam nas previsões e conselhos dos astrólogos porque a astrologia era parte integrante de sua visão mágica de mundo. Viam elas os objetos celestes como moradas ou presságios dos deuses e, por isso, intimamente ligados com eventos aqui na terra; não tinham elas nenhuma ideias das vastas distâncias da terra aos planetas e às estrelas. Agora que estas distâncias podem e foram calculadas, podemos ver quão ínfima é a força gravitacional e outros efeitos produzidos pelos distantes planetas e pelas mais distantes estrelas. É simplesmente um erro imaginar que forças exercidas por estrelas e planetas no momento do nascimento podem, de algum modo, conformar nossos futuros. Também não é verdade que a posição dos corpos celestes distantes determinam dias ou períodos mais favoráveis para tipos específicos de ação, ou que o signo sob o qual alguém nasceu determine a compatibilidade ou incompatibilidade com outras pessoas.
Por que as pessoas acreditam na Astrologia? Nestes tempos de grandes incertezas, para o conforto de ter orientação na tomada de decisões. Gostam elas de acreditar em um destino predeterminado por forças astrais que estão além de seu controle. No entanto, todos devemos enfrentar o mundo, e temos de perceber que nossos futuros se encontram em nós mesmos e não nas estrelas.
Seria de imaginar que nestes dias de generalizada instrução e educação, seria desnecessário desmerecer crenças baseadas em magia e superstição. Contudo, a aceitação da astrologia permeia a sociedade moderna. Perturba-nos especialmente a contínua divulgação acrítica de mapas astrológicos, previsões e horóscopos pelos meios de comunicação, até mesmo por respeitáveis jornais, revistas e editoras. Isso só pode contribuir para o crescimento do irracionalismo e obscurantismo. Acreditamos que chegou o momento de desafiar, diretamente e com firmeza, as alegações pretensiosas dos charlatães astrológicos.
É evidente que os indivíduos que continuam a ter fé na astrologia fazem-no apesar do fato de que não haver nenhuma base científica verificada nas suas crenças, e que há, na verdade, fortes evidências em contrário.”
Assinam o documento 186 conhecidos cientistas, dentre os quais 18 galardoados com o prêmio Nobel.
Para aquilatar o valor, o significado e o impacto desse curioso texto, o mais adequado parece ser ouvir um de seus críticos, o filósofo da ciência Paul Feyerabend, e também um renomado cientista que foi convidado a aderir ao manifesto e não o fez, o astrônomo Carl Sagan.
Feyerabend, com seu inigualável estilo, pôs-se a rir do manifesto. Destaca o filósofo inicialmente “o tom religioso do documento, o analfabetismo dos ‘argumentos’ e a maneira autoritária em que são expostos”. Compara Feyerabend, em seguida, o dito manifesto ao o conhecido tratado renascentista de combate à bruxaria Malleus Maleficarum e aponta, primeiramente, a semelhança existente entre o que dizem os cientistas no início de seu documento e o se encontra na bula papal que lhe serve de introdução ao célebre tratado. Segundo Feyerabend,
“as palavras são quase as mesmas […] e o mesmo vale para os sentimentos expressos. Tanto o papa quanto os 186 cientistas se lamentam da popularidade crescente de concepções que consideram suspeitas. Porém, que diferença de erudição e de cientificidade! Se o leitor compara [o tratado Malleus Maleficarum com o texto antiastrológico dos 186 cientistas] poderá comprovar sem esforço que o papa e seus doutos autores sabiam do que falavam, coisa que não se pode falar de nossos cientistas.”
Fala em seguida o filósofo que esse ataque à astrologia “está condenado ao fracasso” e critica o hábito de atribuir à astrologia erros fundamentais que lhe seriam intrínsecos desde as suas origens remotas e se esquece de dizer que o estudo das relações entre os astros e os seres vivos que se mostraram cientificamente corretos também provém da astrologia; enfraquece-se assim essa crítica à astrologia ao incorrer propositadamente em análise histórica e epistemológica deficientes.
Carl Sagan, por sua vez, relata que:
“um astrônomo que admiro redigiu um manifesto modesto chamado ‘Objeções à astrologia’ e me pediu que o endossasse. Lutei com o seu fraseado e, por fim, me vi incapaz de assinar – não porque achasse que a astrologia tem alguma validade, mas porque sentia (e ainda sinto) que o tom do discurso era autoritário. Ele criticava a astrologia por ter origens encobertas na superstição. Mas isto também é verdade para a religião, a química, a medicina e a astronomia, no mínimo. O problema não é saber de que conhecimento precário e rudimentar a astrologia se originou, mas qual é a sua validade presente. Depois havia uma especulação sobre os motivos psicológicos dos que acreditam na astrologia. Esses motivos – por exemplo, o motivo de impotência num mundo complexo, penosos e imprevisível –poderiam explicar por que a astrologia não é geralmente submetida ao exame cético que merece, mas ficam à margem da questão que é de saber se ela funciona.”
Ora, o fato de dois pareceres tão semelhantes serem exarados por pensadores tão diferentes revela apenas a fraqueza dos argumentos e a dificuldade de atacar a astrologia com base exclusivamente na sua ausência de cientificidade. Não há unidade na cultura ocidental contemporânea, o que faz existirem condições de sustentação independentes para a ciência, de um lado, e para a astrologia, dentre tantas pseudociências, de outro.
Parafraseando Feyerabend, se compararmos o manifesto antiastrológico dos 186 cientistas, escrito em 1975, com o que disseram contra a astrologia Agostinho e Tomás de Aquino, que diferença de erudição e de cientificidade! Pode-se verificar comprovar sem esforço que o Hiponense e o Aquinate sabiam do que falavam, o que não se pode dizer desses cientistas signatários de um manifesto pífio e inócuo.

O Caso Carlson
Dez anos após o manifesto dos 186 cientistas contra a astrologia, uma das principais revistas científicas, a prestigiosa Nature, publicou artigo em que se busca demonstrar experimentalmente a ausência total de fundamentos das previsões astrológicas baseadas na análise dos horóscopos individuais.
O estudo experimental, composto por dois testes que se complementam, foi conduzido pelo doutorando de física da Universidade da Califórnia, campus de Berkeley, Shawn Carlson. A pesquisa de Carlson envolveu 30 astrólogos voluntários, norte-americanos e europeus, indicados por seus pares por estarem entre os que foram considerados, pelos próprios pares, os melhores praticantes da arte. Alguns astrólogos profissionais colaboraram com Carlson no planejamento dos testes e estabeleceram em 50% o resultado mínimo aceitável de acerto. Na realização dos testes, os astrólogos não entraram em contato com os sujeitos de pesquisa (clientes).
Os testes foram os seguintes:
Teste nº 1: Fizeram-se inicialmente os mapas astrológicos (horóscopos) de 83 voluntários (estudantes universitários) com base nos dados fornecidos por eles (data, hora e local de nascimento). Posteriormente, apresentou-se a cada um deles um conjunto de três interpretações dos horóscopos (a do próprio sujeito e mais duas derivadas de dados natais de outras pessoas) e solicitou-se que ele apontasse a que mais corretamente o descrevia. Resultado: Em apenas 28 dos 83 casos (34%), o sujeito escolheu a interpretação referente a seu próprio horóscopo.
Teste nº 2: 116 voluntários preencheram um questionário padrão de personalidade (“California Personality Index”- CPI) e forneceram os dados de nascimento (data, horário e local). Em seguida, apresentou-se a cada astrólogo os dados de nascimento para feitura do mapa astrológico, acompanhado de três questionários de personalidade (um dos quais do voluntário que forneceu os dados de nascimento e os outros dois aleatoriamente escolhidos entre os questionários disponíveis) e solicitou-se que o astrólogo apontasse qual dos questionários correspondia aos dados natalícios. Resultado: Em apenas 40 dos 116 casos (34%), os astrólogos escolheram o questionário CPI correto.
Eis a conclusão de Carlson: “Testadas com o método duplo-cego, as predições dos astrólogos provaram-se erradas. A conexão prevista entre as posições dos planetas e outros objetos astronômicos no momento do nascimento e as personalidades dos indivíduos do teste não existe. O experimento claramente refuta a hipótese astrológica.”
Em que a crítica de Carlson ao método da astrologia é superior à crítica de Agostinho mediante o problema dos gêmeos e o dos nascimentos simultâneos? Obviamente tem o pesquisador contemporâneo recursos estatísticos que não estavam ao dispor do Hiponense. O que para Agostinho limitou-se a um experimento mental, restrito ao caso dos nascimentos simultâneos, para Carlson tornou-se algo possível de ser efetivamente executado, na forma de um experimento concreto. Contudo, o pesquisador do século XX teve de restringir-se apenas ao exame do método astrológico e apontar que ele é ineficiente. Já Agostinho fez algo mais, pois além de apontar a falsidade do método também acresceu aos argumentos o rol de danos morais causados pela arte astrológica e também apontou a incompatibilidade de sua visão de mundo com a da doutrina cristã.
Ao que parece, o impacto do artigo de Carlson publicado na revista Nature foi nulo e nada representou no esforço de combater a astrologia.
O Caso Élisabeth Teissier
Em 7 de abril de 2001, defendeu-se na Universidade Paris Descartes a tese de doutorado em Sociologia intitulada “Situação epistemológica da astrologia através da ambivalência fascínio-rejeição nas sociedades pósmodernas” [Situation épistémologique de l’astrologie à travers l’ambivalence fascinationrejet dans les sociétés postmodernes]. Sua autora era a famosa astróloga Elizabeth Teissier muito conhecida por causa de um programa diário de horóscopos na televisão. Orientou-a Michel Maffesoli e presidiu a banca examinadora Serge Moscovici, duas insignes figuras do meio acadêmico francês, mundialmente renomadas.
A aprovação da tese procou aspera polêmica uma vez que o texto, mais do que discutir a aceitação e a rejeição da astrologia, dedicava grande parte à defesa da legitimidade científica da astrologia. A autora viu na polêmica que se seguiu à aprovação da tese apenas a exemplificação de sua teoria de ambivalência fascínio-rejeição.
Conforme Mario Bunge, “as pseudociências são excelentes testes para as filosofias das ciências. Diga-me – prossegue o filósofo – quantas pseudociências você compra e dir-lhe-ei quanto vale a sua filosofia da ciência.” Que decorre, pois, da aplicação desse princípio analítico às filosofias da ciência do orientador de Élizabeth Teissier, Michael Maffesoli, e à banca de examinadores que analisou e aprovou sua tese de doutorado, presidida por Serge Moscovici? Ora, outra não pode ser a conclusão senão a de que se guiaram esses insignes acadêmicos por critérios fragilíssimos, que não lhes permitiram distinguir um estudo sociológico da astrologia de um discurso que defendia a validade da astrologia. Quem avalia os argumentos de Teissier considerando o título do trabalho, quer entender como explica a autora o paradoxo de haver na cultura ocidental de um lado, o fascínio popular pela astrologia e, de outro, a rejeição dela no meio acadêmico. O que o leitor encontra, contudo, é um longo discurso que defende a validade do método astrológico, em vista do que seria injustificável a rejeição acadêmica da astrologia e a qualificação dessa arte como pseudociência. Valeu-se a autora muito habilmente da arte retórica e da fragilidade da filosofia da ciência de seu orientador e dos examinadores convidados para a banca e compôs uma peça literária de valor nulo. De interessante restou a breve polêmica e a clara evidenciação da tibieza e da desorientação da cultura acadêmica contemporânea, da qual são figuras de primeira grandeza tanto o orientador de Teissier, quanto o presidente da banca examinadora.
Finalize-se este breve comentário ao caso Teissier, recorrendo outra vez ao estilo de Feyerabend, como feito em relação manifesto antiastrológico dos 186 cientistas: Se compararmos o que pensam sobre a astrologia professores universitários pertencentes a uma multissecular comunidade acadêmica, em pleno início do século XXI, que examinaram a tese de Élizabeth Teissier, com o que disseram sobre a astrologia Agostinho e Tomás de Aquino, que diferença de erudição e de cientificidade! Pode-se verificar sem esforço que o Hiponense e o Aquinate sabiam do que falavam, o que não se pode dizer dos professores que participaram da banca de doutorado que aprovou a tese de Élizabeth Teissier.
Considerações Finais
Há que encerrar este estudo com um breve apanhado das ideias de Agostinho e de Tomás de Aquino relativas à astrologia, que permita avaliar a contribuição dada por esses dois gigantes do pensamento ao problema da investigação do mundo natural.
Averiguando o que dizem nos dias correntes os filósofos da ciência relativamente à astrologia, verificar-se-á facilmente que essa arte é comumente inserida por eles no rol das falsas ciências. Mario Bunge, por exemplo, inclui a astrologia na categoria das pseudotecnologias. Bunge, a propósito, considera que dentre as muitas tarefas que cabem aos filósofos das ciências, uma delas é a de identificar e combater as pseudociências.
Se aplicarmos o critério de Bunge para estimar o valor do trabalho analítico de Agostinho relativo à astrologia, não é possível outro parecer senão o de que o Hiponense cumpriu, no seu tempo, o que se exige que os filósofos da ciência de hoje em dia façam. Com efeito, o rótulo que o rigoroso Mario Bunge aplica à astrologia é o mesmo que, com o vocabulário da época, Agostinho atribuiu à arte dos “mathematicus”, isto é, dos astrólogos de seu tempo, qual seja, a de que ela era uma falsa técnica. Que se diga o mesmo de Tomás de Aquino, que seguiu, nesse assunto, os ensinamentos básicos de Agostinho, com mínima variação.
Como visto, Agostinho reconheceu que os astros podiam exercer influência nos seres terrestre, mas não o faziam, sobretudo no que diz respeito aos seres humanos, como os astrólogos afirmavam e defendiam. Que o estudo dos astros houvesse mostrado como eles atuavam em matéria de interesse geral, no tocante, por exemplo, a questões agropastoris, náuticas, médicas e outras semelhantes, nada tinha Agostinho que objetar, pois havia como demonstrar objetivamente se uma alegada influência ocorria ou não, e a longa experiência humana nesses assuntos já o havia feito. Com base na análise a que submeteu, contudo, os métodos e técnicas da astrologia, sobretudo no pertinente à técnica dos horóscopos, Agostinho assegurou-se de que os astros não afetavam a vida e o comportamento humano como afirmavam os astrólogos, pelo que a arte por eles praticada não passava de embuste. Como agravante, sustentou Agostinho ainda que, em vista dos princípios em que se apoiava a arte astrológica, entrava ela em conflito insanável com a doutrina cristã, pelo que deveria ser severamente combatida. O parecer de Agostinho foi inteiramente abonado por Tomás de Aquino, não obstante ter o Aquinate admitido que os astros podiam afetar o corpo humano de modo a predispor as pessoas a certos comportamentos passionais, fenômeno que o Hiponense não considerou.
Ao julgar o valor da análise crítica da astrologia feita por Agostinho, e que serviu de base para a de Tomás de Aquino, alguns analistas partem da ideia de que o Hiponense conhecia mal e parcamente a astrologia. Para defender esse argumento afirmam, por exemplo, que Agostinho ignorava o “Tetrabiblos”, livro que supostamente todos os praticantes da arte conheciam e que lhes dava a sustentação para todas as tarefas requeridas pelo ofício. Ora, não parece certo que a astrologia na época fosse uma arte monolítica e que todos os astrólogos partilhassem as mesmas teorias e métodos e tivessem o “Tetrabiblos” como uma espécie de manual e guia comum. Nada indica que o “Tetrabiblos” representasse para a astrologia da época o mesmo que o “Almagesto” significava para a astronomia; talvez se considere que essas obras têm o mesmo valor e importância para as suas áreas pelo fato de terem a assinatura do mesmo autor. Há, pois, que cobrar dos que creem na fragilidade dos conhecimentos astrológicos de Agostinho e na improcedência de suas críticas à arte, que mostrem, pelo menos, como refutar, fazendo uso do “Tetrabiblos”, os argumentos antiastrológicos utilizados por Agostinho. Também se pode usar para colocar em dúvida a qualidade da crítica de Agostinho o fato de ele tratar dos temas astrológicos sem o uso de linguagem de especialista e também de o fazer muito breve e esparsamente e de nunca ter dedicado um texto exclusivo ao assunto. Ainda que se possa lamentar que Agostinho não tenha brindado os leitores com um estudo antiastrológico específico, nem isso, nem o uso de léxico não especializado, pode ser usados para anular os argumentos que ele utilizou, que valem por si mesmos. Ainda se pode querer apequenar o esforço analítico de Agostinho imputando-lhe a pecha de mero reprodutor de argumentos antigos usados contra a astrologia, como o dos gêmeos. Não parece importante que o argumento dos gêmeos não seja original. Importa sim, insista-se no desafio, mostrar-lhe a improcedência e fazê-lo recorrendo ao “Tetrabiblos”. Ademais, não usa Agostinho apenas o argumento dos gêmeos mas também o do nascimentos simultâneos e no mesmo local de não gêmeos e ainda recorre a uma gama de problemas relativos ao do nascimento de animais e à germinação de sementes, visto que para o Hiponense não fazia sentido limitar as teorias dos influxos dos astros apenas aos seres humanos e não estendê-las a todos os seres vivos.
O argumento de que Agostinho não conhecia adequadamente a astrologia e que seu ataque aos métodos e técnicas dessa arte é fraco complementa-se com a ideia de que foram sobretudo interesses de natureza doutrinária cristã que o moveram primordialmente a combater a astrologia. Agostinho identificaria a arte astrológica como uma atividade necessariamente vinculada ao paganismo e tão-somente isto bastaria para que atirasse ele sobre a astrologia todo tipo de argumento desfavorável. Ora, no próprio relato de Agostinho, vê-se que as críticas que fez ele ao método da astrologia desenvolveram-se muito antes de sua conversão ao cristianismo e foram suficientes para que ele abandonasse essa arte. É fato que ele não passou a combater a astrologia imediatamente e que não o fez nos primeiros tempos após a conversão. A campanha antiastrológica de Agostinho desenvolveu-se como parte de suas atividades pastorais, quando ele percebeu o quão influente e danosa era a astrologia no seio da comunidade cristã de Hipona. Na luta contra a astrologia, o Bispo de Hipona utilizou a crítica técnica que já havia desenvolvido anteriormente, e que o havia levado a abandonar essa arte, e ainda a reforçou com muitos argumentos ligados à doutrina cristã, ampliandoa, por exemplo, para o campo moral. Agostinho já sabia, antes de converterse, que a astrologia era ineficiente e sem fundamento; após a conversão verificou que ela também era radicalmente anticristã e necessariamente imoral, até mesmo para os não cristãos.
Quanto à importante tarefa, acima mencionada, de identificar pseudociências e pseudotecnologias, deve-se considerar que ela é muito antiga. Identificar teorias falsas é especialmente importante no tocante àquelas que se referem ao mundo natural e às coisas práticas. Como muitas dessas teorias dizem respeito a assuntos úteis da vida cotidiana, despertam elas grande interesse e o que se puder fazer relativamente a esses assuntos é, e sempre foi, de grande valor. Se alguém, por exemplo, alega conhecer técnica de fazer chover ou parar de chover, tal pessoa merece atenção especial, pois pode solucionar as situações calamitosas comuns resultantes da escassez ou do excesso de chuva. Se a aplicação da técnica satisfizer minimamente ao interessado, a teoria usada para justificação das ações pertinentes gozará de aprovação e será considerada verdadeira, ou, pelo menos, não despertará críticas. Se, contudo, duas ou mais técnicas diferentes disputarem um mesmo assunto, haverá que dispor o interessado nos resultado prometido pelos defensores das ditas técnicas de meios de analisar criteriosamente cada técnica e julgar objetivamente se ela é eficiente ou não. Se o criador de certo animal desejar em dado momento que nasçam apenas indivíduos do sexo masculino ou do feminino e lhe disser alguém que para conseguir isso deve ele cuidar que as coberturas ocorram apenas quando certa conjunção de astros se der, e outro lhe recomendar que cuide de alimentar as matrizes somente com certos alimentos e não com outros e um terceiro, ainda, aconselhe que se mantenham as fêmeas prenhes apenas em ambientes quentes ou frios, haverá o interessado de enfrentar a difícil tarefa de avaliar essas técnicas.
Parece certo que desde tempos imemoriais atribuem-se a muitos fenômenos terrestres causas celestes. Houve, pois, longo e árduo trabalho de examinar caso por caso e discernir quais relações de causa e feito eram verdadeiras, quais não eram. Como visto, há nos relatos de Agostinho referências a vários tipos de fenômenos que eram considerados causados pelos astros. O pai do amigo Firmino, por exemplo, ocupava-se da influência dos astros na determinação do sexo de animais e de seres humanos. Outros astrólogos conhecidos do Hiponense vaticinavam, informados do local e da hora do nascimento de um animal, quanto à espécie a que pertencia e de que sexo era. Averiguar criteriosamente a eficiência dessas técnicas, cuja importância prática é evidente, é tarefa das mais valiosas. Separar com exatidão as técnicas eficientes das ineficientes é trabalho da filosofia da ciência e representou no passado importante contribuição para a metodologia da ciência. À medida em que se apuravam os critérios que permitiam mostrar as razões de uma técnica não funcionar, elaborava-se o método experimental que movimenta o que hoje se chama de ciência; a identificação no passados das pseudotecnologias contribuiu significativamente para o nascimento da ciência moderna. Em vista disso, deve-se considerar Agostinho um importante precursor da filosofia da ciência, pelo seu trabalho criterioso e pertinaz de analisar e criticar a arte dos “matemáticos” de seu tempo, com o que se contribuiu destacadamente para o amadurecimento do método experimental. De Tomás de Aquino deve-se dizer o mesmo, pois o Aquinate reexaminou o que disse o Bispo de Hipona sobre a astrologia e após assegurar-se de que o parecer deste era adequado aplicou-o, com as alterações que julgou necessárias, ao problema da influência dos astros, como este se apresentava no seu tempo.
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