Agostinho, Tomás de Aquino e o Problema da Astrologia – I

Agostinho de Hipona

Paulo S. Terra

Universidade Estadual de Santa Cruz.

Resumo

O objetivo deste estudo é investigar como Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino analisaram o problema da astrologia. Agostinho condenou a astrologia; segundo ele, a astrologia não tem nenhuma base lógica e é totalmente contrária às crenças cristãs. Tomás de Aquino aceitou as ideias de Agostinho e também condenou a astrologia. A refutação do método astrológico por Agostinho e Tomás de Aquino assemelha-se, mutatis mutandi, à que é feita atualmente por muitos filósofos da ciência.

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Analisa-se neste texto como Aurélio Agostinho e Tomás de Aquino examinaram o problema da astrologia¹. Era muito difundida e influente a astrologia nos tempos de Agostinho e de Tomás e certamente por isso ambos dedicaram-lhe grande atenção. A época presente não parece diferente, pois se vê com facilidade que goza a atividade astrológica de notável vigor. Mostra-o, por exemplo, a extensa literatura produzida por seus adeptos e também o espaço a ela dedicado nos variados meios de comunicação. Em parte importante da cultura contemporânea, contudo, o prestígio dessa atividade é o menor possível. No âmbito da filosofia da ciência, ela é comumente arrolada entre as pseudociências, qualificação das mais baixas que se pode atribuir a uma atividade intelectual. Não há, também, como alguém aprender o ofício de astrólogo regularmente numa universidade. A exclusão da astrologia de qualquer nível da educação formal mostra claramente o estatuto duplo dessa atividade, altamente visível e influente numa face da cultura contemporânea e oculta e desprestigiada em outra.

1 Caberia, pois, iniciar este estudo pelo entendimento do que compreende a expressão “problema da astrologia”. A problemática que envolve essa atividade é de tal ordem que começa até mesmo com a dificuldade de definir o que é ela. Essa dificuldade ainda se agrava se a extensão de tempo requerida para o estudo for, como será na análise aqui empreendida, de muitos séculos. Não somente oito séculos separam Agostinho de Hipona de Tomás de Aquino, como outros oito distam o Aquinate do momento presente, tempo este em que também se realizam atividades astrológicas, o que se faz em grande escala e de maneira não menos cercada de polêmicas do que ocorreu na época dos dois gigantes da filosofia e da teologia aqui enfocados. Provisoriamente pode-se considerar que hodiernamente a astrologia envolve principalmente a elaboração do horóscopo natalício (representação gráfica que indica a posição dos astros no momento do nascimento); é em torno dessa técnica que se pode discutir o propósito e a qualidade do trabalho dos astrólogos. Em tempos antigos, interessavam aos astrólogos também outros tipos de influências dos astros sobre as pessoas e também sobre os animais e plantas e recorriam a outras técnicas e não apenas à dos horóscopos natalícios.

Aos que conhecem os argumentos usados atualmente para não incluir a astrologia no rol das ciências, não poderá passar despercebido na leitura das Confissões ou de A cidade de Deus que muito do que Agostinho disse contra a astrologia nessas duas obras monumentais é, mutatis mutandi, o mesmo que se lê hodiernamente em livros de filosofia da ciência. Isso não faz do Hiponense apenas um analista antigo e qualificado do tema, visto que ele não combateu a astrologia tão-somente apontando a improcedência de seu método, como fazem os filósofos da ciência contemporaneamente. À crítica metodológica e gnosiológica, adicionou também Agostinho outra, de cunho doutrinário e moral. Resultou desse esforço analítico do Hiponense a caracterização da astrologia como uma arte infundada, por ser totalmente destituída de elementos que permitam algum tipo de conhecimento do mundo, e, além disso, como atividade perigosa e indigna, pois engana, escraviza e desvia as pessoas da boa conduta, pelo que ela contraria radicalmente a doutrina cristã. Certamente Agostinho é um dos mais contundentes inimigos da astrologia de todos os tempos. Tomás de Aquino, ao examinar o problema da astrologia séculos depois, abonou essencialmente os ensinamentos do Hiponense. Em grande medida, essas mesmas ideias, não obstante o lapso de tempo, continuam ainda aplicáveis contra a astrologia e algumas são efetivamente usadas até mesmo por pessoas que defendem ideias filosóficas e teológicas muito diferentes das do Hiponense e do Aquinate.

Neste artigo, revisar-se-ão inicialmente, em ordem cronológica, os textos de Agostinho que tratam da astrologia. Verificar-se-á em seguida em que medida os textos e as ideias de Agostinho influenciaram Tomás de Aquino no tratamento do problema da astrologia de sua época. Por último, tratar-se-á brevemente da polêmica da astrologia nos dias de hoje, a partir da análise de algumas discussões e polêmicas que tiveram vez no final do século XX e no início do XXI.

Nesta empreitada, há que considerar com especial atenção os que se dedicaram a examinar o que disseram sobre a astronomia tanto Agostinho de Hipona quanto Tomás de Aquino. A abalizada e severa crítica que Agostinho lançou contra a astrologia foi objeto de dois conjuntos de estudos de alto valor, conduzidos um por Leo Charles Ferrari, que atentou para os aspectos psicológicos do pensamento agostiniano, e outro por Thomas O’Loughlin, que analisou a estrutura e o desenvolvimento das ideias anti-astrológicas do Hiponense. A esses notáveis estudos deve-se somar o trabalho sinóptico de Cristóbal Macías Villalobos, que contém uma exaustiva e valiosa análise do léxico astronômico-astrológico agostiniano. Com esses recursos preciosos, pode-se estimar acuradamente a contribuição de Agostinho e de Tomás não somente para a solução do problema da astrologia, mas também para o desenvolvimento de elementos próprios de investigação científica. Ademais, pode-se examinar, com alguma minúcia, sobretudo em relação a Agostinho, o interessantíssimo trabalho progressivo de construção dos argumentos desenvolvido para solução de problemas de considerável dificuldade.

Agostinho contra os Astrólogos

Agostinho sustentou uma longa campanha contra os astrólogos e a astrologia que durou cerca de vinte e cinco anos. O Hiponense conheceu a astrologia na mocidade. Interessou-se por ela e a estudou dedicadamente, conforme narrou nas suas Confissões. O quanto tempo aplicou em seu estudo e prática é assunto de divergência entre os especialistas: O’Loughlin afirma que ele só abandonou a astrologia em 386, à época de seu batismo em Milão; Gabriel Del Estal diz que seu interesse por ela foi breve, ainda que intenso, e que ele a abandonou, ainda, na África, em 375. Seja como for, é evidente que Agostinho conheceu a astrologia a fundo, que refletiu muito sobre sua estrutura e significado e que viu nela posteriormente muitos e diversificados motivos para combatê-la.

O perigo dos erros dos astrólogos
De diversis quaestionibus octaginta tribus, XLV
Hipona, 395 – 396

O combate sistemático de Agostinho à astrologia e aos astrólogos inicia-se entre 395 e 396, em Hipona, como um dos temas das 83 questões examinadas por ele, que versam sobre os mais variados assuntos doutrinários. À época em que tratou da matéria, Agostinho já exercia funções episcopais em Hipona. Esses fatos são, para O’Loughlin, importantes indicadores da composição do programa antiastrológico de Agostinho e dos elementos que o motivaram. À altura da redação desse pequeno texto, Agostinho já abandonara a astrologia, havia pelo menos uma década, e já tinha escrito várias obras de conteúdo filosófico em que a astrologia poderia ter sido tema de análise mas não o foi. Para O’Loughlin, o período compreendido entre a conversão de Agostinho, em Milão, no outono de 386, e a sua ordenação sacerdotal, em Hipona, em 391, não foi marcado por polêmicas astrológicas, porque na vida reclusa então levada por ele e por sua pequena comunidade, a arte da consulta aos astros não tinha nenhuma relevância; assim, apesar da forte ligação que teve Agostinho com essa atividade, não houve ocasião para o exame do problema. Situação radicalmente oposta apresentou-se quando Agostinho passou a dedicar-se às atividades pastorais; a partir de 395; teria então visto ele o quanto a astrologia era popular e influente e o quanto afetava negativamente a vida do rebanho de fiéis, que lhe cabia apascentar, primeiramente como auxiliar do bispo de Hipona, Valério, e logo em seguida como seu sucessor.

A primeira análise do problema da astrologia empreendida por Agostinho visava, pois, a esclarecer a comunidade cristã de Hipona dos males e erros relacionados a essa conhecida atividade. Fez isso num diminuto texto que contém muitos dos elementos básicos que permearão os diversos escritos antiastrológicos agostinianos que se seguirão.

A primeira parte do texto traz um esclarecimento ao leitor da época em que se evidencia um importante processo da história da atividade astrológica. Diz Agostinho: “Não chamavam os antigos de matemáticos os que hoje são assim chamados, mas os que calculavam a medida do tempo, pelo movimento do céu e das estrelas.” Alertava assim Agostinho o povo que uma antiga e eficiente técnica era agora usada com outras finalidades e que isso tinha importantes consequências. Havia, pois, primeiramente de esclarecer a que grupo de pessoas e a que atividade se fazia referência. A designação originalmente usada, “mathematici”, era certamente clara e todos deveriam saber exatamente a quem se aplicava e a que tipo de atividade se dedicavam essas pessoas.

Após essas breves considerações de ordem semântica, o Hiponense transcreve duas passagens veterotestamentárias que servirão de parâmetro para essa que é a sua primeira condenação explicita da astrologia. As citações, colocadas em continuidade, provém do livro da Sabedoria e dos Salmos. Agostinho usa aqui o conhecimento que o leitor de seu texto certamente tinha do conteúdo do capítulo 13 do livro da Sabedoria, que bem se aplica à discussão do problema da astrologia. O trecho transcrito (versículo 8 e 9) encerra a discussão desse primeiro trecho do capítulo, que coloca o paradoxo de o estudioso da ordem celeste bem conhecer a harmonia dos astros e de seus movimentos complexos e de na apreciação das minúcias desse envolvente estudo não reconhecer o Criador de tudo isso e a prevalência Dele sobre todas as criaturas. O trecho transcrito desse livro bíblico é exatamente o que repreende os que assim agem insensatamente e qualifica de indesculpável essa falta. Aponta Agostinho que o texto sapiencial considerado se ajusta aos “mathematici”, no sentido antigo do termo, isto é, aos que chamamos hoje de astrônomos, e ressalta que muitos deles encontraram nas coisas visíveis o Criador e Senhor e conseguiram o tipo de união a Ele de que fala o trecho do salmo selecionado.

Contudo, prossegue o Hiponense, os “mathematici”, no sentido do termo usado pela comunidade à qual ele dirigia seu texto pedagógico-doutrinário, agem no sentido oposto ao ensinado pelos livros sapienciais, visto que afirmam a submissão das ações humanas aos astros, pois sempre que consultados asseveram que nada podiam dizer antes de consultar as constelações. Ora, diz Agostinho, eles primeiramente se subordinam e se vendem às estrelas, meras criaturas, e depois transferem os pesados custos intelectuais e morais dessa submissão também aos seus consulentes.

Em seguida a essa breve incursão crítica contra a arte dos “mathematici”, Agostinho lança sobre a astrologia o conhecido problema dos gêmeos, para ilustrar a não procedência de ligar os atos humanos à posição dos astros no horário do nascimento, cuja determinação exata devem necessariamente os astrólogos estabelecer (daí, certamente, por que eles eram chamados de “mathematici”). Assim, diz o Hiponense:

“A concepção dos gêmeos, que se dá com uma só união, como o atestam os médicos, cuja ciência é muito mais segura e evidente [do que a dos “mathematici”], ocorre em espaço de tempo tão rápido que não ultrapassa a dois segundos [de deslocamento da esfera celeste]. De onde então provém nos gêmeos tanta diferença de atos, de acontecimentos e de vontade, dado que são concebidos sob a mesma posição das constelações, e ao matemático [isto é, ao astrólogo] se apresente estranhamente uma só constelação, como se tratasse de uma só pessoa? Se, em vez disso, atentar-se às constelações do nascimento, haverá de verificar-se a mesma refutação por esses mesmos gêmeos, pois a maioria deles vêm à luz depois do outro em intervalos de tempo equivalentes a segundos, pelo que não se pode querer nem mesmo discutir a respeito de constelações.”

Dizem, prossegue Agostinho, que os “mathematici” predizem muitas coisas verdadeiras, contudo costuma-se esquecer o quanto eles erram. Isso indica que nessa atividade não está efetivamente envolvida nenhuma técnica de previsão, mas que as coincidências se devem tão-somente ao fator sorte. Recorda Agostinho aos seus leitores que se pratica comumente uma arte adivinhatória, certamente conhecida dos seus leitores, que consiste em prever o futuro a partir de textos previamente escritos que o consulente retira de uma caixa a seu bel prazer. Ora, diz Agostinho, se a essa arte não atribuímos nenhum valor de previsão, por que se deve atribuí-lo à arte dos “mathematici”?

Eis, pois, o conteúdo dessa primeira crítica de Agostinho objetivamente dirigida aos astrólogos e a sua arte, escrita para orientação e esclarecimento da comunidade cristã de Hipona. O’Loughlin considera que esse texto marca o início do ataque de Agostinho à astrologia, mas não o insere no corpo de estudos importantes sobre o assunto, tomando-o apenas como obra de transição entre a fase em que a astrologia não tinha nenhuma importância especial e a fase em que Agostinho, por força do múnus pastoral, irá se empenhar maximamente em esclarecer e prevenir os cristãos dos erros e dos perigos da arte astrológica. Não obstante a diminuta extensão do texto, nele se encontram muitos dos elementos componentes do grosso da critica agostiniana à astrologia. Como se verá quando forem examinados os grandes textos antiastrológicos do Hiponense, o ataque a essa arte de consulta aos astros tem duas dimensões, a moral-doutrinária e a epistemológica. No campo moral, o ataque recai sobre diversos pontos que afastam o cristão da sã doutrina e no campo epistemológico, a crítica consiste em mostrar a ausência de fundamentação lógica da arte astrológica e a ineficiência dos métodos de previsão que ela utiliza. Quanto aos problemas epistemológicos, a questão sobre a qual dissertou Agostinho contém o exame do problema dos gêmeos, que expõe, por assim dizer, as vísceras da astrologia. Quanto aos problemas morais e doutrinários, o trecho do Livro da Sabedoria indicado no inicio do texto, já apresenta parte importante dos elementos básicos para o tratamento do assunto.

Se a astrologia deveria ser um dos temas sobre os quais seria necessário dissertar, talvez com especial urgência, para esclarecimento e orientação da comunidade cristã de Hipona, não julgou Agostinho o tratamento dado à astrologia nesse pequeno texto suficiente; o assunto será examinado ainda mais cinco vezes, e em maior profundidade e extensão, ao longo de um quarto de século, até a elaboração de um pequeno tratado antiastrológico, que será inserido no livro De civitate Dei.

Antes de examinar esses escritos antiastrológicos maiores, contudo, convém analisar alguns textos produzidos pelo Hiponense anteriormente ao De diversis quaestionibus octaginta tribus. Embora O’Loughlin afirme que apenas na referida obra comece Agostinho a tratar da astrologia, em pelo menos quatro textos anteriores, encontram-se assuntos que podem ser considerados como fortemente relacionados a essa arte, o que faz com que a preocupação de Agostinho com essa arte adivinhatória e a crítica aguda a seus fundamentos se estendam por praticamente toda a sua vasta obra literária.

O caso dos métodos infundados e da vida devassa do adivinho
Albicério de Cartago
Contra academicos
Cassicíaco, 386

Agostinho no seu primeiro livro, Contra academicos, obra filosófica escrita em novembro de 386, em Cassicíaco, na forma de diálogo, dedicou-se a discutir o pensamento cético da escola de Carnéades e sobretudo a estabelecer a relação que há entre a felicidade e o conhecimentos da verdade. Na terceira discussão constante da obra, reúnem-se os interlocutores para analisar, por sugestão de Agostinho, a definição estoica de sabedoria, segundo a qual ela “é a ciência das coisas humanas e divinas”. Narra Agostinho, que um dos interlocutores, o jovem Licêncio, propõe inesperadamente que se discuta se, adotada a mencionada definição de sabedoria, poder-se-ia denominar de sábio a alguém como o desregrado adivinho Albicério de Cartago, cujas proezas todos os participantes da discussão conheciam. Ora, argumenta Licêncio, Albicério era capaz de adivinhações prodigiosas, como sabia o próprio Agostinho, que certa vez requisitou os seus serviços para saber o que havia sido feito de uma colher de prata que havia sumido, mistério que foi prontamente solucionado pelo adivinho, que apontou onde estava o objeto e o que havia ocorrido com ele. Relembra Licêncio outros prodígios de Albicério, alguns presenciados por ele mesmo, e afirma que quem conseguia fazer adivinhações relativas a coisas humanas como colheres de prata, moedas, propriedades agrícolas e até pensamentos, fazia-o porque “coisas divinas” permitiam-lhe adivinhar sobre “coisas de homens”, pelo que se poderia dizer, sem erro, que Albicério “foi sábio se, conforme admitimos, a sabedoria é a ciência das coisas humanas e divinas.” Quem resolve o problema colocado por Licêncio é Trigécio, o outro jovem participante das discussões, que começa por dizer que o tal Albicério, que ele também conhecia, falava também muitas coisas falsas, não mostrando ter método inabalável de obter conhecimento, pelo que não lhe cabe a denominação de sábio. Se não fosse assim, prossegue Trigécio, poder-se-ia chamar de sábios também “aos arúspices, aos áugures e a todos os que consultam as estrelas e aos que interpretam os sonhos.” Acrescenta, em seguida, Trigécio que pela expressão “ciência das coisas humanas” não se deveria entender apenas algo como “prata, moedas, sítio e até o próprio pensamento” mas que:

“a ciência das coisas humanas é aquela que conhece a luz da prudência, a beleza da temperança, a força da coragem, a santidade da justiça. Estes são os bens que podemos dizer nossos, sem nenhum temor do acaso. Se Albicério os tivesse aprendido, acredita-me, nunca teria vivido tão devassa e vergonhosamente. Quanto ao fato de ter dito em que verso estava pensando o homem que o consultou, não julgou que isso deva ser considerado coisa nossa.”

A essa altura do debate, introduziu-se a ideia de que é necessário avaliar os métodos de conhecimento quanto à eficiência. Destarte, há que considerar não apenas se Albicério acertava as adivinhações, pois isso inegavelmente ocorria, mas também ponderar sobre o quanto ele errava, o que não era pouco. Ademais, considerou-se também a necessidade de avaliar o que o esse tipo de conhecimento propiciava em termos morais. Ora, os interlocutores várias vezes referiram-se ao adivinho Albicério desqualificando o seu modo de vida, e quando Licêncio trouxe seu caso à discussão, indicou-lhe como “indivíduo devasso”, conhecido “por toda a sorte de desregramentos a que se entregava”. O conhecimento, pois, deve conduzir ao bem viver. A isso, adiciona Trigécio em seguida algo mais: o método de fazer algo deve ser ensinado a outros. Ora, Albicério, num caso relembrado, adivinhou em que pensava um incrédulo que o desafiou a dizer isso e ao ouvir, para seu espanto, que era num verso de Virgílio perguntou em qual e mais surpreso ainda ficou ao ouvir o adivinho declamar exatamente o verso pensado. Ora, como Albicério não era capaz de explicar como fez tal coisa e, portanto, não poderia ensinar alguém a fazer algo semelhante, Trigécio declarou que “teria preferido que esse tal de Albicério ensinasse a métrica a quem o interrogasse desejoso de sabê-la, ou que, consultado por alguém declamasse seus próprios versos sobre um tema proposto.” São as disciplinas que se podem ensinar as que verdadeiramente importam e que devem ser essas preferidas a qualquer tipo de adivinhações. Essa argumentação de Trigécio foi suficiente para que Licêncio tentasse reorientar sua crítica e, então, Trigécio conduz o debate no sentido de averiguar se não seria melhor, em vista do discutido, incluir na definição de sabedoria referências ao modo de vida do sábio. Agostinho, contudo, considera inútil prosseguir a discussão naquele momento e depois o diálogo toma outra direção.

Importa para a presente discussão do problema da astrologia verificar que nesse primeiro escrito de Agostinho já está desenhada a estratégia de seu enfrentamento da astrologia e que ela será apenas ampliada e aperfeiçoada ao longo de cerca de quarenta anos. Ainda que em Contra academicos não se encontre referência direta à astrologia, fala-se, como já visto, de passagem, nos que consultam os astros e que estes, por fazerem isso, incorrem nos mesmos erros do adivinho Albicério, não merecendo a arte deles menor crítica do que a deste. O instrumento de análise e de crítica à arte adivinhatória de Albicério ataca basicamente dois pontos: o metodológico (o método usado pelo adivinho é ineficiente) e o ético-moral (essa arte adivinhatória, além de ineficiente, não levava o adivinho a ter vida moralmente elevada). Esse método crítico ainda não foi, em Contra acadêmicos, aplicado especificamente à astrologia mas isso ocorrerá tão logo Agostinho se aperceba o quanto essa arte influi prejudicialmente na vida do povo.

A origem da astronomia
De ordine
Cassicíaco, 396

Ainda no retiro de Cassicíaco, Agostinho escreveu mais dois livros extraordinários, De beata vita [A vida feliz] e De ordine [A ordem]. Neste último, redigido entre o final de 386 e o início de 387, aparece uma brevíssima menção à astrologia. Encontra-se de fato na dita obra, no original em latim, a palavra astrologia, que está contudo usada na acepção que se dá hoje em dia à palavra astronomia. Quer nessa passagem Agostinho explicar como surgiu a astronomia, isto é, o estudo do movimento dos astros. Narra Agostinho como, segundo ele, teria a razão humana desenvolvido as diversas disciplinas destinadas a perscrutar a ordem do mundo. Trata-se de um processo de desenvolvimento gradual, em que a razão, valendo-se inicialmente do sentido da audição, desenvolve as disciplinas relacionadas à palavra, quais sejam, a gramática, a dialética e a retórica. Recorre posteriormente a razão ao poder da visão, em que, primeiramente, a beleza dos seres da terra e do céu conduzem à apreciação das formas e das figuras, o que leva imediatamente à formação da geometria. Então, surge a astronomia e isso, segundo Agostinho, ocorre assim:

“[À razão chama] muito a atenção o movimento do céu que a convidava a refletir com diligência. E entendeu que também ali dominavam aquela medida e ritmos (números) através de regularíssimas alternâncias dos tempos, pelos cursos invariáveis e definidos dos astros, pelos espaços de tempos ordenados dos intervalos. Igualmente definindo e dividindo, colocou tudo em perfeita conexão e deu origem à astronomia [astrologia], grandioso espetáculo para as pessoas religiosas e tormento para os desejosos de saber.”

Encerrada a narrativa sobre a origem e a função das diferentes disciplinas, ou artes liberais, discorre Agostinho sobre aspectos variados relativos a seu aprendizado e prática que, por terem importância na crítica que posteriormente fará o Hiponense aos astrólogos, merecem ser aqui, ainda que brevemente, consideradas. Diz Agostinho que se tornará um verdadeiro erudito quem conseguir reunir num conjunto simples e sólido os conhecimentos provindos dessas disciplinas variadas. Esse poderá buscar as coisas divinas para “não somente crer nelas, mas também para contemplá-las, entendê-las e guardá-las.” Contudo, adverte Agostinho, os que se deixarem seduzir pelas imagens falsas das coisas tornar-se-ão “escravos de suas paixões [e] desejosos das coisas perecíveis” e cometerão erros variados e graves, sobres os quais ele discorre brevemente. Basta, contudo, para o exame de como Agostinho tratou e resolveu o problema da astrologia, verificar que já na origem de seu pensamento filosófico tinha ele claramente estabelecido que o estudo dos astros era regido por uma sólida disciplina intelectual, que resultou da aplicação da geometria ao estudo dos movimentos celestes.

A arte da interpretação do passado e do futuro pelo presente
De quantitatae animae
Roma, 387 – 388

Retoma Agostinho, na pequena obra De quantitate animae [A grandeza da alma], escrita pouco tempo depois, em Roma, entre 387 e 388, à questão das artes liberais e das disciplinas. Em certo ponto do texto, põe-se Agostinho a discorrer sobre como as atividades anímicas se distribuem consoante sete graus. No terceiro grau, inclui Agostinho todas as artes e disciplinas próprias da vida humana, cujos resultados são as obras arquitetônicas e urbanísticas, as obras artísticas, as atividades agrícolas, as obras literárias, os estudos linguísticos, a produção de literatura, o registro de memória, a organização da sociedade e da família, a organização de cerimônias (civis e religiosas), o cultivo da eloquência e da poesia, a realização de jogos e divertimentos, a música, o estabelecimento de padrões de medida, a ciência dos cálculos e, encerrando a lista, a “interpretação do passado e do futuro pelo presente.” Conclui Agostinho a exposição dessas atividades anímicas de terceiro grau esclarecendo que “são grandes essas atividades e exclusivamente humanas. Mas ainda são comuns a doutos e rudes, a bons e maus.”

Reconhece, pois, Agostinho que é próprio do homem tratar de acontecimentos futuros e que tal se dá com a instituição de artes cujos métodos e técnicas se adequam a tal propósito. Embora tenha ele em De quantitate animae tratado desse assunto sem pormenores e sem exemplificação, fica claro que o que o Hiponense chamava de astrologia (e que hoje se chama de astronomia) é uma arte em que a posição dos astros pode ser estabelecida, quanto ao passado ou ao futuro, a partir de uma posição tomada no presente; assim sendo, o estudo dos movimentos dos astros é uma arte legítima, das que compõem o terceiro grau das atividades anímicas, e faz parte das que se incluem na rubrica das artes de interpretação do passado e do futuro pelo presente.

Já as conjeturas sobre o passado ou o futuro da autoria de alguém como o adivinho Albicério também são atividades desse terceiro nível de atividades da alma, contudo, como já visto, a arte praticada por aquele célebre cartaginense foi desqualificada no livro Contra acadêmicos por não ter método eficiente e ser prejudicial à vida moral.

Assim, a filosofia de Agostinho, desde os seus primórdios, preocupava-se em analisar rigorosamente as atividades intelectuais de modo a permitir-lhe avaliar a eficiência e a adequação de cada arte. Quando Agostinho se defrontou com o problema da astrologia, notadamente por ocasião de suas atribuições pastorais em Hipona, teve ele inicialmente apenas de aplicar as teorias e esquemas já desenvolvidos para exame da atividade dos astrólogos, com o fim de subsidiar seus pareceres sobre ela, para esclarecimento e orientação da comunidade cristã colocada a seus cuidados.

As assembleias estão cheias de pessoas que aceitam que os astrólogos
Epistolae ad Galatas expositionis
Hipona, 394 – 395

Pouco antes de iniciar a redação dos textos críticos à astrologia, o que ocorreu, como visto, com o tratamento de uma questão que compõe a obra De diversis quaestionibus octaginta tribus, Agostinho escreveu, entre 394 e 395, um longo comentário à carta do apóstolo Paulo aos Gálatas. Ao comentar os versículos 10 e 11 do quarto capítulo da dita carta, Agostinho põe-se a criticar a consulta aos astrólogos. Diz o Hiponense, imediatamente após citar o trecho neotestamentário em tela, que é um erro comum dos pagãos vincular suas atividades e regular os aspectos da vida segundo “os dias, meses, anos e estações indicados pelos astrólogos e pelos caldeus”. Não é ainda uma crítica à consulta que membros de sua comunidade faziam aos astrólogos; trata-se de comentário adstrito ao balizamento que deu Paulo na sua carta, de condenar o excessivo rigor dos judeus na observância do tempo, costume que os tornava, diz Agostinho, como que “escravos dos dias, meses, anos e estações”. Paulo condenou os cristãos gálatas que desejavam retomar práticas dos judeus, incluindo as que se relacionavam com eventos astronômicos. Agostinho concorda com o princípio desse pensamento e diz que “é evidente que o fluir do tempo é governado por elementos deste mundo, isto é, do céu, da terra e do movimento e ordem dos astros”, pelo que, continua o Hiponense,

“a observância supersticiosa do tempo significa um tão grande perigo para a alma que a esta passagem [da carta aos gálatas] adicionou o Apóstolo: Temo por vós; temo que talvez me haja fatigado em vão entre vós. Ao mesmo tempo em que se leem essas palavras, que gozam de tanta celebridade e autoridade, nas igrejas por todo o orbe terrestre, nossas assembleias estão cheias de pessoas que aceitam que os astrólogos [“mathematici”] lhes indiquem os tempos para fazer o que têm de fazer. A tal ponto que, comumente, não têm dúvidas até mesmo de nos advertir de que não demos início a nada, como seja a construção de um edifício, ou de qualquer obra desse tipo, em dias que chamam ‘de mau augúrio’ ”.

Com essa crítica pontual à astrologia e a expressão franca de mágoa e desagrado com as concessões de seus correligionários a essa arte infundada, encerra-se a primeira fase do tratamento dado pelo Hiponense ao problema da astrologia. Em seguida, iniciará Agostinho efetivamente, e então já na cátedra episcopal de Hipona, o programa de ataque extenso à arte astrológica, que começou, como já comentado, com a questão XLV da obra De diversis quaestionibus octaginta tribus.

A astrologia, os demônios e a fornicação da alma
De doctrina christiana
Hipona, 397, 426-427

O livro De doctrina christiana [A doutrina cristã] foi escrito em 397, embora a redação só tenha efetivamente sido concluída em 426 ou 427. Tratase de extensa obra exegética e doutrinária, elaborada para servir de manual de formação. No segundo livro dessa obra Agostinho dedica vários capítulos ao exame da utilidade das disciplinas e das artes em que insere cinco capítulos destinados ao problema da astrologia. Antes disso, analisa o Bispo de Hipona as superstições em geral e aponta-lhes o erro fundamental comum que é o de conduzir as pessoas “ao culto de qualquer criatura como se fosse o próprio Deus”. Começa, então, Agostinho a apresentação do problema da astrologia e o faz assim:

“não devemos julgar isentos de ruinosa superstição os que se dizem ‘genetlíacos’ [genethliacos], porque estudam o dia do nascimento, hoje comumente chamados astrólogos [mathematici]. Investigando a posição dos astros no instante do nascimento de cada um, esforçando-se por deduzir disso nossas ações ou os eventos de nossa vida, e passando então a prevê-los, cometem grandes erros e proporcionam aos homens, a preço barato, penosa escravidão. Realmente, todo homem livre que vai consultar os tais astrólogos [mathematici] paga-lhes para sair escravo de Marte, Vênus ou quiçá de todos os astros.”

Todos os graves erros a que conduz essa arte equivocada e danosa, assevera Agostinho, começam até mesmo com a própria nomeação dos astros, ato totalmente arbitrário, do qual os astrólogos retiram muitos elementos de sua arte. Ora, afirma Agostinho, “de qualquer forma que venham a ser designados, permanecem astros criados, ordenados e queridos por Deus, cujo movimento fixo serve para distinguir determinado tempo” e acrescenta que como esses astrólogos conhecem as regras do movimento dos astros, aplicam-se lhes a indagação e a admoestação contida no Livro da Sabedoria: “Se puderam chegar a tanta ciência para determinar o tempo, por que não descobriram o Senhor?”. Querer, pois, dos astros predizer algo relativo à vida humana, afirma Agostinho, “é grande erro e desvario.”

Para mostrar a razão dos erros dos astrólogos, Agostinho passa então a examinar o famoso problema dos gêmeos. Trata-se, com já visto, de considerar que se dois gêmeos nascem com pequena diferença de tempo um do outro, então estariam ambos marcados pelas mesmas estrelas e se esperaria, pela teoria astrológica, que suas ações e ocorrências na vida fossem semelhantes. Não é, entretanto, isso o que acontece, como bem se sabe pela história de Esaú e Jacó. Não há que levar a sério, acrescenta Agostinho, o argumento sustentado por alguns astrólogos de que mesmo decorridos pequenos espaços de tempo, em virtude das altas velocidades dos corpos siderais, estabelecem-se diferenças na posição dos astros relativas a cada nascimento. De que vale isso, indaga Agostinho, se essas diferenças não aparecem nos horóscopos? Depreende Agostinho disso que é possível que o conhecimento que os astrólogos têm de certos assuntos que se verificam verdadeiros, não provenham propriamente da aplicação de seus métodos e técnicas de leitura dos astros e sim da intervenção de demônios. Portanto, afirma peremptoriamente Agostinho, as previsões certas dos astrólogos, que parecem deduzidas logicamente de elementos reais, devem, na verdade, constar “no rol dos ajustes e alianças com os demônios”. Dito isso, Agostinho expõe várias razões pelas quais um cristão deve repudiar os horóscopos. Fala o Hiponense dos “anjos prevaricadores” [praevaricatoribus angelis] que agem, “por oculto desígnio divino”, “nesta parte mais baixa do universo” e enganam os astrólogos fazendo-os crer na validade da observação dos astros, convencendo-os assim a se entregar “com mais paixão às pesquisas, para se envolverem cada vez mais pelos laços de pernicioso erro.” Contudo, acrescenta Agostinho,

“em vista de nossa salvação, a divina Escritura não silenciou sobre esse tipo de fornicação da alma [fornicationis animae]. Ela não se contentou em afastar a alma dessa infidelidade, mas atacou-a com uma condenação salutar. Não somente nos adverte que fujamos desses atos culpados, como fruto dos professores de mentiras, mas vai até dizer: ‘Ainda que aconteça o que eles vos anunciaram, não creiais neles [Deuteronômio 13, 1 – 3]”.

Tão importante e evidente é para Agostinho o vínculo que há entre a astrologia e outras artes similares com o demônio, que não lhe pareceu bastante dizer isso e ainda se seguiram outras considerações do gênero, que se prolongaram pelo capítulo seguinte. Não cessa o Bispo de Hipona, após lembrar a ordem de Paulo – “não quero que entreis em comunhão com os demônios” – de mostrar o quão condenável é o culto aos ídolos e às coisas naturais e que as artes que fomentam isso, com inspiração demoníaca, “notoriamente não são instruídas para o amor de Deus e do próximo [e se] fundamentam no desejo privado dos bens temporais e arruínam assim o coração.” Lembra ainda Agostinho que são os astros “criados e dirigidos pelo Senhor” pelo que não há que envolvê-los em conjeturas extraordinárias como as da astrologia ou de outras artes assemelhadas.

Após esse longo exame da astrologia, Agostinho põe-se a investigar outras artes e instituições e chega então ao que hoje se chama de astronomia. O conhecimento dos astros, a respeito do qual, comenta Agostinho, a Escritura raramente faz menção, tem como uma de suas características permitir, a partir da posição atual dos astros, “chegar sem vacilação às fases precedentes [bem como fazer] conjecturas para o tempo futuro, as quais não são nem de fantasias, nem de mau agouro, mas garantidas e exatas.”. Não se deve, pois, aconselha o Hiponense, tirar dos astros nada sobre atos e acontecimentos da vida “como fazem os genetlíacos em seus delírios”. Não deixou, assim, Agostinho de voltar a atacar a astrologia, desta vez contrapondo o estudo fundamentado do movimento dos astros com o discurso apelativo e fantasioso dos astrólogos.

O’Loughlin, como já comentado, destaca na sua análise que a obra De doctrina christiana contém a primeira grande refutação de Agostinho à astrologia. Deve-se, contudo, considerar que praticamente nada há nesse texto que já não estivesse na questão XLV da obra De diversis quaestionibus octaginta tribus. A diferença significativa entre esses dois textos é a extensão, que é muito menor neste do que naquele. Para O’Loughlin, é importante notar que em De doctrina christiana Agostinho realça que os astrólogos transformam os astros em ídolos e os adoram e falham, assim,. em vê-los como obras de Deus, atribuindo-lhes não o estatuto de criaturas, mas de deuses que têm poder sobre os destinos humanos. Afirma ainda O’Loughlin, que para Agostinho, a astrologia está no centro do paganismo e que ela muito contribui para afastar o homem de Deus e das coisas nobres. A idolatria dos astros, continua O’Loughlin, acaba por conduzir o homem, segundo Agostinho, a pactuar com os demônios, que se divertem com ele e o atormentam. Dessa forma, a astrologia escraviza o homem, o que leva Agostinho, destaca O’Loughlin, a denominar a prática dessa arte de prostituição da alma. Por fim, acresce O’Loughlin, há que notar que Agostinho procura alicerçar sua crítica à astrologia nos ensinamentos do apóstolo Paulo.

Embora efetivamente estejam já em De doctrina christiana todos os elementos do múltiplo ataque de Agostinho à astrologia é evidente que nessa obra há ênfase maior na análise dos problemas morais e religiosos decorrentes da prática dessa arte do que nos seus aspectos epistemológicos e metodológicos, o que se faz com o breve exame do problema dos gêmeos. Nas obras seguintes, o elemento epistemológico da crítica agostiniana à astrologia será ampliado.

A sedução e o engano da astrologia
Confessionum
Hipona, 397-398

A famosa autobiografia de Agostinho foi escrita entre 397 e 398. Nela o Hiponense reporta-se extensamente a suas relações com a astrologia, com especial ênfase aos motivos que o levaram a perceber claramente a falsidade e o perigo dessa arte. Não esconde Agostinho que foi intensa a sua vinculação com a astrologia e que ele a praticou e, sobretudo, que a estudou profundamente.

A astrologia aparece nas Confissões quando Agostinho vai tratar “do período de nove anos, desde os dezenove [anos de idade] até os vinte e oito, [em que viveu] cercado de muitas paixões, [e] era seduzido e seduzia, era enganado e enganava: às claras, com as ciências a que chamam liberais, e às ocultas sob o falso nome de religião.”

Conta Agostinho que lhe chamou a atenção favoravelmente o fato de os matemáticos, isto é, os astrólogos, não utilizarem na sua prestação de serviços nem de sacrifício de animais, nem de consulta aos demônios, práticas que ele “detestava e abominava”. Encontrou ele na astrologia, dentre outras coisas, eficaz remediação para as suas inquietações morais, decorrente dos juízos deterministas emitidos pelos astrólogos, tais como: “A causa inevitável de pecares vem-te dos céus” e “foi Vênus, ou Saturno, ou Marte, quem praticou esta ação”. Por orgulho, explica Agostinho, o crente na astrologia considera-se irresponsável por seus atos, pelo que, em última análise, culpa a Deus, “pois para que o homem, carne, sangue e orgulhosa podridão, se tenha por irresponsável [é necessário que] atribua toda a culpa [de seus atos maus] ao Criador e Ordenador dos céus e dos astros.”

O abandono da astrologia por Agostinho não se deu senão depois de longo e exaustivo exame crítico dessa arte. Participaram desse processo três amigos, dois dos quais trabalharam ativamente para afastá-lo dessa superstição. É interessante acompanhar como isso se deu, visto que Agostinho relata minuciosamente as ideias e discussões envolvidas no episódio. Conta Agostinho como o médico Vindiciano, quando soube que o jovem amigo dedicava-se aos livros de astrologia o admoestou, “com paternal benevolência, a que os rejeitasse e que em tal quimera não despendesse cuidado e trabalho.” Vindiciano relatou-lhe que também ele já se encantara pela arte dos astrólogos, a ponto de até pensar em se entregar profissionalmente a ela, mas que a medicina, que já conhecia e cultivava, o afastara disso e o ajudara a descobrir a “falsidade absoluta” da astrologia. Assim, continuou o amigo, “como não queria ganhar o pão a enganar os outros”, decidiu-se por ser médico. Vindiciano apelou a Agostinho para que cresse nele, pois estava seguro de saber o que dizia, visto que estudara a astrologia com ardor, pelo desejo que tivera de viver dela. Que se dedicasse Agostinho à retórica, aconselhou conclusivamente o amigo, que faria o certo. Ouvido isso, relata Agostinho, perguntou ele ao amigo Vindiciano qual seria então a razão de os astrólogos acertarem alguns de seus presságios? Ouviu do médico a explicação de que isso se dava “não por arte, mas por acaso”. Não se convenceu, contudo Agostinho. Continuou a crer que não havia por que duvidar dos astrólogos e preferiu continuar seguindo a “autoridade dos seus autores”. Relata, então, Agostinho que se não lhe bastaram para afastar da astrologia os conselhos do Vindiciano, também em nada ajudou a interferência do jovem amigo Nebrídio, “que mofava de toda essa arte de adivinhar”. Custou-lhe crer nos amigos que lhe asseveravam que não existia nenhuma arte de prever o futuro das pessoas e que os astrólogos acertavam suas previsões por acaso, “por jogo de palavras”. Ainda que pouco lhe tenha valido tudo isso, não se esqueceu Agostinho do empenho dos seus amigos, o “arguto velho Vindiciano” e “Nebrídio, jovem de alma admirável”, que o criticavam pelo apego à astrologia, e o faziam, o primeiro “com toda a veemência” e o segundo “frequentemente, ainda que com certa hesitação”.

Ajudou Agostinho a efetivamente livrar-se da astrologia, ainda que sem o saber, um “amigo muito íntimo”, chamado Firmino, “educado nas artes liberais e instruído na eloquência”. Esse amigo não era versado em astrologia, mas consultava assiduamente os astrólogos; o pai dele, sim, fora estudioso e praticante dessa arte. Certa vez, conta Agostinho, Firmino o procurou, “como amigo muito íntimo a propósito de um certo negócio, [e] perguntou-lhe qual o seu prognóstico[sobre o tal negócio] ‘segundo a sua estrela’”. Não obstante já estar se afastando da astrologia, não negou Agostinho ao amigo o prognóstico solicitado, mas não sem dizer que já se persuadira de que aquilo tudo “era ridículo e quimérico”. Isso foi, prossegue Agostinho, o que bastou para que Firmino lhe narrasse algo que se passou com seu pai. Como fosse ele estudioso e praticante dessa arte e tivesse um amigo que também a cultivava, dedicavam ambos especial interesse pelo nascimento dos animais domésticos segundo as estrelas. Eis que, quando estava ele, Firmino, para nascer, aproximava-se também uma escrava do amigo do momento da parturição. Como se interessassem ambos até por “quando as cadelas tinham a cria”, não perderam eles a oportunidade de estudar comparativamente um assunto como aquele. Puseram-se, então, os dois amigos astrólogos a observar atentamente um o que sucedia à própria esposa e outro à escrava, de modo que mandavam continuamente mensageiros um ao outro para informar o que acontecia. Nasceram Firmino e o filho da escrava simultaneamente, um, porém, rico e livre, e o outro, servil, e assim se mantiveram até aquele instante, ainda que ambos viessem ao mundo sob as mesmas constelações.

A partir da história narrada por Firmino, Agostinho propôs-se um experimento mental. Caso se lhe apresentasse Firmino, pensou Agostinho, e lhe pedisse o exame das constelações que marcam seu nascimento, certamente lhe mostrariam elas que o consulente é de família nobre, instruída e educada. Se, em contrário, quem se apresentasse para a consulta astrológica fosse o escravo nascido sob o mesmo conjunto de estrelas, deveria o horóscopo dizer-lhe que esse consulente era de família servil e inculta. Mas, perguntou-se Agostinho, não haveria de em tal situação, dado o nascimento simultâneo, prognosticar o astrólogo o mesmo para os dois? Sim, indiscutivelmente, pelo que o acerto de sua análise, em cada caso, se ocorresse, deveria derivar da sorte e não da eficiência da arte astrológica. Declara, então, Agostinho que dada a narrativa de Firmino, em tudo digna de fé, desapareceu nele a relutância em crer na ausência de fundamento das previsões astrológicas e se esforçou ele, então, em fazer o amigo abandonar aquela “vã curiosidade” que também o movia.

A partir do caso do nascimento sob as mesmas estrelas do rico Firmino e do escravo, julgou Agostinho ter, então, elementos para “atacar imediatamente e por a ridículo” os astrólogos. Pensou, porém, que certamente haveriam os simpatizantes da astrologia de colocar em dúvida o caso de Firmino e pôs-se, então, a pensar em como fazer com que “nenhum desses loucos” conseguisse refutar sua argumentação. Centrou, então, seus argumentos no problema dos gêmeos. Como é sempre pequeno, como se sabe, o espaço de tempo do nascimento de um gêmeo e do outro, nascem, portanto, ambos sob as mesmas constelações. Lembrou-se Agostinho da história de Esaú e Jacó, gêmeos cujas vidas foram tão diferentes. Nesse caso, com as mesmas informações para ambos, quanto ao nascimento, deveriam os astrólogos fazer uma só previsão e errar, consequentemente, ou, então, teriam de fazer duas previsões, para o que operaria apenas a sorte e não a técnica. Conclui disso Agostinho que Deus ocultou dos homens coisas que não são perscrutáveis por nenhum método e que, portanto, não lhes cabe investigar.

Assim, Agostinho livra-se da astrologia. Está, contudo, aberta ainda uma importante questão relacionada com ela, qual seja a de saber se é possível prever de algum modo o futuro e se para isso pode contribuir o estudo dos astros.

No livro XI de suas Confissões, Agostinho desenvolve sua célebre teoria do tempo. No capítulo 17, 18 e 19 no dito livro, conclui o Hiponense que se pode prever o futuro pelo presente, se neste estiverem as causas dos fatos que se verificarão naquele: “Vejo a aurora, – diz ele – e prognostico o sol que vai nascer. O que vejo é presente, o que anuncio é futuro. […] As coisas futuras […] podem ser prognosticadas pelas coisas presentes que já existem e se deixam observar.” As coisas só existem no presente, afirma Agostinho. Assim sendo, onde estão as coisas futuras e as passadas? As passadas já não existem, mas deixaram vestígios em nossa memória, pelo que podemos relatar acontecimentos que já se deram. As coisas futuras não se veem, porque não existem ainda. Pode-se, contudo, premeditá-las. Ora, premeditar é presente. Quando agimos em função do premeditado, a ação sempre se realiza, mas o faz sempre no presente.

Dentre as muitas qualidades das Confissões, deve-se destacar a de conter um primoroso texto analítico de filosofia da ciência. Trata-se esse, obviamente, da crítica de Agostinho á astrologia. Se essa análise, em extensão e profundidade, é superada pela que se encontra na Cidade de Deus, na revelação de algumas minúcias do passo a passo da composição desse corpo crítico, constitui-se ela numa peça literária única e de alto valor. Fica-se sabendo, por exemplo, que foi a crítica da astrologia desenvolvida por três amigos seus, e não a literatura antiastrológica existente na época, que certamente Agostinho conhecia, que o levou a abandonar a astrologia. Não foi a conversão de Agostinho ao cristianismo que lhe motivou o afastamento da astrologia; a doutrina cristã irá posteriormente reforçar essa decisão e dar-lhe material e motivação para ampliar a crítica e mover campanha de combate a essa arte adivinhatória. As Confissões revelam, além disso, com a medicina foi importante no posicionamento de Agostinho contra a astrologia, pois exerceu ela a função de paradigma de investigação fundamentada do mundo. O argumento dos gêmeos está presente no esforço antiastrológico das Confissões e é de notar que ele apareça associado ao do nascimento simultâneo de pessoas cujo destino será muito diferente e que componha o principal instrumento, nas palavras de Agostinho, atacar e ridicularizar os astrólogos.

O brilho das estrelas e a escuridão da astrologia
De genesi ad litteram
Hipona, 401-414

Na obra De genesi ad litteram [Comentário literal ao Gênesis], extenso estudo sobre os três primeiros capítulos do livro do Gênesis, no final do segundo livro, ao tratar de questões referentes à criação do firmamento, dos astros e das plantas, Agostinho ocupa-se novamente da astrologia.

Começa Agostinho apontando o quanto a prática da astrologia distancia o cristão das coisas religiosas, visto que ela inicialmente o afasta da oração. Ora, coloca o Hiponense, se são as estrelas que comandam o comportamento humano (e, como afirmam alguns, ditam até mesmo comandos a Deus), qual seria, então, a serventia das preces? Logo em seguida, afirma Agostinho que os astrólogos atribuem a Deus os crimes dos homens, pois eles são causados pelas estrelas, e Deus é “o autor dos astros”.

Prossegue Agostinho dizendo que ao ensinarem os astrólogos que a alma se submete aos corpos celestes acabam eles afirmando que ela é, portanto, de natureza material. Os corpos celestes não parecem, contudo, ser tão poderosos como querem os astrólogos, do contrário, argumenta Agostinho, não nasceriam tantos seres diferentes, animais e plantas, simultaneamente e nos mesmos lugares, pois sendo eles corpos tão diversos, as estrelas haveriam de afetá-los diferentemente.

Há, no entanto que considerar, diz Agostinho, no parágrafo seguinte, que os astrólogos, para evitar que se use a vida dos animais e das plantas para criticar a astrologia, asseveram que os astros influenciam apenas os seres humanos. Ora, afirma o Hiponense, fazer isso é “imbecil [e] insensato” e assim mais fracos ainda ficam os argumentos dos defensores da astrologia. Retoma, então, Agostinho o argumento dos gêmeos, tal como habitualmente faz, ilustrando-o, uma vez mais, com a história de Esaú e Jacó. Como única saída do constrangimento causado por esse caso problemático, ouvem-se dos astrólogos apenas argumentos fracos, como o de dizer que a referida história veterotestamentária é meramente fictícia ou que as previsões muito melhorariam se fosse sabido o exato momento da concepção de cada um dos gêmeos.

Por fim, reserva Agostinho, nessa digressão sobre a astrologia, um pequeno parágrafo para discutir a razão dos eventuais acertos das previsões astrológicas, pois isso, não se pode negar, acontece:

“É preciso confessar – começa a argumentar Agostinho – que quando eles [os matemáticos, isto é, os astrólogos] dizem a verdade, dizem-no por um certo instinto muito oculto que as mentes humanas conservam sem o saberem. E quando isso se faz para enganar os homens, é obra dos espíritos sedutores, aos quais é permitido conhecer algumas coisas verdadeiras a respeito das coisas temporais.”.

Valem-se, assim, os astrólogos não de sua técnica de ler as estrelas, mas do serviço de outras criaturas que podem conhecer algumas coisas impossíveis aos homens e comunicar-lhes isso para lhes enganar e dominar.

“Por isso, – sentencia Agostinho, no encerramento desse inciso sobre a astrologia, – o bom cristão deve se prevenir dos astrólogos e de qualquer ímpio adivinho, principalmente quando disser coisas verdadeiras, a fim de que não enredem a alma enganada pela comunicação com os demônios em algum pacto societário”.

Essa breve crítica à astrologia, incluída por Agostinho no seu comentário ao livro do Gênesis, parece ser tão-somente um parêntese inserido no texto, cuja leitura pode ser saltada sem quebra de continuidade do assunto que vinha sendo examinado. Como discorresse o Hiponense, nesse ponto do livro, sobre a natureza das estrelas, mais especificamente sobre as teorias que explicam como elas brilham, antes do parágrafo final da análise desse assunto Agostinho insere, descontextualizadamente, a crítica à arte de consultar os astros. Isso mostra, efetivamente, quão grande era a preocupação do Bispo de Hipona com a arte astrológica, o que o levava a referir-se criticamente ao assunto sempre que a oportunidade aparecesse. Esse texto antiastrológico parece ilustrar isso muito bem. Nessa inserção, os assuntos são tratados com extrema brevidade e se sucedem rapidamente. Não faltam, contudo, os elementos múltiplos habituais, que enfatizam os problemas metodológicos da astrologia e os problemas morais e doutrinários originados quando um cristão se dedica á prática astrológica.

A admoestação pública do astrólogo penitente
Enerrationes in psalmos – In psalmum LXI
Cartago?, 414

Um diminuto e muito interessante texto, que se encontra apenso ao comentário que fez Agostinho ao Salmo 61, provavelmente em Cartago, em 414, reporta um acontecimento que revela sobejamente a preocupação extrema do Bispo de Hipona com a astrologia e sua disposição em combater essa arte, em particular no meio da comunidade cristã. O texto inserido é o seguinte:

“Terminada a explanação do salmo [61], sendo apresentado ao povo um astrólogo [“mathematicus”], [Agostinho] acrescentou a respeito dele: A Igreja, em sua sede, quer absorver também a este, que vedes. Sabeis que muitos, misturados aos cristãos, bendizem com a boca, mas maldizem do coração[Salmo 61, 5]. Sabeis que este homem era cristão e fiel e volta penitente; atemorizado com o poder do Senhor, volta-se para a sua misericórdia. Quando fiel foi seduzido pelo inimigo, e durante muito tempo foi astrólogo. Seduzido seduziu, enganado enganou, aliciou, iludiu, falou muitas mentiras contra Deus, que deu aos homens o poder de fazer o que é bom e de não fazer o que é mau. Ele dizia que o adultério não provinha da vontade própria, mas de Vênus; que o homicídio não se originava da própria vontade, mas de Marte; que não era Deus quem fazia o justo e sim Júpiter; e outras muitas grandes afirmações sacrílegas. De quantos cristãos pensais que ele tirou dinheiro? Quantos dele compraram mentiras! A estes dizíamos: Filhos dos homens até quando tereis o coração empedernido? Por que amais a vaidade e procurais a mentira? [Salmo 4, 3]. Agora, como acreditamos, tem horror da mentira, e tendo sido sedutor de muitos homens, sentiu por fim que estava sendo enganado pelo diabo, e converte-se para Deus, fazendo penitência. Pensamos, irmãos, que isto aconteceu devido a grande temor de coração. Que dizer? Se fosse um astrólogo pagão que se convertesse grande seria a alegria; mas poderia parecer que se convertesse procurando tornar-se clérigo na Igreja. Mas é um penitente; procura apenas a misericórdia. Torna-se, portanto, recomendável a vossos olhos e vossos corações. A este que vedes amai de coração, conservai diante de vossos olhos. Vede-o, conhecei-o, e seja para onde for, mostrai-o aos irmãos que agora aqui não estão. Esta providência é misericórdia, a fim de que o sedutor não lhe feche o coração e o ataque. Precaução: seja-vos conhecida sua vida, seus caminhos, para que por vosso testemunho se confirme que ele sinceramente se converteu a Deus. Não se apagará a fama de sua vida, quando ele é assim apresentado a vossa vista e a vossa compaixão. Sabeis que nos Atos dos Apóstolos está escrito que muitos homens perdidos, isto é, homens destes artifícios seguidores de ensinamentos nefandos, levaram todos os seus códices aos apóstolos; e foram tantos os livros queimados que o escritor fez a estimativa deles e anotou a soma de seu valor [Atos, 19, 19]. De fato, isto foi pela glória de Deus, para que tais homens perdidos não desesperassem, por causa daquele que sabe procurar o que havia perecido [Lucas, 15, 32]. Portanto, este também perecera; agora foi procurado, encontrado, trazido de volta; traz consigo códices que devem ser queimados. Estes códices o queimariam; lançados no fogo, trarlhe-ão refrigério. Seja-vos notório, irmãos, que ele bateu à porta da Igreja, há mais tempo, antes da Páscoa; antes da Páscoa começou pedir à Igreja de Cristo a sua cura. Mas como o ofício em que se empenhara é sempre suspeito de mentira e fraude, foi adiada a admissão, para não haver engano; por fim, foi admitido, para que ele não corresse perigo mais de ser tentado. Rezai por ele a Cristo. Derramai hoje vossas orações diante do Senhor nosso Deus em seu favor. Estamos certos e cientes de que vossa oração apagará todas as suas impiedades. O Senhor esteja convosco.”

Observa-se no relato desse curioso e interessante episódio a importância dada por Agostinho ao combate à astrologia, arte, ao que parece, largamente praticada na época e que afetava fortemente, para profundo descontentamento e decepção do Bispo de Hipona, a vida das comunidades cristãs. A dura admoestação que dirige ao ex-astrólogo contém resumidamente os elementos básicos do discurso antiastrológico agostiniano. Aponta Agostinho como a falta de conhecimento dos cristãos leva-os a praticar atos desviados; quando diz que alguns bendizem a Deus com a boca enquanto o maldizem com o coração, parece dizer que o fazem, sem o saber. Não faz Agostinho, nessa sua contundente manifestação, análise do que conduz um cristão a se deixar seduzir pela astrologia e o leva depois a tornar-se ele próprio um agente de novas cooptações. Contudo, fica claro o quão importante nesse processo é a atribuição dos pecados (que Agostinho exemplifica, como visto, com o adultério e o homicídio), não à vontade da pessoa, mas a um astro (Vênus e Marte, segundo os exemplos); tal exercício de evitação da culpa, tinha, certamente, grande poder sedutor. A astrologia exclui a liberdade humana e Deus do mundo, de modo que, para os astrólogos, nem mesmo os acontecimentos bons podem ser atribuídos a Deus, mas a Júpiter. Além do mais, não bastassem os sérios problemas doutrinários e morais causados pela astrologia, ela ainda tira dinheiro dos cristãos, lamenta Agostinho.

A reprimenda ao ex-astrólogo penitente começa com uma ideia que Agostinho desenvolveu na sua análise do salmo. Usou ele a imagem da sede para ilustrar uma das características da Igreja: Ela tem como que uma sede de absorver almas e quer também a do ex-astrólogo. Aproveita o Hiponense, em seguida, o que está no quinto versículo do salmo analisado, que aponta haver os que bendizem a Deus com palavras, ao mesmo tempo em que o maldizem com o coração, e aplica isso aos cristãos que interessam pela astrologia.

Passa então Agostinho a tratar do penitente, cuja presença na assembleia destacou. Volta ele à Igreja, arrependido, após ter sido cooptado pelos astrólogos e passar ele mesmo a praticar profissionalmente essa arte e contar entre seus clientes muitos cristãos. Segundo Agostinho, o penitente foi seduzido pela astrologia e então se fez sedutor, foi enganado por essa arte e depois enganou a outros pelo que conduziu muita gente ao erro. Constavam esses erros em eximir as pessoas da responsabilidade por seus atos ao atribuir os pecados e crimes à influência dos astros. Além do mais, lamenta Agostinho, esses erros todos custaram dinheiro. Como certamente muitos dos estavam na assembleia haviam recorrido aos serviços do ex-astrólogo, Agostinho não deixou de atirar-lhe o lamento do salmista pelo apego do povo às falsidades e ao engano.

Feliz com o retorno do ex-astrólogo, sabedor, porém, de quão grande é o efeito sedutor da astrologia, Agostinho realça à assembleia que ele está em penitência e apela a todos que o amem e que o vigiem para não ocorrer recaída. Lembra, então, Agostinho o episódio narrado nos Atos dos Apóstolos em que Paulo promove como penitência a alguns convertidos de Éfeso a queima de livros de artes mágicas e, ao que parece, a imitação desse procedimento fez parte da pena de expiação imposta por Agostinho àquele ex-astrólogo.

A astrologia e a subversão da ordem social
Epistola 246
Hipona, ca. 402

Consultado por um certo Lampádio [Lampadius] sobre questões relativas ao destino e à sorte, Agostinho dirigiu-lhe uma carta em que enfocou a astrologia. A carta foi escrita depois de 395 e antes de 410, talvez por volta de 402. Diz Agostinho no início da missiva que ficou muito impressionado com a inquietação que tomava o amigo correspondente por causa da questão do destino e da sorte, a respeito de que já haviam conversado quando se encontraram pessoalmente, e que mais impressionado ainda ficara ao receber a correspondência cuja resposta estava escrevendo.

Dito isso, depois de ter também implorado a Deus que o ajudasse a aquietar a alma do amigo, desenvolve Agostinho o argumento principal do texto: apontar que a astrologia anula a noção de responsabilidade e de liberdade, pelo que grande é o perigo das ideias astrológicas para a sociedade, visto que elas subvertem completamente a vida social, até mesmo ao nível dos negócios domésticos. Diz Agostinho:

“Saibas o quanto antes e brevemente, que todas as leis e regras de comportamento, elogios, críticas, prêmios, exortações, ameaças de castigo e todos os outros recursos pelos quais é regida e governada a humanidade são imediatamente abolidos e privados de sentido e não mais encerram nenhuma sombra de justiça no momento em que a vontade não é considerada a causa do pecado. Com quanto mais legitimidade e equidade recusamos o erro dos matemáticos [isto é, dos astrólogos], em vez de vermo-nos forçados a condenar e rejeitar as leis divinas e até mesmo deixar o governo de nossas próprias casas, coisa que os matemáticos não sabem fazer? Quando alguns desses que vendem previsões tolas aos adinheirados, tira os olhos da suas tábuas de marfim e começa a preocupar-se com a administração de governo a sua casa, corrige a sua esposa, não só com palavras, mas também com golpes, não porque seja ela frívola e petulante, mas tão-somente por olhar um pouco mais do que deveria para a janela,. poderia, então, ela dizer: ‘Ias me bater? Bata em Vênus, se puderes, visto que ele me obrigou a fazer isso’. Porém, não lhe interessa o quão vãs são essas fórmulas, que ele mesmo inventou para enganar os estranhos, mas sim o quão justos são os castigos que ele impôs para a correção dos seus.”

Apontada essa incongruência, prossegue Agostinho o ataque aos astrólogos:

“Quando alguém que é repreendido culpa o destino e não quer ser considerado culpado, porque diz que o destino o obrigou a fazer o que se lhe critica, caia em sí [o astrólogo] e aplique essa mesma doutrina em sua casa: não castigue o empregado ladrão, não se lamente do filho que lhe injuria, nem ameace ao mau vizinho. Quem fará essas coisas, se aqueles de quem se recebe as injurias não é culpado delas, mas o destino lhe obrigou a fazer o que fez? Se, porém, com direito e diligência próprios do chefe da família se insta ao bem a todos que estão temporariamente sob seu comando e se se lhes aparta do mal, e lhes obriga a obedecer a sua vontade, e honra a todos aqueles que lhe obedecem, ao menor indício, e castiga os que lhe desprezam, paga com gratidão os benefícios e odeia o ingrato. Esperarei eu a disputa contra o destino, quando vejo que ele fala muito, não com palavras, mas com ações parece que quebra com as próprias mãos todas as tábuas de astrologia nas suas cabeças?”

Não se alonga mais Agostinho. Chama a atenção na carta a Lampádio a ausência da crítica comumente feita por Agostinho ao método falho dos astrólogos, sobretudo por meio do recurso ao argumento dos gêmeos. O’Loughlin caracteriza esse texto como tendente mais à retórica do que ao desafio aos astrólogos. De fato, Agostinho prefere apontar a vida contraditória dos astrólogos, que não praticam o que ensinam, pois, não governam suas casas considerando a ação determinista dos astros, e preferem culpar a esposa, os filhos, os servos e os vizinhos pelos erros que cometem em vez de computá-los às estrelas. Argumenta, ainda, O’Loughlin, que a carta a Lampádio tem forte presença de elementos autobiográficos, pois ao escrevê-la Agostinho ter-se-ia remetido ao tempo em que viveu sob influência das ideias maniqueístas e buscava fugir da responsabilidade moral, atribuindo os seus erros às estrelas, que parece ser a motivação principal dos que recorrem à astrologia.

A carta termina com a promessa de Agostinho de que iria se dedicar a dissertar longamente contra a astrologia, tão logo dispusesse de tempo livre. Tal promessa não se cumpriu, a não ser que se considere que o último texto agostiniano contra a astrologia, incluído na obra De civitate Dei, e não um texto que tratasse exclusivamente do assunto, seja a realização do compromisso assumido pelo Hiponense.

O tratado contra o palavrório oco dos astrólogos
De civitate Dei
Hipona, 421 – 426

Sete capítulos do quinto livro da obra De civitate Dei [A cidade de Deus] tratam da astrologia. É o texto mais longo, o mais técnico e o último de Agostinho destinado a atacar e desacreditar a astrologia.

Dedica Agostinho o primeiro capítulo de seu texto contra a astrologia em A cidade de Deus a defender a tese de que essa arte é contra a crença em Deus e até contra qualquer crença em deuses. Busca ele demonstrar que essa arte não apenas não adora a Deus mas que busca mesmo suprimir a crença Nele. Diz Agostinho:

“Os que opinam que os astros, sem a vontade de Deus, determinam nossas ações, os bens que teremos ou os males que padeceremos, devem ser rechaçados dos ouvidos de todos, não apenas dos ouvidos daqueles que professam a religião verdadeira, mas também dos daqueles que querem ser adoradores de quaisquer deuses, embora falsos. A que conduz semelhante ponto de vista, senão a não adorar ou a suprimir, em absoluto, o culto a um Deus?”

Se as estrelas decretam crimes, então o fazem com o poder que recebem de Deus e se as estrelas determinam o comportamento dos homens, então não há como Deus julgar os homens. Se as estrela causam o mal, Deus, o Criador delas, é a causa do mal. Acentua Agostinho que os astrólogos não falam em termos de possibilidade, mas de determinação. As estrelas não predizem o futuro apenas, mas o realizam. Os astrólogos, esclarece Agostinho, dizem, por exemplo, “Marte […] faz o homicida”.

Contudo, para serem cridos, os astrólogos, afirma Agostinho, tomam “dos filósofos a linguagem de que devem servir-se para prognosticar as coisas que julgam encontrar na posição dos astros”. Tal apropriação é falaciosa, pois o exame de seu método de adivinhação mostra que eles não logram explicar, por exemplo, como é possível que

“haja tamanha diferença na existência de dois gêmeos [se] muitos estranhos são muito mais parecidos com eles, [do] que entre si os próprios gêmeos, [que estão] separados, ao nascerem, por brevíssimo espaço de tempo e na concepção engendrados pelo mesmo ato carnal e no mesmo instante”.

Uma vez mais, portanto, recorre Agostinho ao argumento dos gêmeos: Se os gêmeos são concebidos ao mesmo tempo e nascem com pequena diferença de tempo entre eles, como explica a astrologia as diferenças entre eles quanto às ações, ao destino, às profissões, à vida, enfim, e à morte? Desta vez, ao contrário das anteriores, o argumento será explorado mais minuciosamente.

O texto que compõe o segundo capítulo certamente é o de maior apuro técnico dos que Agostinho produziu de crítica à astrologia. Põem-se Agostinho a comparar a medicina com a astrologia, e usa para isso o problema da saúde e da doença nos gêmeos. Estabelece o Hiponense um debate imaginário, cujos interlocutores são, pela medicina Hipócrates, segundo relato de Cícero e deduções do próprio Agostinho, e pela astrologia o filósofo estoico Possidônio.

A medicina é capaz de explicar, afirma Agostinho, o caso dos gêmeos que adoecem simultaneamente. Dado que têm a mesma constituição física, foram concebidos ao mesmo tempo e receberam as mesmas influências ambientais (alimentação, água e ar idênticos); não espanta, pois, à medicina que tenham a mesma disposição de saúde, boa ou má. Narra Cícero, diz Agostinho, que Hipócrates ao ouvir o relato de que dois irmãos ficaram doentes e sararam ao mesmo tempo, previu fossem eles gêmeos, o que se verificou acertado mais tarde. Ora, contrapõe Agostinho, o astrólogo Possidônio explica o mesmo fato por terem os ditos irmãos o mesmo horóscopo. Mas é sabido, coloca então o Hiponense, que existem gêmeos que têm vidas muito díspares e adoecem diferentemente. Ora, Hipócrates explicaria isso facilmente, atribuindo a causa disso não à compleição que é idêntica, mas às condições ambientais diferentes. Já o horoscopista não pode explicar o caso, afirma Agostinho. Haveria, então, o “defensor da fatalidade sideral” de recorrer a um argumento ad hoc, introduzindo uma variante sideral no pequeno espaço de tempo que medeia o nascimento de um irmão gêmeo e de outro. O argumento proposto pelos astrólogos para resolver o problema dos gêmeos era conhecido como teoria da “roda do oleiro”.

Dedica-se, então, Agostinho o terceiro capítulo ao exame da teoria da “roda do oleiro” [rota figuli], devida a um certo astrólogo chamado Nigídio [Nigidius], que a defendeu com tal vigor que se adicionou ao seu nome o epíteto de Fígulo [Figulus]. Nigídio Fígulo argumentava que, como se sabe pela prática, não se pode marcar duas vezes um vaso na roda de oleiro no mesmo ponto, por mais rápido que se tente fazer isso, pois as marcas sempre ficarão distantes, devido ao rápido giro da roda. O mesmo ocorreria com o céu, sustentava Nigídio Fígulo, que gira rapidamente; assim sendo, os gêmeos, por pequena que seja a diferença de tempo de nascimento entre eles, terão sobre si constelações diferentes ao vir à luz, devido a essa rápida rotação celeste. Exposta a teoria, objeta o Hiponense, que se os astrólogos não sabem apontar que diferenças são essas, elas de nada valem e fica assim irremediavelmente prejudicado o estudo dos horóscopos, que deveria incluir tais diferenças mínimas e não o fazem. Além do mais, as diferenças pequenas não consideradas acabam sendo tão importantes quanto as grandes que são habitualmente levadas em conta, pelo que não se entende por que umas, as grandes, são consideradas e medidas pelos astrólogos e outras, as pequenas, não. Ora, sentencia ironicamente Agostinho ao final de sua análise: “tal ficção é mais frágil que as vasilhas feitas com a rotação da referida roda”.

Dito isso, Agostinho abre o quarto capítulo, em que relembra o caso dos célebres gêmeos veterotestamentários Esaú e Jacó. Por que foram tão diferentes, indaga o Bispo de Hipona, se tinham certamente a mesma constelação no nascimento, visto que o relato bíblico (Gênesis, 25, 25) diz que Jacó nasceu segurando o pé de Esaú? Como os astrólogos, ao examinar esse caso, haveriam obrigatoriamente de recorre ao supramencionado argumento da roda do oleiro, atribuir-se-iam, então, as dessemelhanças entre eles ao tempo mínimo decorrido entre o nascimento de um e de outro e não às constelações observáveis no momento em que cada um veio à luz. Como explicar então, eis mais um desafio lançado por Agostinho aos astrólogos, a existência de pessoas que se assemelham umas a Esaú e outras a Jacó e nasceram sob diferentes constelações? Como não há resposta a isso, concluindo o capítulo, exara Agostinho o seu parecer, segundo o qual toda a astrologia não é senão “palavrório oco dos matemáticos”.

Abre, então, Agostinho um novo capítulo, o quinto e mais longo, em que arrola outros argumentos contrários à teoria astrológica da roda do oleiro. Afirma inicialmente Agostinho que bastaria o já mencionado caso dos irmãos que adoeceram e sararam simultaneamente, que Hipócrates acertadamente, sem os conhecer e apenas pelo relato, previu serem gêmeos, para invalidar a teoria da roda do oleiro de Nigídio Fígulo. Muito mais se pode lançar contra o método dos astrólogos, esclarece Agostinho, pelo fato de esses adivinhos recorrerem a dois argumentos, a hora do nascimento e a hora da concepção. Quanto ao argumento momento da concepção, há nele um grave problema, visto que se a concepção dos gêmeos for simultânea, como se há de admitir, como explicar, então, o destino diferente deles, quanto, por exemplo, ao próprio nascimento, que não pode ser simultâneo, ou quanto a qualquer acidente que possa ocorrer a um e não ao outro na vida uterina? Se a concepção simultânea explica apenas a semelhança de compleição entre os gêmeos, então nada há na explicação astrológica que a torne superior à dos médicos, que não recorreram aos cálculos astrológicos. Contudo, como insistem os astrólogos seguidores de Nigídio Fígulo que a distância temporal entre o nascimento dos gêmeos determina-lhes as diferenças na vida, há que exigir dos praticantes dessa arte a explicação das causas.

De qualquer modo, argumenta Agostinho, o procurarem explicar os acontecimentos com o recurso ora do horóscopo do nascimento, ora do horóscopo da concepção, não conseguem os astrólogos lograr êxito nas suas análises e previsões. Coloca o Bispo de Hipona inúmeras indagações aos astrólogos, para as quais não espera ouvir resposta. Se podem, pergunta Agostinho,

“existir diferentes destinos para o nascimento de dois indivíduos concebidos ao mesmo tempo, porque não poderiam existir destinos diferentes para viver e para morrer de dois indivíduos nascidos ao mesmo tempo? Com efeito, se o mesmo instante em que ambos foram concebidos não impediu que um nascesse primeiro e depois o outro, por que o nascerem duas pessoas no mesmo instante há de impedir que este morra primeiro e aquele, depois? Se a concepção simultânea permite aos gêmeos terem acidentes diversos no útero materno, por que a natividade simultânea não permitira também a esses dois terem incidentes diversos no mundo, fazendo, assim, desaparecerem todas as invenções dessa arte, ou para melhor dizer, dessa vaidade?”

Como há até mesmo quem use a astrologia, explica Agostinho, para escolher a hora de conceber filhos, não passa isso de rematada inutilidade, pois considerando o caso dos gêmeos e a impossibilidade de a constelação da concepção determinar o momento do nascimento, então tanto faz ser concebido num momento ou em outro.

Termina o Hiponense o capítulo com análise do problema do efeito da vontade humana sobre os horóscopos. Se os gêmeos têm diferentes vontades e o momento do nascimento afeta o horóscopo da concepção, não haveria, então, a vontade humana de alterar também o destino que as constelações de nascimento imporiam ao destino de cada um?

Continua ainda a condição gemelar a fornecer a Agostinho mais material para atacar a astrologia, como se vê no capítulo sexto, que se destina a tratar do caso dos gêmeos que são de sexos diferentes. Relata Agostinho ter conhecido um rapaz e sua irmã que nasceram gêmeos. Se, afirma Agostinho, não têm os astros poder de determinar algo tão corpóreo quanto o sexo, como o prova a existência de gêmeos de sexo diferentes, como poderia, então, impor ao menino que crescesse e se casasse e tivesse filhos e à menina que ficasse solteira e consagrasse a virgindade a Deus?

Após referir-se à “enorme vacuidade” da astrologia, afirma Agostinho que

“possível é sustentar […] não de todo absurdamente, que certos influxos sidéreos valem apenas para as diferenças corpóreas, como vemos variarem também as estações do ano, de acordo com o movimento do Sol, e, conforme a fase da lua, além do admirável fenômeno do fluxo e refluxo do oceano, vemos que os ouriços do mar e as ostras aumentam ou diminuem, e que a vontade dos homens não se subordina à posição dos astros.”

Assim fazendo, Agostinho circunscreve suas críticas não ao estudo de todas as relações que porventura existam entre os eventos celestes e os terrestres, mas tão-somente àquela classe de estudos que se valem dos horóscopos e afirmam a fatalidade dos astros sobre a vontade humana.

Começa Agostinho o capítulo sétimo, o último desse ataque à astrologia contido em A cidade de Deus, com o apontamento das contradições em que os astrólogos caem ao acreditar que podem escolher dia para a união com mulher ou para semear, plantar ou multiplicar animais. Ora diz, o Bispo de Hipona, se no momento do nascimento os astros determinam, por exemplo, que alguém douto terá filhos ignorantes, como pode este homem inteligente mudar o destino escolhendo o dia de unir-se à mulher para engendrar o que o destino determinou que não lhe ocorresse? Como acreditar, também, continua Agostinho a desafiar os astrólogos, que há, como dizem alguns, momentos para árvores, ervas, serpentes, aves, peixes, vermes etc.? Ora, isso é risível até para uma criança, admira-se Agostinho. Contudo, continua, muitos creem nisso e narra o Hiponense que os astrólogos promoviam demonstrações públicas de suas habilidades em que adivinhavam, informados do momento de um nascimento qualquer se era o de um homem ou de um animal, e se era o de um animal diziam de que espécie era e tudo isso “para grande aplauso dos admiradores.” Surge, então, afirma Agostinho, o problema da exclusividade de nascimento: se nasce uma mosca, não é tempo de nascer um camelo e vice-versa. Estende, então, o Bispo de Hipona o problema para as sementes: escolhido o dia conveniente e jogadas simultaneamente as sementes, não vão umas ser comidas pelas aves, outras perdidas e outras colhidas pelo homem? Como explicar pelos astros destinos tão dessemelhantes? Pior ainda, diz Agostinho, é o afirmarem alguns astrólogos que não atuam os astros nesses assuntos e só afetam eles as ações humanas. Ora, admira-se o Hiponense, logo o homem, que tem vontade livre!

Arremata Agostinho sua crítica maior aos astrólogos asseverando que eles somente são capazes de prever acertadamente por causas extrínsecas a sua arte. Após o exaustivo exame empreendido da fundamentação e da técnica da astrologia, diz Agostinho que

“ponderando tudo isso, não sem motivo se acredita que, quando os astrólogos respondem maravilhosamente muitas coisas verdadeiras, o fazem movido por secreto instinto de espíritos não bons, a cujo cargo esta imbuir e propagar nas mentes humanas essas opiniões falsas e nocivas a respeito dos destinos, e não por pretensa ciência de horóscopos, que na realidade não existe.”

Encontra-se na Cidade de Deus, como se vê, o texto crítico mais extenso e completo de Agostinho contra a astrologia. Não contém ele novidades, relativamente aos anteriores que o Hiponense dedicou ao assunto, exceto a ampliação do argumento dos gêmeos com a refutação do recurso dos astrólogos denominado roda do oleiro. Não obstante ser uma peça literária completa, não pode ela ser considerada o tratado contra a astrologia prometido por Agostinho ao seu correspondente Lampádio. O texto faz, contudo, as vezes desse prometido tratado e parece que exerceu grande influência durante muito tempo.

Encerra-se assim a obra crítica de Agostinho à astrologia. Há, contudo, um problema complementar, que convém examinar, referente aos Magos do Oriente e à Estrela de Belém, do qual o Hiponense se ocupou, e que se relaciona à questão da ação determinista dos astros e tem solução consonante com o tratamento agostiniano do problema da astrologia.

Agostinho e o problema dos Magos do Oriente e da Estrela de Belém

O episódio narrado no evangelho de Mateus referente à Estrela de Belém e aos Magos do Oriente, que viram nela o sinal do nascimento do Messias e foram adorá-Lo, presta-se, indiscutivelmente à discussão do problema da astrologia. Seriam os tais Magos do Oriente astrólogos? Teriam eles visto nas estrelas, de fato, que o Messias nasceria na Judeia? Agostinho examinou a questão, e seria de espantar se não o fizesse, mas o assunto não foi tratado nos textos especialmente dedicados ao ataque à astrologia.

O problema dos Magos e da astrologia é objeto de análise no Sermão 12: Deus fala aos homens de muitos modos, explica Agostinho, e pode recorrer até mesmo aos elementos do mundo. Assim sendo, continua o Bispo de Hipona, Deus falou aos Magos por meio de uma estrela. Não se trata, porém, acrescenta, de uma comunicação direta, cuja mensagem se capta pelos ouvidos ou pelos olhos, mas de algo que se sente internamente e que é de algum modo motivado pelo sinal externo. Entende-se, assim, que os Magos não leram nada nas estrelas, porque nada havia nelas para ler, mas que Deus usou as estrelas para comunicar algo, mas o fez tão-somente para aqueles Magos, visto que eles tinham sensibilidade para entender a mensagem e a captariam indiretamente no exercício de sua arte adivinhatória. Estivesse o nascimento de Cristo escrito nas estrelas, qualquer astrólogo haveria de sabê-lo; como não estivesse escrito, Deus comunicou isso de modo especial aos Magos, por meio de algo que eles conheciam e valorizavam.

No Sermão 374, cujo tema é a Epifania, Agostinho afirma que os Magos foram guiados por uma estrela para adorar a Cristo, mas acrescenta que também tiveram o auxílio de um anjo, que lhes revelou o nascimento do Salvador. Diz Agostinho:

“Foram [os Magos, de lugar distante,] adorar o Menino, o Verbo de Deus. Por que foram? Porque viram uma insólita estrela. Como souberam que era [a estrela] de Cristo? Presume-se que puderam ver a estrela, mas essa não poderia dizer-lhes: ‘Sou a estrela de Cristo’. Indubitavelmente, isto lhes foi indicado por uma revelação.” […] É provável, então, que o anjo lhes tenha dito: ‘A estrela que vedes é de Cristo, vão e adorem-No onde é nascido, e saberão quem é e quão grande é.’ Ouvido isso, foram adorá-lo. Portaram ouro, incenso e mirra, segundo lhes era costumeiro. Tais ofertas, de fato, estavam eles habituados a oferecer a seus deuses.”

Não haveriam os Magos de saber do nascimento de Cristo pelas estrelas, afirma Agostinho; apenas uma revelação especial, por intermédio de um anjo, poderia dar-lhes esta fausta notícia.

Já na polêmica de Agostinho com Fausto, o maniqueu, o problema da Estrela de Belém e dos Magos havia sido discutido de passagem. Diz Agostinho:

“De nossa parte, não pomos o nascimento de qualquer homem sob a influência fatal de estrelas, para liberar de toda restrição de necessidade a liberdade da vontade, pela qual se vive bem ou mal e se torna possível o justo julgamento de Deus. Menos ainda, portanto, consideramos sob a influência das estrelas o nascimento daquele que é o eterno Criador e Senhor de todas as coisas. Assim, aquela estrela que viram os Magos, depois do nascimento de Cristo segundo a carne, não exercitava domínio de acordo com um decreto, mas serviu a modo de testemunha. Não submeteu o neonato a uma autoridade, mas o indicou como digno de respeito. Essa estrela, portanto, não fazia parte daquelas que, desde o início da criação, mantém a ordem dos seus caminhos sob a lei do Criador. Em vez disso, foi a novidade de um nascimento virginal que determinou o aparecimento de uma nova estrela. Esta precedendo-lhes e permanecendo na frente deles ofereceu o serviço que levou os Magos que procuravam Cristo até, sempre precedendo-lhes, conduzí-los ao próprio lugar onde se encontrava o Verbo de Deus, então menino. Que astrólogos a tal ponto submeteriam uma estrela ao destino de algum homem que nasceu, a ponto de afirmar que uma estrela deixaria a trajetória por ela ordeiramente seguida e se dirigisse àquele que nasceu? Considerase que o destino de quem nasce está ligado à ordem astral, não que esta ordem muda devido o dia do nascimento. Se essa estrela era parte daquelas que se seguem ordenadamente suas órbitas, como poderia ela determinar o que faria Cristo se desde o momento do nascimento de Cristo ela tinha ordem de deixar o que estava fazendo? Se, então, como achamos mais provável, para anunciar Cristo nasceu uma estrela que ainda não existia, não foi o surgimento daquela estrela que determinou o nascimento de Cristo, mas isso se deu porque Cristo nasceu. Se conviesse falar assim, diríamos que não foi a estrela que determinou o destino de Cristo, mas foi Cristo que determinou aquela estrela. Foi Ele para a estrela e não a estrela para Ele a causa do nascimento.”

Dado o teor desses textos, devem eles ser computados entre os que estabelecem as bases do ataque agostiniano à astrologia.

Comentário final sobre a crítica de Agostinho à astrologia

Inicie-se a apreciação final da obra de Agostinho contra a astrologia com o parecer de O’Loughlin, que a qualificou de “monumento de precisão técnica para a época.” Há apenas, em princípio, que ratificar esse julgamento. Atente-se, contudo, que O’Loughlin se restringiu nessa citada avaliação ao exame que Agostinho fez do método astrológico e que o mencionado parecer exalta o texto antiastrológico constante de A cidade de Deus. A argumentação do Hiponense contra a astrologia pode indubitavelmente ser classificada como de alta precisão técnica, mas como ela se estende para além da questão metodológica e abrange problemas de moral e de doutrina, há que avaliá-la não só como altamente precisa para a época, mas como completa, por não deixar de examinar o problema por todos os ângulos possíveis. Assim, não se deve considerar o pensamento antiastrológico de Agostinho apenas pelo que está em A cidade de Deus, mas por todas as ideias desenvolvidas contra a arte de consultar os astros que se estendem pela obra toda do Hiponense. Há certamente que lamentar que Agostinho não tenha composto uma peça literária única destinada a tratar do assunto. Isso, todavia, em nada apequena o trabalho do Hiponense contra a astrologia, mas se pode imaginar que a apresentação conjunta dos vários argumentos contra essa arte teria maior efeito na campanha contra ela e ajudaria os historiadores das ideias a apreciar mais justamente as virtudes intelectuais de Agostinho e a contribuição dele no progresso da ciência e da filosofia.

A avaliação diferente da O’Loughlin chegou Macías Villalobos no extenso e acurado estudo que fez dos escritos antiastrológicos de Agostinho. Empreendeu esse estudioso uma exaustiva análise do léxico agostiniano em matéria astronômico-astrológica que visou auxiliar a avaliação do grau de conhecimento que o Hiponense tinha das artes derivadas dos estudos dos astros e das fontes literárias relativas ao assunto, incluindo a crítica à astrologia. As conclusões a que chegou Macías Villalobos são basicamente as seguintes: 1) Agostinho usou terminologia astronômica e astrológica “pouco variada e pobre” que indica não ser a de especialista nesses assuntos; 2) Recorreu o Hiponense exclusivamente a literatura escrita em latim; e 3) No exame empreendido por Agostinho dos muitos temas variados relativos aos astros, expressou ele fascinação pelo céu estrelado e pelo estudo dos astros e demonstrou grande admiração pela precisão das técnicas astronômicas e pela utilidade delas.

Pesa muito contra Agostinho, na opinião de Macías Villalobos, o fato de o Hiponense não saber grego e não ter lido o Tetrabiblos de Cláudio Ptolomeu. Assim, pôde ele guiar-se apenas pelo que diziam da astrologia os escritores latinos antigos, que não leram o referido tratado astrológico ptolomaico. Cícero, fonte principal de argumentos para Agostinho, no entender de Macías Villalobos, conhecia uma astrologia rudimentar e ultrapassada, de características fatalistas, e não fazia mais do que ecoar argumentos utilizados por Carnéades de Cirene, Clitômaco de Cartago, Panécio de Rodes e Antíoco de Escalão. Muito diferente é, no entender de Macías Villalobos a astrologia apresentada no Tetrabiblos, que se mostra não determinista e com ampla margem para a liberdade humana.

Pode-se dizer, resumidamente, que Agostinho complementou a já existente crítica à astrologia de seu tempo e ainda a ampliou, adicionando-lhe, com base na doutrina cristã, elementos teológicos e morais diversos que a robusteceram consideravelmente. Não obstante não ter dedicado obra específica ao assunto, o texto antiastrológico mais longo de Agostinho, que está, foi suficiente para sustentar o combate a essa superstição por muito tempo. Tal corpo argumentativo em seu todo, ou mesmo exclusivamente no que consta em A cidade de Deus, é suficientemente consistente e forte e desafia desde então a crítica.

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