E os Objetos Naturais no Livro Sagrado de Hermes para Asclépio
Spyros Piperakis
Greek, Roman, and Byzantine Studies 57 (2017) 136–161
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Tradução:
César Augusto – Astrólogo
Traduzido com a permissão do autor.
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Em seu polêmico trabalho contra o cristianismo, escrito em 178, o filósofo grego Celso escreveu que, de acordo com os egípcios, todas as partes do corpo humano foram colocadas sob o encargo de 36 daemons ou deuses celestiais, cujos nomes são invocados em tempos de doença para tratar os sofrimentos de suas partes subordinadas. Celso certamente está se referindo aos decanatos (δεκανός). Na astronomia egípcia os decanos eram estrelas únicas ou aglomerados de estrelas que foram usadas para marcar as horas da noite e dividir o ano egípcio de 360 dias em intervalos de dez dias, com a exclusão dos cinco dias epagomenais. Durante o período ptolomaico, os 36 decanatos da doutrina astrológica foram assimilados pelo helenismo e atribuídos em três aos doze signos zodiacais2 e, individualmente, aos sete planetas (“faces” dos decanatos). No entanto, como Celso indica, essas estrelas representavam algo mais do que um sistema de medição do tempo e elementos astronômicos impessoais. Elas eram entidades personalizadas com nomes, dotadas de características físicas e curativas ou, inversamente, poderes malévolos sob seus domínios, que poderiam ser convocados ou então evitados, geralmente por meio de amuletos.
2 Cada signo zodiacal de 30° de comprimento foi dividido em três partes iguais. segmentos de 10°, os decanos – daí o nome δεκανός, do numeral δέκα, “dez”.
Essa é a cosmovisão essencial do Livro Sagrado de Hermes para Asclepius, um manual de rituais sobre a fabricação de amuletos e anéis de dedo, escrito em grego provavelmente no início do Egito Romano. Sua curta introdução, atribuída a Hermes Trismegisto e endereçada a Asclépio, expõe a doutrina zodiacal da melotesia (melothesia), o sistema que distribui as partes do corpo, partindo da cabeça aos pés, pelos doze signos zodiacais. Estes 36 ‘distritos’ decanais seguem a ordem zodiacal, se incia no primeiro decanato de Áries e termina no terceiro de Peixes. Cada ‘distrito’ exibe o nome egípcio e a iconografia de um decanato, sua doença ou parte do corpo designada e, de acordo com o signo zodiacal ao qual pertence – em concordância com a melotesia zodiacal, sua própria pedra e planta e, em alguns casos um metal, e uma dieta alimentar. Desejando frustrar uma determinada doença, o praticante aspirante precisa procurar numa lista os seus decanatos correspondentes. Depois disso, ele tem que gravar o nome do decanato e sua imagem específica na pedra astralmente relacionada e colocar a planta do decanato embaixo da pedra, colocando ambos em um anel (em alguns casos feitos de um metal específico). Por fim, um tipo especial de alimento deve ser evitado como pré-requisito para a bem-sucedida ação do anel. A proporção dos sofrimentos são causadas pelos signos zodiacais relacionados à sua melotesia, e não pelos próprios decanos, que é a estrutura do trabalho por cima deste conceito homeopático. Os objetos amuléticos – pedras, metais e plantas – estão ligados aos decanatos através dos laços de simpatia (sympatheia), enquanto as dietas alimentares aos da antipatia (antipatheia), embora ambos sejam empregados para atenuar os efeitos maliciosos dos signos.
Uma seleção específica de objetos do mundo físico é associada a cada decanato baseando-se em vários conceitos e esquemas astrológicos. Entretanto, a discussão destes pontos fica fora do escopo deste estudo: o que interessa aqui é uma outra análise incorporada pela mentalidade do autor que recebeu pouca atenção. Em vários casos, as imagens do decanato geram combinações de signos que estão em analogia com seus objetos correspondentes. O objetivo deste artigo é reconstruir sua lógica subjacente e lançar luz sobre sua dinâmica textual/ritual.

Tabula Bianchini – “Os julgamentos dos decanatos e as estrelas que co-nascem com eles por Teucer, o babilônio.”
O primeiro decanato a ser discutido é o primeiro em Gêmeos. Ele é descrito como um homem com cara de jumento numa roupa na altura do joelho, empunhando uma pequena chave na mão direita, enquanto a mão esquerda aponta para baixo. Este decanato também é retratado como um homem com cabeça de jumento em três outros documentos que preservam o nomes e as imagens de decanatos: o primeiro capítulo do Liber Hermetis Trismegisti10 e os dois dípticos de marfim de Grand11. Na tradição egípcia, o jumento era um dos animais de Seth e, durante o período posterior, Seth era frequentemente apresentado sob a forma de um asno ou com a cabeça de um burro. Aparentemente, a figura em consideração é uma representação do deus egípcio Seth. No entanto, em contraste com o Livro Sagrado, o decanato no Liber Hermetis Trismegisti carrega uma espada e no tablete A de Grand uma adaga ou faca (no tablete B apenas a cabeça e o tronco superiores são preservados). No disco de vidro Kharga também há um decanato representado segurando uma adaga. Portanto, Joachim Quack defendeu a identificação dos daemons egípcios chamado-os de “flechas” (šsrw), das quais várias relacionadas a Seth com uma faca na mão.
Para encontrar outro deus tão popular quanto Ísis, é preciso ir para o segundo decanato de Peixes. O decanato é retratado como um homem nu, coroado com um basileion e vestindo um envoltório jogado sobre os ombros, enquanto segura um pequeno vaso de água na mão direita e leva o dedo indicador esquerdo à boca. Nos tabletes de Grand e no disco de Kharga, uma figura levando a mão à boca corresponde ao terceiro decanato. As grandes tábuas, como o Livro Sagrado, mostra uma figura nua, exceto por um manto. Todas representam o deus Harpócrates, geralmente descrito como uma criança nua e não como um adulto. Seu nome egípcio, Ḥr-pȝ-ẖrd, significa Hórus, o Menino; pois ele é a forma juvenil de Hórus e a encarnação do sol jovem (manhã).

Hárpocrates – Hórus, o Menino
Horus-Harpocrates assume a planta λιβανωτίς (alecrim incenso?), um fitonímio dado a várias plantas aromáticas espécies com fragrância de λίβανος (Cedro-do-líbano). λίβανος referia-se ao incenso da árvore (Boswellia carterii), bem como sua resina, seu incenso, era uma substância altamente valorizada e importada inicialmente para o mundo mediterrâneo através das rotas comerciais orientais. O incenso foi usado não apenas na fabricação de medicamentos, pomadas e perfumes, mas especialmente na oferenda de sacrifício aos deuses. Além disso, λιβανωτίς também significa o braseiro no qual as sementes de incenso eram colocadas e queimadas. Portanto, por trás da seleção de uma planta cujo nome significa tanto o incenso e a parafernália do ritual reside na representação do decanato como Harpócrates, um dos deuses mais populares do Egito Greco-Romano. Suas estatuetas de terracota habitavam numerosos lares de ptolomaicos e do Egito Romano sugerindo a realocação de rituais cívicos para contextos domésticos, às vezes refletidos na oferenda de incenso nos altares em miniatura. No entanto, para a escolha desta planta outra lógica suplementar pode ser proposta: incenso foi amplamente visto como uma substância solar, e por isso foi selecionado para ser atribuído ao decanato que representa uma divindade solar.
A mesma planta ocorre mais uma vez no Livro Sagrado, no terceiro decanato de Gêmeos: ela deve ser colocada sob a pedra solar heliotrópio (ἡλιοτρόπιον). Essa relação pode ser explicada pelo truísmo astrológico de que o decanato tem a “face” do sol. O que é relevante aqui é que o aspecto solar do decanato, da planta e da pedra é indicado pelo raio “ardente” (κεραυνός) que o decano empunha na mão direita. Uma gema do Getty Museum, gravada com as três formas do deus solar egípcio, assim também dotado de um significado solar, retrata uma figura barbada nua derramando água em um vaso e um relâmpago contido na outra mão. De modo similar, no Livro Sagrado, o decano contém, além do relâmpago, um pequeno vaso de água na mão esquerda. Essas semelhanças, não obstante, são duas figuras de formas diferentes, uma vez que no decanato do Livro de Hermes é descrito como uma mulher coroada com um basileion e com asas da cintura aos pés.
A iconografia decanal e as substâncias naturais são unidas contexto solar também no caso da terceira seção de Peixes. O decanato é descrito como invisível (ἀφανής) e tem a forma de uma serpente enrolada com barba e um basileion na cabeça, que provavelmente pretendia representar o deus Agathodaimon. Ele era o “bom espírito” da cidade de Alexandria, a personificação de boa sorte, abundância e proteção. Apesar de seu equivalente grego ser encontrado na forma e funções de Zeus Ktesios, esse deus tinha relações mais fortes com os deus-serpente dos egípcios Shai. Durante o período romano Agathodaimon foi considerada uma divindade suprema e, como tal, foi assimilada à mais alta divindade das religiões e filosofias daqueles tempos, o deus do sol Helios, era indicado nas práticas rituais dos papiros mágicos gregos.
Este decanato deve ser esculpido em jacinto (ὑάκινθος), uma pedra em simpatia (sympatheia) com o sol, de acordo com três textos astrológicos de mais tarde. Um texto anterior demonstra amplamente a fisiognomia solar da pedra: no lapidário de Damigeron-Evax o alcinio, um tipo de jacinto, brilha quando levantada em direção ao sol. A afinidade do jacinto com o sol define o próprio nome, derivado do herói Hyacinthus, o amante de Apollo que acidentalmente o matou com um lançamento de disco. No mito grego o culto de Hyacinthus foi fundido com o deus-sol Apollo, e dadas as conotações mitológicas do nome do jacinto, é fácil entender por que isso implica numa identidade solar.
O jacinto gravado com a cobra barbuda é fixado em um anel juntamente com a planta ἀνθεµία (Anthemis). Na antiga taxonomia rizotômica, esse fitonímio foi usado para várias espécies de camomila. Era uma planta quente e seca, portanto dotada destas duas qualidades elementares atribuídas ao sol. De fato, Galeno diz que o mais sábio dos egípcios havia consagrado a camomila ao sol. Dele é o testemunho complementado em um nome encontrado na lista de plantas sinônimas fornecida pelo Herbarius de Pseudo-Apuleius, onde a camomila é chamada trociscos eliacos, “pastilha solar ”, um fitonímio grego possivelmente incluído nas prescrições herbais atribuídas ao lendário astrólogo Nechepsos. Assim, é seguro assumir que a fisionomia solar do jacinto e da camomila está de acordo com a fisionomia solar de Agathodaimon, ou, parafraseando diferentemente, Agathodaimon gerou a seleção da pedra e da planta.
Para os casos que ainda precisam ser discutidos, a iconografia decanal continua a gerar sinais para a seleção de materiais, mas sem articular um padrão de populares divindades egípcias. O primeiro decanato de Leão, chamado Χνοῦµος, é descrito como um rosto de leão enrolado numa cobra, virada para cima, com raios solares emanando de sua cabeça, de maneira muito semelhante à retratada no Liber Hermetis Trismegisti. Mais uma vez, no tablete B a grande a divindade astral aparece como uma serpente em pé com uma cauda enrolada e cabeça de leão (em A apenas a cauda enrolada de uma serpente se distingue). Essa serpente com a cabeça de leão irradiada é uma motivo comum em gemas do período romano, onde é frequentemente designado pelo nome Χνοῦβις. A forma de Χνοῦµος no texto segue de perto essa tradição e pode ser entendida como representação grega do nome do decanato Kenmet (Knm.t). Está forma serpentina também pode ser rastreada até representações egípcias de Kenmet. Mesmo que nas listas de nomes dos decanatos Kenmet é colocado na terceira seção de Câncer e não na primeira de Leão, a serpente com cabeça de leão está intimamente ligada à Leão; sua cabeça reflete o animal representado pelo Leão, enquanto raios representam o sol que está “na casa” deste signo zodiacal.
A serpente com cabeça de leão deve ser gravada em ágata (ἀχάτης). O uso amulético dessa pedra é estabelecido na segunda seção astrológica do lapidário Damigeron–Evax, onde a ágata corresponde a Saturno (um planeta que também governa o primeiro decanato de Leão) e, quando inscrito na imagem de um leão reclinado, é usado como amuleto pelos escravos. Para precisar a lógica por trás dessa relação da ágata com leão, vamos para a “enciclopédia” lapidária. Plínio, cita a tradição mágica dizendo que as ágatas se assemelham às peles dos leões e são dotadas de poderes maravilhosos, acrescentando que elas tinham que ser amarradas com crinas de leões para ser eficaz. Assim, o relação entre ágata e leões depende da pedra da semelhança com a pele. Isso se repete no Lapidário Órfico; onde a ágata é chamada λεοντοδέρης, “pele de leão” e a razão dada para isso é a sua cor característica. Referências a cor leonina da pedra também é encontrada em outros textos. O que o praticante é instruído a fazer é colocar a planta sob a ágata λεοντόποδον, “pé de leão”, cujo nome designa uma planta com folhagem semelhante aos pés de um leão. Assim, para os antigos, tanto a pedra quanto a planta estavam transmitindo sinais de sua analogia com a iconografia do decanato e seu signo zodiacal.
O mesmo padrão pode ser visto no segundo decanato de Escorpião. Representado por um homem em pé todo vestido com os pés juntos sobre um escorpião, a figura do decano apresenta elementos da constelação zodiacal de Escorpião. Esta iconografia é melhor preservada no Liber Hermetis Trismegisti. Neste, o decanato é descrito como um homem que está com os pés unidos sobre a parte do meio de um escorpião e segura com as duas mãos uma grande cobra que se projeta de cada lado do peito, representando a constelação de Ophiuchus, localizada entre Escorpião e Sagitário.
Após a gravação, a pedra apropriada é colocada em um anel junto com a planta σκορπίουρον ou σκορπίουρος, “escorpião com cauda”. Um paralelo, sem nenhuma semântica astral, é atestado em uma receita do Kyranides: a raiz de σκορπίουρον, juntamente com outros ingredientes, é colocada sob uma pedra gravada com uma andorinha e um escorpião em seus pés sobre uma espadilha. Para Dióscorides essa fitonímia denota o “grande heliotrópio” (Heliotropium europaeum), devido à forma da sua flor que lembra a cauda de um escorpião. Ao contrário, Plínio designa as outras espécies de heliotrópio da cauda do escorpião a uma semente, chamada tricoccum (Chrozophora tinctoria). Em ambos os casos, o autor hermético escolheu esta planta por causa do seu valor metafórico para a correspondente iconografia astral (decanal e zodiacal). Como σκορπίουρον/σκορπίουρος é sinônimo de heliotrópio, a planta do sol por excelência, sua seleção deve ser atribuída à segunda seção do Escorpião e não ao primeiro ou ao terceiro como explica por uma lógica baseada no sistema de “faces”; pois o segundo decanato de Escorpião tem a “face” do sol.
O último decanato organizado sob esse esquema de contornos semânticos é o segundo decanato de Leão. Tem a forma de um homem nu que empunha um cetro na mão direita, um chicote na esquerda, e é encimado pelo crescente lunar. Sua imagem deve ser esculpida na “pedra da lua”, selenita (σεληνίτης). A semântica de nomes se justifica explicitamente por que a selenita é associada a um decanato coroado com a lua, essa recíproco ligação entre figura e a pedra adquire outro valor se o emblema do topo for avaliado como um motivo da deusa Selene. Dioscorides observa que a selenita também é chamado por algumas pessoas de ἀφροσέληνος, “espuma lunar” porque é encontrada durante a noite quando a lua cresce. Sob esse nome, a pedra é citada na primeira seção astrológica do trabalho de Damigeron-Evax, onde está ligada a Câncer, a “casa” da lua, e é gravada com uma figura feminina usando chifres de vaca, uma representação de Ísis-Selene. Na mesma linha há instruções são dadas para gravar o busto de Selene na selenita, a fim de fazer o amuleto maravilhoso do Kyranides. Nesses trabalhos a lei da semelhança está centrada na crença de que a “pedra da lua” contém a imagem da lua, que encera e diminui dependendo do curso.
Mais analogias entre a iconografia decanal dos objetos naturais e o inanimado e o animado podem ser desenhadas, no entanto, são menos adequadas e, portanto, minha análise para aqui.
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A aplicação de tal princípio semântico na afirmação de correlações é mas um dos vários padrões empregados pelos autores herméticos para organizar o texto. Fornece-lhe taxonomia nos critérios para decidir quais materiais ele incluirá, mas também quais excluir dos vastos arquivos da sabedoria helenística. As substâncias naturais selecionadas são diferenciadas das demais, e apenas elas têm as características ‘legitimadoras’ a serem atribuídas a um conjunto de dados específico. No entanto, qualquer acadêmico na reconstrução dos vários critérios enfrenta o risco de fazer conjecturas simples, pois às vezes só podemos especular o que o autor tinha em mente. Por exemplo, o primeiro decanato de Virgem com a forma de Ísis-Thermouthis deve ser esculpida em calcário de coral (κοραλλίτης). Juba II da Mauritânia, certamente com base em uma fonte greco-egípcia, menciona que um arbusto que cresce no fundo do mar troglodita semelhante ao coral é chamado Isidis crinis, “cabelo de Ísis”. Juba refere-se ao coral porque Isidis crinis era um coral considerado planta marinha que era petrificada quando cortada. Ainda pode-se perguntar se o elo entre coral e o “cabelo de Ísis ”é ecoado da conexão do coral de calcário com um deusa cujas mechas de cabelo eram uma característica comum dela. Em outros casos, outros raciocínios que não estão propostos acima podem entrar no jogo. Por exemplo, o vínculo entre o primeiro decanato de Gêmeos, na forma de Seth, e a hematita, um mineral de óxido de ferro, também pode ser elucidado por meio do conceito egípcio de que o ferro é um mineral associado a Seth. Além disso, a afinidade deste decanato com ὄρχις é igualmente bem explicada pela doutrina das “faces” decanais já que tem a “face” de Júpiter, um planeta que é designado pelo sêmen e é um indicador de geração. O terceiro decanato de Peixes com o jacinto pode ser abordado de outra maneira: Peixes é um signo zodiacal governado por Poseidon, associado ao jacinto em lapidários antigos. A lição que pode ser tirada disso é que existem algumas fronteiras e, em todos os casos, pode-se reconstruir apenas o plausível, não um padrão, em critérios de autoria.
A próxima consideração é o ajustamento desses conhecimentos organizados dentro de um discurso religioso/ritualístico sobre a consagração ritualística dos anéis. A principal prática ritual consistia em esculpir nas pedras os nomes e figuras dos decanatos, seguida pela aplicação do material vegetal. Uma das idéias dominantes por trás de tal consagração amulética é que na religiosidade egípcia os nomes e imagens dos deuses eram de imensa importância por se comunicar com o divino. Nomes divinos eram parte integrante da personalidade dos deuses, enquanto suas imagens eram não meramente representações, mas também manifestações de sua essência. Esculpindo as pedras com os nomes e as imagens do decanato e a fixação das plantas apropriadas e substâncias naturais, se definem as associações simbólicas específicas. Em particular, elas são imbuídas do poder decanal e também participam do status divino de suas divindades astrais, de acordo com a doutrina egípcia de que todos os objetos do mundo físico animados e inanimados, são inerentes à divindade. Alguém poderia reimprimir os ritos teúrgicos da antiguidade tardia. Nomes sagrados, marcas gráficas, pedras e plantas que estavam em algum tipo de afiliação com a divindade tornaram-se vasos de poderes que foram usados para a animação de estátuas. O procedimento principal do rito é complementado pela purificação necessária na dieta e pela determinação do tempo astrologicamente auspicioso ao esculpir os anéis. Mais uma vez, existe uma paralelo claro aos ritos de animação da estátua, nos quais a astrologia parece ter desempenhado um certo papel na determinação dos melhores momentos para seu desempenho. Através destes modelos ritualísticos, todas as substâncias selecionadas (os tabus alimentares incluídos) são transferidas para o status simbólico e, com respeito às pedras e plantas, são transformadas em imagens vivas das divindades astrais correspondentes.
Essa cadeia descendente de simpatia astral (sympatheia) só se torna mais clara quando as figuras vividamente descritas dos decanatos se manifestam em pedras e plantas (e em algumas exceções em animais). Somente o poder das imagens, muito divulgado na introdução do Livro Sagrado, concretiza em objetos reais aquilo que é aplicado pelo praticante para colocar as divindades astrais sob os laços da necessidade. Trismegistus coloca isso eloquentemente: “quando você honrar cada um [decanato] por meio de sua própria pedra e sua planta adequada e ainda mais sua forma, você possuirá uma grande amuleto”. Quando considerada em conjunto as intenções das práticas de manipulação, e sua ligação ressonante entre uma pedra, uma planta e uma figura se transmite a importância do princípio semântico aqui discutido ao afirmar suas correlações. O trato visa ir além dos restritos canais de comunicação ente autor e leitores. Após sua aplicação prática, o manual como um todo será deixado de lado e o que permanecerá à mão, pelo menos para aqueles com a experiência adequada, não é uma gama completa de critérios para escolher os materiais, mas apenas aqueles que são articulados através da cultura material, nomeadamente a semântica da imagens, pedras e plantas.
Em contraste com os materiais escolhidos, que são principalmente adotado a partir das taxonomias gregas do mundo natural, o restante do Livro Sagrado tem fortes conexões egípcias. As influências egípcias são rastreáveis nos nomes e nas figuras dos decanatos que replicam, principalmente, Seth na família dos decanatos e no sistema da melotesia, que tem antecedentes no ritual da deificação dos membros. A estes podem ser adicionados objetos amuléticos egípcios decorados com figuras do decanato, bem como as duas listas decanais do templo de Hathor em Dendera (datado de antes de 30 a.C. e aproximadamente 20 d.C., respectivamente), em que o decanatos estão associados a minerais, metais e madeiras. No entanto, como produto do meio internacional de Egito Greco-Romano, o Livro Sagrado adota do Egito elementos de um disfarce helenístico. Os decanatos dos tempos Greco-Romanos foram assimilados do zodíaco Babilônico-Grego e da ordem grega dos planetas. E mesmo que os rituais de consagração em anel reflitam a prática tradicional baseada no templo para a consagração de estátuas ou outros objetos amuléticos (afinal, gemas e estátuas eram vistas como imagens da divindade, apenas diferentes em escala), elas são destinadas a ocorrer no espaço doméstico e não em qualquer templo ou contexto.
A introdução do Livro Sagrado revela a sabedoria de Hermes Trismegistus, o autor contextualiza a proposta do conhecimento (s) adaptado (s) através do prisma da legitimação divina. Ao fazê-lo, ele responde às demandas do meio social para a participação na sabedoria ‘antiga’ e ‘exótica’ de Egito. Ao mesmo tempo, ele incorpora seu texto a uma tradição legitimada de setores herméticos semelhantes, cujo conhecimento é intensamente técnico, pois seu objetivo é manipular a natureza pelas ferramentas da astrologia, magia ou alquimia. Este conteúdo contrasta com outros discursos herméticos que lidam com questões religiosas/filosóficas. No entanto, Garth Fowden demonstrou convincentemente que esses dois corpos textuais são os produtos do Egito greco-romano e, igualmente importante, que qualquer distinção rígida entre os escritos técnicos e os filosóficos é uma dicotomia não histórica.
O Livro Sagrado, como outras obras da técnica hermética, promete a libertação dos sofrimentos através da aplicação de medicina decanal. E, como texto técnico e filosófico, é anunciado como a sabedoria egípcia revelada e introduzida na forma de um discurso didático. O que esses ensinamentos herméticos transmitem é que todo o cosmos é divino e constrangido pelas cadeias de simpatia, ou, como Hermes diz a Asclépio na introdução de seu livro, “pois sem esse acordo decanal, nada pode surgir, uma vez que o o universo (τὸ πᾶν) está contido nele”. Deus ensina ao homem segredos para reverter as vicissitudes do mal do Destino, manipulando as cadeias cósmicas a seu favor, cadeias que são tangivelmente reproduzidas se o Livro Sagrado for ‘decodificado’ da maneira analisada aqui.
Outubro, 2016 Atenas, Grécia
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