Cosmologias

O Outro Lado da Astronomia

Venus in Painting of the Divine Forms.

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O papel dos jesuítas na transmissão da Astrologia europeia para a China e o Oriente

Luís Campos Ribeiro

Luís Campos Ribeiro é Investigador Integrado no CIUHCT (Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia), Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. O presente artigo é uma versão em Português de um estudo sobre o papel dos jesuítas na transmissão da astrologia para a China, desenvolvido no âmbito da minha tese de doutoramento.

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Devido à extensão global das suas missões, os jesuítas estabeleceram a maior rede de intercâmbio cultural e de educação global do período Moderno. As trocas que promoveram na Índia, China e Japão foram de enorme importância para a disseminação do conhecimento científico europeu no Oriente. Entre estes conhecimentos estava a Astrologia, que diferentemente do seu estatuto na atualidade, era neste período considerada uma das mais importantes vertentes práticas da Astronomia. Estava inserida nas então chamadas «matemáticas», que incluíam também disciplinas como a Geografa e a Navegação, e fazia parte da educação básica de qualquer estudante de matemática. A Astrologia não só era parte fundamental da cultura europeia, como também fazia parte das tradições culturais da Índia, tendo os seus equivalentes nas culturas Chinesas e Japonesas. Por esta razão é plausível supor que fosse também um produto relevante nestas trocas culturais e de conhecimento. Além do mais, a tecnologia astronómica ocidental que tanto cativou o interesse das culturas orientais, e em particular a chinesa, tinha como uma das suas principais aplicações o cálculo astrológico. Contudo, o papel da Astrologia neste processo de intercâmbio está grandemente por explorar. Este artigo oferece um estudo do caso chinês, sobre o qual a produção historiográfica está mais desenvolvida.

Uma nova Astrologia para um antigo império

Mercury in Painting of the Divine Forms

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A China oferece um dos mais relevantes exemplos do uso da Astrologia pelos jesuítas nos seus esforços de missionação. Neste estudo vamos exemplificar o papel da Astrologia na missão da China através dos textos dos principais autores no campo da astronomia e matemática: Matteo Ricci, Johann Adam Schall von Bell, Ferdinand Verbiest e Jan Mikołaj Smogulecki.

A missão jesuíta na China, suas várias etapas e o seu impacto na disseminação do conhecimento científico e técnico no Oriente, é bem conhecida pelos historiadores da ciência. Francisco Xavier tinha objetivo entrar na China em 1552, mas faleceu antes de chegar ao continente. Desta forma a missão só teve um início efetivo mais tarde, em 1582, pela mão de Matteo Ricci, que conseguiu estabelecer uma presença permanente da Companhia na China. O conhecimento astronómico europeu era um dos mais valiosos produtos de troca que tinha ao seu dispor, e Ricci prontamente ofereceu os seus serviços como astrónomo ao imperador. Estes incluíam a previsão precisa de fenómenos celestes tal como eclipses e o cálculo do calendário, que, para além das obvias aplicações cronológicas, tinham também um propósito de prognosticação, sendo a interpretação de augúrios e a escolha de dias favoráveis e desfavoráveis prática comum na cultura chinesa.

Desde o início os missionários jesuítas foram muito críticos destas tradições chinesas de prognosticação e uso de augúrios celestes, pois tal prática era considerada divinação e superstição, contrária à fé Cristã e proibida pelos cânones da Igreja Católica. Esta postura, focando em particular a astrologia, é-nos dada pelo jesuíta Nicolas Trigault, missionário na China, no seu texto De Christiana expeditione apud Sinas suscepta ab Societate Jesu (Lyon, 1615) escrito a partir das notas de Ricci:

Verùm hi Astrologi nihil admodum de coelestibus phænomenis ad rationis calculos reuocandis adlaborant. Magnam partem in praedicendis Eclipsium momentis, & Planetarum ac stellarum motibus occupantur. Sed hæc etiam omnia mille scatent erroribus. Denique omnem ferè suam de sideribus cognofcendis scientiam, in eam, quæ à nostris Iudiciaria est appellata, referunt, arbitrati, quæcunque in hoc elementari orbe fiunt, ab sideribus dependere. In his tamen Mathematicis disciplinis, aliquid ab Saracenis, qui ab Occasu venerant, accepêre, sed nihil illi demonstrationum auctoritate confirmant, sed solùm tabulas quasdam reliquerunt, ad quarum normam fastos suos, Eclipses utriusque planetæ, & omnium motus revocantur.

Mas estes astrólogos [da China] não se preocupam muito em reduzir os fenómenos celestes às regras da razão. Eles estão maiormente ocupados na previsão do momento dos eclipses e o movimento de planetas e estrelas. Mas mesmo todas essas coisas estão cheias de mil erros. Em suma eles resumem quase toda a sua ciência do conhecimento dos corpos celestes ao que nós denominamos [Astrologia] judiciária, acreditando que tudo o que acontece neste mundo inferior depende das estrelas. Contudo, eles aprenderam algo destas disciplinas matemáticas dos Sarracenos que vieram do Oeste. Mas estes sem confirmar nada pela autoridade da demonstração apenas lhes legaram algumas tabelas, às regras de quais eles [chineses] reduzem os seus calendários, os eclipses e os movimentos de todos os planetas.

(Tradução do autor)

Nesta afirmação é clara uma crítica ao conhecimento astronómico chinês, assim como às práticas astrológicas e divinatórias. As restrições que na Europa, a Igreja Católica impôs à Astrologia quanto à previsão de eventos contingentes e dos que interferiam com o livre arbítrio, não existiam na cultura chinesa. Desta forma Ricci e os outros missionários jesuítas tiveram de lidar com uma atitude filosófica e religiosa em relação à Astrologia e à divinação completamente diferente da sua, cedo se apercebendo que alterar as tradições chinesas não seria tarefa fácil.

Como se torna claro nas palavras de Trigault, a Astrologia já tinha uma longa história na China. Para além das suas próprias formas de filosofia natural e uso de augúrios celestes, os chineses já tinham tido contato com a Astrologia Indiana e Árabe que eram muito mais próximas da Astrologia europeia, especialmente esta última. Para a tarefa de observar, calcular e prever fenómenos celestes, assim como a computação do calendário, o governo chinês tinha uma instituição própria, um Departamento de Astronomia, também conhecido como o Tribunal de Matemáticas. Foi no seio desta instituição que, através dos seus conhecimentos de astronomia e matemática, os jesuítas encontraram um ponto de entrada para a corte chinesa e suas tradições.

A Astrologia prática de Schall

Johann Adam Schall von Bell

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Apesar da postura anti-divinação que seria de esperar de qualquer jesuíta como membro da Igreja Católica, a Astrologia foi sempre parte da sua cultura de origem. Qualquer jesuíta com conhecimentos básicos de Matemática e Astronomia teria igualmente aprendido nalgum ponto da sua instrução alguns preceitos básicos da chamada Astrologia Natural. Assim, a Astrologia estava presente de alguma forma na sua transmissão de conhecimentos científicos europeus ao Oriente. Isto exemplifica-se de forma clara no caso de Johann Adam Schall von Bell. Alemão de origem, ele entrou na Sociedade em 1611, completou a sua instrução no Colégio Romano e em 1618 navegou de Portugal para a China juntamente com Nicolas Trigault. Depois de vários anos na China, Schall conquistou o favor do novo imperador Qing tornando-se o responsável do Tribunal de Matemáticas. Neste período os jesuítas tinham conseguido a admiração dos governantes chineses pela sua capacidade de prever fenómenos celestes com grande precisão. Assim, os seus conhecimentos e tecnologia astronómica era muito bem recebidos na corte imperial. Na sua nova função Schall introduziu várias reformas ao calendário e integrou novos métodos astronómicos mais precisos do que os utilizados previamente pelos matemáticos chineses. Contudo, Schall tornou-se também o responsável, ainda que talvez de forma indireta, de todo o trabalho de prognosticação que era uma das principais funções da instituição. Ele parece ter aceitado este papel, possivelmente para manter uma posição próxima corte. São conhecidos alguns dos prognósticos realizados por Schall: um prognóstico de um eclipse lunar, em 1647, e outro relativo a um parélio (ou falso sol) observado em 1657, ambos apresentados ao imperador. Ele terá baseado as suas interpretações utilizando um texto chinês do século VII, o Guanxiang waltzhan (Estudo sobre profecias [baseadas na] observação de fenómenos celestes), do qual ele meramente cita as interpretações dos fenómenos. A atitude de Schall em relação à divinação chinesa parece ser ambígua. Por um lado, ele condena, como qualquer jesuíta, as práticas supersticiosas dos chineses, mas por outro ele fez uso delas, legitimando algumas destas práticas calendáricas no seu texto Minli puzhu jiehuo (Comentário ao calendário popular), argumentando que elas resultavam da experiência dos antigos chineses e não deveriam ser completamente descartadas como superstição. Este mesmo argumento era muitas vezes usado para legitimar algumas componentes da Astrologia europeia, afirmando-se comumente que as associações de certas configurações celestes a determinados eventos resultava de centenas de anos de experiência de múltiplos praticantes. Esta postura de Schall está também presente na introdução ao seu trabalho Jiaoshi lizhi, onde aconselha a cautela e discernimento quando se interpreta fenómenos celestes e seus possíveis efeitos.

Nem todos os membros da Companhia foram tão tolerantes às práticas chinesas e ao envolvimento de Schall nelas, pois foi acusado pelos seus colegas jesuítas de praticar e sancionar práticas divinatórias proibidas pela lei Católica. Em 1645 o seu colega Gabriel de Magalhães acusou Schall de práticas supersticiosas na sua posição no Tribunal de Matemáticas. Esta polémica, intitulada de o «caso Schall» por Antonella Romano, ou a «disputa do almanaque» por Huang Yi-Long, prolongou-se por alguns anos, pondo em questão o quanto a acomodação levaria os jesuítas a apoiar, mesmo que indiretamente, a superstição e a idolatria. Schall defendeu-se afirmando que, por um lado, ele não era responsável pelas previsões do calendário e que estas eram feitas por outros oficiais chineses, e, por outro, que muitos aspectos do calendário chinês eram similares aos almanaques europeus que a Igreja não proibia. Em 1664 o Papa aceitou as explicações e Schall foi-lhe permitido manter a sua posição no Tribunal.

No entanto, a evidencia mais relevante da transmissão da Astrologia europeia para a China é um manual astrológico em chinês traduzido por Schall por volta de 1644, o Tianxue shiyong 天學實用 (Prática da Astrologia). Este tratado foi produzido para responder ao desejo do imperador de conhecer a interpretação astrológica das várias confgurações das estrelas e planetas. Numa missiva ao imperador, Schall afrma que este livro era usado como um texto de ensino nas escolas ocidentais e logo que estivesse pronto seria utilizado para substituir os métodos de divinação chinesa no Tribunal das Matemáticas com um novo método astrológico. Assim, Schall propõe a tradução completa deste manual astrológico ocidental ao imperador:

Premièrement, si l’on observe les mouvements du Soleil, de la Lune et des Cinq Planètes sans comprendre de quelle manière ils sont corrélés aux afaires humaines, il n’y aura pas moyen de préparer les secours pour afronter les sécheresses et les inondations, et si celles-ci adviennent, les soldats, les paysans, les médecins, les marchands seront dispersés. Dans mon pays d’Occident, il y a un ouvrage intitulé Pratique de l’astrologie, dont le premier livre a déjà été traduit, au prix d’un travail sans repos. Si Sa Majesté́ ordonnait que l’on terminât [la traduction], on pourrait dès lors utiliser la nouvelle méthode dans tous les commentaires, et cela pour le plus grand bénéfce des peuples de nombreux pays […].

Em primeiro lugar, se alguém observa os movimentos do Sol e da Lua, e dos cinco planetas sem qualquer entendimento do modo como eles se correlacionam com os assuntos humanos, não haverá maneira de preparar o socorro para lidar com secas e cheiras, e se estas ocorrerem, os soldados, os camponeses, os médicos, e os mercadores serão disperses. No meu país do Oeste há um livro intitulado Prática da Astrologia, cujo primeiro livro já foi traduzido, pelo preço de trabalho sem descanso. Se sua majestade ordenar que acabemos, poderíamos então usar este novo método em todos os comentários, e isto para benefício dos povos de muitos países […].

Esta tentativa de introduzir a Astrologia europeia no Tribunal parece não ter resultado, pois Schall mais tarde comenta que:

La méthode occidentale est entièrement occupée de calculs; les commentaires divinatoires faits par le Bureau suivent comme par le passé la méthode chinoise. Ce ne sont pas des applications de la méthode occidentale.

O método ocidental está completamente ocupado dos cálculos; os comentários divinatórios feitos pelo Tribunal, seguem, como no passado, o método chinês. Estas não são aplicações do método ocidental.

(Tradução do autor)

Contudo, a primeira parte da tradução, o Tianxue shiyong, foi finalizada e impressa e parece ter sido bem aceite pelos chineses, existindo testemunhos do seu uso até às décadas finais do século XVII.

O Tianxue shiyong apenas oferece os fundamentos da Astrologia ocidental: a natureza dos planetas, a natureza das estrelas fixas, condições acidentais dos planetas, dignidades essenciais, a natureza dos signos do zodíaco, as doze casas, configurações e aspectos dos planetas (ver tabela). Este conteúdo é consistente com a afirmação de Schall de que apenas a primeira parte estava completa uma vez que contém apenas os princípios teóricos da Astrologia que compõem a primeira parte de qualquer manual de Astrologia.

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A fonte para este texto tem sido apontada como sendo o Quadripartitum ou Tetrabiblos de Ptolomeu (c.100– c.170), uma das obras basilares da Astrologia europeia, mas incorporando algumas adaptações ou, alternativamente, a popular Introdução à arte dos juízos das estrelas de Alcabitius. No entanto, neste período, esta afirmação é válida para quase todas as obras de introdução à Astrologia. Ptolomeu não é a única fonte das doutrinas astrológicas ocidentais, mas é sem dúvida uma das principais. Ainda mais, o revivalismo dos autores gregos do Renascimento do século XV fez da obra de Ptolomeu o modelo para a maioria dos textos de Astrologia modernos. Quase todos os autores dos séculos XVI e XVII apresentam a doutrina astrológica de acordo com Ptolomeu tanto quanto possível. Existem, contudo, muitas variações e poucos livros seguem fielmente a mesma ordem de capítulos do Quadripartitum. As maiores semelhanças ocorrem no interior dos capítulos, na ordem pela qual os vários conceitos são apresentados. Por exemplo, no capítulo de dignidades essenciais é frequente a inclusão dos conceitos de «carpento» e «almugea» tal como delineado no Quadripartitum (livro I, capítulo 23), sendo estes geralmente discutidos fora deste contexto nas obras medievais. O desvio mais notório a Ptolomeu dá-se invariavelmente no capítulo relativo às doze casas celestes, que Ptolomeu, ao contrário de quase todas as obras astrológicas, não inclui no seu tratado.

Portanto, não é surpresa verificar que o Tianxue shiyong segue de perto a ordem de exposição ptolemaica. No entanto, este texto está longe de ser uma simples tradução de Ptolemeu. O desafio está em precisar qual a sua fonte original, que Schall afirma ser um texto comumente usado para ensinar Astrologia. A primeira dificuldade encontra-se no fato do Tianxue shiyong ser apenas um livro de conceitos astrológicos fundamentais, pois estes são geralmente apresentados da mesma forma em quase todos os livros astrológicos. Adicionalmente, é geralmente assumido que este e outros textos semelhantes são traduções. Mas é igualmente provável que sejam textos originais criados a partir dos conhecimentos que qualquer astrónomo deste período teria deste assunto e complementados com notas e citações de outros autores. Um exemplo desta prática, também de autoria jesuíta, são as lições de Astrologia do Colégio de Santo Antão em Lisboa. Tendo isto em conta, e considerando que é necessário mais pesquisa, a forma como os capítulos do Tianxue shiyong estão organizados, assim como o seu conteúdo, é muito semelhante ao Isagoge in Iudiciariam Astrologiam de Antonio Giovanni Magini, um autor com uma relação próxima com o colégio jesuíta romano. Esta obra muito infuente, publicada como um suplemento das suas Ephemerides coelestium motuum (1582), oferece uma introdução aos princípios da Astrologia, tornando-a uma obra de referência frequentemente citada por outros autores. Entre estes encontram-se autores jesuítas como Paul Guldin, Giovanni Battista Riccioli, Hugh Sempill e Kaspar Schott, bem as lições astrológicas do Colégio de Santo Antão de Lisboa de João Delgado, Sebastião Dias e Simon Fallon cujos capítulos introdutórios seguem uma ordem semelhante à de Magini. Adicionalmente, os textos astrológicos do século XVII, por uma questão de modernidade, mostram uma nítida preferência por citar obras recentes invés de fontes medievais mais antigas, como Alcabitius (apesar da doutrina ser em tudo semelhante). As restantes partes por publicar do Tian-xue shiyong teriam providenciado mais dados relativo à sua fonte. Tendo em conta o modelo de livro astrológico deste período, estas partes adicionais seriam sobre astro-meteorologia, natividades (com o foco na medicina) e, possivelmente, eleições de teor agrícola e médico. Esta é a mesma estrutura seguida pelas lições de Santo Antão e as breves apresentações da Astrologia de Sempill e Schott.

É importante notar para futuras investigações que o Tianxue shiyong foi adaptado para incluir algumas referências a sistemas astronómicos e astrológicos chineses, como por exemplo no capítulo das constelações, onde são referenciadas as divisões típicas da astronomia chinesa. Este é um argumento adicional para este texto não ser uma mera tradução, sendo também revelador do conhecimento astrológico de Schall von Bell e da sua estratégia para implantar os conhecimentos astrológicos europeus na China. Seguindo as instruções do seu livro, as práticas chinesas tidas como maioritariamente supersticiosas pelos cristãos seriam substituídas por uma Astrologia matemática com base em causas naturais (ou seja, científica), livre de qualquer componente moralmente dúbia para a Igreja.

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Vários diagramas do Tianxue shiyong seguem a mesma forma de representação dos manuais de Astrologia europeus. Estes incluem tabelas de dignidades essenciais, o diagrama das doze casas astrológicas (fig. 2) e um diagrama dos aspectos (fig. 3). Os cinco planetas (excluído o Sol e a Lua) têm os nomes dos cinco elementos: a estrela da água (Mercúrio), a estrela de metal (Vénus), a estrela de fogo (Marte), a estrela de madeira (Júpiter) e a estrela de terra (Saturno).

Smogulecki e o ritmo dos céus

Como livro de Astrologia europeia, o Tianxue shiyong, não é caso único. Outra obra astrológica foi produzida na China em parceria com o jesuíta polaco Jan Mikołaj Smogulecki. De origem nobre, Smogulecki tornou-se membro da Companhia de Jesus por volta de 1636, seguindo para Oriente como missionário em 1645 onde ensinou Matemática e Astronomia. Em 1652 Smogulecki colaborou com o académico chinês Xue Fengzuo na tradução de textos astrológicos europeus, que combinados com o trabalho de Fengzuo, resultaram no Tianbu zhenyuan 天歩眞原 (Verdadeiros princípios do ritmo dos céus). Um dos principais motivos que levou Fezgzuo a interessar-se por Astrologia europeia parece ter sido a sua necessidade de encontrar um método de prognosticação que pudesse substituir o método dos cinco planetas (wuxing 五 星) que ele considerava pouco preciso.

O texto tem várias secções de astronomia e quatro de Astrologia: Wei-xing xingqing bu 緯星性情部 («Sobre a natureza dos planetas»), Shijie bu 世界部 («Sobre o Mundo»), Xuanze bu 選擇部 («Sobre eleições»), e Renming bu 人命部 («Sobre o destino humano»). Esta estrutura é típica de um manual de Astrologia, contendo primeiro os princípios fundamentais seguidos dos tópicos principais: astro-meteorologia, eleições e natividades. A última secção, o Renming bu, é a mais extensa e foi identificado por Nicolas Standaert como a tradução do comentário ao Quadripartitum de Girolamo Cardano. Standaert sugere também a possibilidade das restantes secções terem como fonte Ptolomeu ou Cardano, ou terem sido compostas por Smogulecki ele próprio. De fato, tal como acima referido, existem muitos textos astrológicos que foram compostos a partir do conhecimento do autor combinado com citações ou segmentos copiados de autores reconhecidos com autoridades da disciplina. Apesar de mais pesquisa ser necessária, é razoável supor que este seja também o caso de algumas partes do Tianbu zhenyuan. Tal como já apontado relativamente à fonte do Tianxue shiyong, é muitas vezes difícil identificar a fonte exata, se esta existir. A participação de Smogulecki neste livro tem sido ocasionalmente questionada com base na suposição de que um jesuíta jamais se envolveria com Astrologia. Além do mais, uma análise geral das várias partes do livro sugere que os segmentos astrológicos incluem, primariamente, a chamada Astrologia natural, lícita mesmo para um jesuíta.

O Tianbu zhenyuan tornou-se um texto astrológico popular na China com múltiplas edições e adendas, e influenciou vários outros textos na China e em regiões vizinhas como a Coreia. Han Qi considera que o Tianbu zhenyuan teve uma disseminação mais popular, o que explica o seu maior impacto. Por outro lado, o Tianxue shiyong, terá circulado principalmente entre a elite, sendo menos citado e consequentemente menos influente.

Estes dois livros parecem ser os únicos manuais de Astrologia de autoria jesuíta alguma vez impressos. Não é sem surpresa que eles tenham sido produzidos fora do ambiente mais restritivo da Europa onde a Companhia terá barrado qualquer texto puramente astrológico de ser publicado por um dos seus membros. Na China estas regras foram acomodadas para lidar com uma percepção cultural da divinação e da Astrologia muito diferentes, e ao mesmo tempo introduzir na China a Astrologia europeia, lícita e mais científica. Apesar de serem uma exceção, estes livros integram-se perfeitamente no estilo da literatura científica produzida pelos jesuítas para as audiências chinesas.

Os relatórios astrológicos de Verbiest

Uma referência, embora breve, deve ser feita à contribuição de Ferdinand Verbiest para a disseminação da Astrologia europeia na China. De origem flamenga, Verbiest juntou-se à Companhia em 1641, tendo completado os seus estudos em Roma. Embora a sua intenção fosse partir para o Novo Mundo, foi antes enviado para a China em 1658. Devido às suas aptidões como astrónomo tornou-se o responsável pelo Tribunal das Matemáticas, seguindo os passos do seu mentor, Schall von Bell. Como parte dos seus deveres, Verbiest tinha de submeter ao Imperador prognósticos astro-meteorológicos, tarefa que o próprio descreve no décimo do capítulo de Astronomia Europeia, mencionando a sua dificuldade e como poderia ter consequências negativas para a reputação do astrólogo:

Para além do cálculo anual dos três livros-calendário acima referidos, outro não pequena responsabilidade foi-me também conferida. A cada meio quarto do ano (cada intervalo de 45 dias, quando as condições meteorológicas mudam), portanto 8 vezes por ano, tenho de computar a figura do firmamento. Eu tenho também de prognosticar muito meticulosamente a disposição futura dos céus a um determinado meio quarto e a mudança no ar, incluindo as suas consequências como peste e outras doenças, escassez de alimentos, etc., indicando também os dias em que vento, relâmpagos, chuva, neve e outros fenómenos semelhantes vão aparecer. Tudo isto deve ser apresentado ao Imperador por meio de uma petição que é depois delegada ao colégio dos Ko-lao para ser preenchida. Qualquer um compreenderá que a dificuldade desta tarefa, e o perigo ao qual a reputação de um bom astrólogo é sujeita, a não ser que ele opera com o maior cuidado, especialmente quando lidando com pessoas que são tão ignorantes de Astrologia, como são acostumadas a outras coisas e dotadas de aguçada inteligência.

Nestes relatórios Verbiest utiliza o corpus astrológico europeu baseado nas lunações, ingressos e eclipses, que Smogulecki incluiu na secção Shijie bu do Tianbu zhenyuan e igualmente presentes nas lições astrológicas de Santo Antão. Tal como os seus colegas, Verbiest estava a praticar Astrologia Natural, considerada licita pela Igreja, evidenciando o quanto ela fazia parte da sua educação e das suas ferramentas enquanto astrónomo e matemático.

Fig. 4 – Figura astrológica de um dos relatórios de Verbiest.

Em conclusão, a China oferece um importante exemplo quanto ao papel da Astrologia nas trocas científicas dos jesuítas. Aqui a sua relevância é extremamente visível e contém a exceção para a ausência de texto astrológicos práticos de autoria jesuíta. O Tianxue shiyong e o Tianbu zhenyuan são a clara indicação do conhecimento teórico e da aplicação prática da Astrologia por académicos jesuítas. Estes dois impressos mostram como os jesuítas compreenderam a importância da Astrologia como um conhecimento de interesse intercultural, e, portanto, uma valiosa moeda de troca nos seus intercâmbios. Esta disseminação da Astrologia europeia pelos jesuítas tornou-se uma grande influência na produção de outros textos nas décadas seguintes e modelou a prática astrológica chinesa. Teve também impacto nas perspectivas filosóficas relativas à divinação. Xu Guangqi, um estudioso convertido ao cristianismo que trabalhou diretamente com Ricci e Schall, adoptou o ponto de vista ocidental e considerou que o uso da Astrologia para previsão de calamidades e dia propícios deveria ser proibido por lei, devendo apenas ser aplicada à prognosticação meteorológica e para prescrição médica. Esta é obviamente uma apologia à Astrologia Natural, tal como considerada pelos europeus e trazida para a China pelos jesuítas. Adicionalmente, esta afirmação de Xu Guangqi é em si mesmo um forte testemunho de que a Astrologia era parte dos ensinamentos jesuítas, talvez até a desde que Ricci estabeleceu uma presença permanente na corte imperial e iniciou este intercâmbio. A participação de Smogulecki no Tianbu zhenyuan teve também um impacto considerável. Primeiramente no editor do texto, Xue Fengzuo, que escolhe incluir a Astrologia europeia como um substituto de maior precisão para práticas tradicionais chinesas. Em segundo lugar na produção de outras obras chinesas sobre Astrologia europeia na china e regiões vizinhas, como a Coreia, durante os séculos XVII e XVIII.

É frequentemente assumido pela narrativa historiográfica (especialmente em trabalhos mais antigos) que os jesuítas apenas publicaram textos astrológicos para agradar os leitores chineses, e como uma estratégia para alcançar uma cultura onde a prognosticação e divinação eram parte integral da vida. É verdade que o uso da Astrologia (e de outros ramos do conhecimento) para servir propósitos políticos é prática recorrente, e parece claro que nem Ricci, nem Schall ou Verbiest são totalmente inocentes a este respeito. No entanto, consideradas as evidências de como a Astrologia fazia parte da cultura e da aprendizagem de muitos astrónomos jesuítas, não há razão para contestar que, junto com a astronomia, eles também ensinaram a Astrologia. Assim sendo, e em particular no caso da China, o contexto cultural, o processo de acomodação, e a distância à Europa e às regulamentações das suas instituições, facilitou a emergência deste conhecimento astrológico e da sua prática, levando à publicação de impressos que jamais vieram à luz na Europa.

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