Como Domínios da “Sabedoria” Mesopotâmica
Simo Parpola
University of Helsinki
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Tradução:
César Augusto – Astrólogo
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O atual modo de falar da assiriologia sobre “astrologia e astronomia mesopotâmicas”, do qual eu mesmo sou tão culpado quanto qualquer outra pessoa, envolve uma dificuldade que pode criar mal-entendidos e um obstáculo potencial em nossas tentativas de entender a natureza da ciência mesopotâmica em geral.
Não há, é claro, nada de errado em aplicar os termos “astrologia” e “astronomia” à Mesopotâmia antiga, desde que saibamos exatamente o que esses dois termos significam e por que estamos usando-os. Pode-se perfeitamente falar da “série de presságios astrológicos Enuma Anu Enlil“, por exemplo, referindo-se a uma coleção de presságios contendo apenas material astrológico do nosso ponto de vista. Também se pode falar de “textos cuneiformes astronômicos”, referindo-se ao tipo de textos que Neugebauer publicou em seu ACT.
O perigo está no fato de que, no mundo de hoje, astronomia e astrologia são disciplinas separadas com conotações e valores inteiramente diferentes. Uma é uma ciência progressiva; a outra é uma superstição primitiva. Ao falar de astrologia e astronomia mesopotâmicas, projetamos, talvez involuntariamente, essa noção de duas disciplinas separadas para o passado e criamos um problema de definição: o que exatamente eram a astrologia e a astronomia mesopotâmicas, e qual era a relação entre elas?
Sei, é claro, que muitos assiriólogos não concordariam em separar astrologia e astronomia na antiga Mesopotâmia, mas de fato existe uma confusão substancial sobre o assunto, mesmo entre especialistas, sem mencionar os leigos. Certamente também há uma forte tendência em considerar a astronomia matemática mesopotâmica como o ápice da ciência mesopotâmica e em pensar que as pessoas que a praticavam eram de alguma forma diferentes dos astrólogos profissionais. Na prática, o estudo da astronomia e astrologia mesopotâmicas há muito segue direções separadas, de modo que especialistas em textos astronômicos mesopotâmicos não necessariamente sabem muito sobre a astrologia mesopotâmica.
Essa divisão tem um perigo particular. Ela tende a dividir os textos astrológicos e astronômicos em duas categorias separadas, e as inferências feitas sobre esses dois grupos tendem a ser fortemente tendenciosas, dependendo dos textos que por acaso sejam atribuídos ou atribuíveis a eles. Uma esmagadora maioria dos textos tradicionalmente atribuídos à categoria de “astrologia mesopotâmica“ são coleções de presságios, e por essa razão a astrologia mesopotâmica é frequentemente referida como “astrologia de presságios” ou, colocando ênfase nas prótases dos presságios, “astrologia observacional”. É claro que se reconhece que existem outros tipos de textos astrológicos, mas o fato é que a astrologia mesopotâmica ainda é – erroneamente, em minha opinião – bastante contrastada com sistemas astrológicos posteriores (helenístico, medieval, islâmico), que são vistos como desenvolvimentos ou transformações adicionais do primeiro, mas, no entanto, como algo essencialmente diferente.
Acho lamentável que tal noção tenha se tornado tão popular, porque, em certo sentido, falar de “astrologia de presságios” tende a reduzir a astrologia mesopotâmica a um sistema bastante mecânico, com pouca imaginação em sua concepção. Partindo do pressuposto de que um fenômeno celestial observado provoca um fenômeno na Terra, compilaram-se enormes coleções de presságios registrando praticamente tudo o que acontece nos céus e anotando tudo o que se pode supor ter ocorrido como consequência na Terra. Não é necessário muito esforço intelectual para construir tais coleções.
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Hoje proponho uma abordagem um pouco diferente para toda essa questão e, em vez de me concentrar nos textos que temos, convencionalmente divididos nas duas categorias mencionadas, farei uma análise mais aprofundada das pessoas que realmente produziram esses textos.
Há muito se observou que as pessoas profissionalmente envolvidas em fazer observações astronômicas na Mesopotâmia do primeiro milênio eram chamadas de tupšar Enūma Anu Enlil, literalmente “escribas de Enūma-Anu-Enlil”. Enūma Anu Enlil era o nome da grande série de presságios astrológicos, de modo que esse título efetivamente significa “observador e intérprete de presságios celestiais”, sendo, assim, o equivalente funcional do nosso “astrólogo”.
Agora, os títulos profissionais das pessoas que copiavam e elaboravam textos astronômicos matemáticos avançados, efemérides planetárias e lunares, etc., podem ser, em grande parte, estabelecidos a partir dos colofões desses textos. Não surpreendentemente, como sugerido pelo título tupšar Enūma Anu Enlil, esses “astrônomos” revelam-se regularmente como astrólogos praticantes, possuindo uma literatura astrológica que varia de cópias e comentários sobre Enūma Anu Enlil a textos horoscópicos. Mas, surpreendentemente, o título tupšar Enūma Anu Enlil em si não é nada proeminente nos colofões. Praticamente todos os proprietários das tábuas astrológicas-astronômicas selêucidas se identificam como representantes de duas profissões totalmente “não astronômicas” — kalû, “sacerdotes de lamentação”, e āšipu, “exorcistas”.
É verdade que ocasionalmente também se autodenominam tupšar Enūma Anu Enlil, o termo normal para “astrólogo”. Contudo, é importante notar que, sempre que uma pessoa com dois títulos profissionais opta por omitir seu outro título, é o título de “astrólogo” que ele deixa de lado, enquanto os títulos de “sacerdote de lamentação” ou “exorcista” nunca são omitidos.
Há um ponto adicional nesses colofões que merece comentário neste contexto, e que se refere às genealogias dos proprietários das tábuas. Como é bem sabido, praticamente todas as famílias de escribas selêucidas traçavam suas origens a partir de ancestrais epônimos que viveram em um passado distante. E gostaria de destacar aqui um ancestral em particular encontrado nos colofões astrológicos-astronômicos: Sîn-leqi-unninni, também conhecido como o editor da versão padrão babilônica do épico de Gilgamesh e, em outros lugares, intitulado “exorcista”. A questão é que, se o título de “exorcista” não concorda particularmente bem com a nossa ideia de um astrônomo, certamente não se encaixa melhor com nossas ideias preconcebidas de quem deveria ser o editor de uma obra filosófica importante como o épico de Gilgamesh. Isso sublinha a necessidade de se ter extrema cautela ao aplicar as noções modernas de “astronomia” e “filosofia” à antiga Mesopotâmia.
Ao deixar a era Selêucida e voltando no tempo para o período Neo-Assírio (Sargônida), encontramos uma situação notavelmente semelhante. Desse período, temos um grande corpus de cartas e relatórios astrológicos enviados ao rei e, como F. Rochberg-Halton apontou recentemente, esses despachos não foram escritos exclusivamente por “escribas de Enuma-Anu-Enlil”; os remetentes também incluem “exorcistas” e “sacerdotes de lamentações”. Outra semelhança com o período Selêucida são as genealogias dos autores dos relatórios. Os estudiosos assírios também traçavam suas famílias até tempos antigos e, em grande parte, embora nem sempre, perpetuavam as mesmas profissões de seus pais e ancestrais.
Agora, eu não gostaria de exagerar o fato de que pessoas como exorcistas e sacerdotes de lamentações são encontradas entre os remetentes dos relatórios sargônidas; afinal, a maioria das cartas e relatórios sargônidas de conteúdo astrológico foram escritos por “escribas” ou “astrólogos”. No entanto, o fato existe e requer uma explicação. Por que exorcistas profissionais e sacerdotes de lamentações se ocupavam com questões de astrologia e astronomia observacional? Antes de sugerir uma resposta, posso notar que há evidências de cooperação extensiva entre especialistas acadêmicos na correspondência real sargônida e em outros textos contemporâneos. Assim, encontram-se especialistas em diferentes campos coautores de cartas ao rei, por exemplo, por conta de um eclipse lunar, e esses grupos de especialistas geralmente incluem as três profissões já mencionadas: um astrólogo profissional, um sacerdote de lamentações profissional e um exorcista profissional. Outros tipos de especialistas acadêmicos também poderiam coautorar cartas ao rei, por exemplo, médicos escrevendo cartas juntamente com exorcistas.
Além disso, a cooperação acadêmica é descrita ou aludida em várias cartas. Encontramos um exorcista realizando ritos apotropaicos por conta de um presságio astrológico, enquanto um sacerdote de lamentações realiza um conjunto diferente de ritos pelo mesmo presságio, ou um haruspício (bārû) realizando uma extispícia devido a uma doença real cuja natureza não pôde ser determinada pelos médicos que atendiam à saúde do rei. Em outros textos contemporâneos, aprendemos que o treinamento de especialistas acadêmicos envolvia o domínio do conhecimento profissional de várias artes diferentes. Por exemplo, um texto apelidado de “um currículo para exorcistas” especifica a literatura que um exorcista tinha que dominar para se tornar totalmente treinado, e essa lista inclui coleções de presságios astrológicos e terrestres – em outras palavras, coisas que pertencem propriamente ao domínio dos “escribas-astrólogos”. Inversamente, bibliotecas privadas de haruspícios poderiam conter numerosas tábuas exorcísticas.
Em suma, temos evidências claras tanto nos tempos sargônidas quanto selêucidas de um “sistema” bem estabelecido no qual especialistas em diferentes ramos do conhecimento mesopotâmico cooperavam para um propósito comum. O treinamento desses especialistas envolvia erudição em assuntos que claramente excediam os limites de seus campos individuais – poderia-se com razão falar de uma educação interdisciplinar. À luz disso, a questão deixada pendente acima deveria, na verdade, ser reformulada da seguinte maneira: Que propósito essa cooperação e educação interdisciplinares serviam? Por que um especialista em cantar lamentações teria que dominar textos astrológicos ou elaborar efemérides para a lua e os planetas?
Acredito que a resposta seja que as habilidades desses estudiosos eram em grande medida complementares e que suas respectivas disciplinas e campos representavam partes de um todo maior, que eu, em conformidade com a terminologia mesopotâmica nativa, proponho chamar de “sabedoria”. Em minha opinião, é essencial considerar essas disciplinas não isoladamente, mas como partes integrantes desse todo maior, e perceber que, como partes de um sistema de pensamento integrado, as diferentes subdisciplinas da “sabedoria” estavam em constante contato e interação umas com as outras.
Deve-se notar, neste contexto, que os estudiosos mencionados na correspondência real sargônica não eram apenas “adivinhos”, “magos” ou “feiticeiros” comuns. Eles representavam a elite intelectual de seu tempo e não só isso: eram os melhores especialistas absolutos nas disciplinas que representavam. Eles possuíam títulos que os identificavam como chefes (rabi, ht. “o maior”) de diferentes grupos de especialistas eruditos empregados na corte real – em outras palavras, pode-se dizer que eram os “rabinos” ou “sábios” (Daniel 5: 7-8) de seu tempo.
Este ponto deve ser enfatizado porque é essencial fazer uma distinção entre esses “rabinos”, que representavam o conhecimento mais elevado em seus campos, e os praticantes de nível inferior das mesmas disciplinas. Os “gabbis” tinham um propósito particular a cumprir na sociedade mesopotâmica. Eles estavam ligados à corte real para proteger e aconselhar o rei porque eles, como seus “predecessores”, os míticos Sete Sábios que serviam aos reis antediluvianos, possuíam certo conhecimento secreto de importância vital para o rei, que outras pessoas não possuíam.
Para entender por que o rei precisava estar rodeado por tais homens, devemos considerar brevemente o status do rei na sociedade mesopotâmica. Ele era um elo entre o deus e o homem, uma espécie de deus na terra, e, como tal, estava sujeito a exigências de perfeição que não eram impostas a nenhum outro indivíduo na sociedade. Como representante de deus na terra, sua conduta determinava em grande parte a fortuna do estado. Ele não podia se comportar de qualquer maneira; sua conduta tinha que corresponder ao modo como os deuses desejavam que ele agisse.
Os estudiosos tornaram-se indispensáveis quando o rei precisava ser aconselhado sobre sua conduta. Ele próprio não era capaz de compreender os caminhos dos deuses ou a linguagem que eles falavam. Somente um punhado de homens eruditos, treinados para ler os sinais enviados pelos deuses, podia fazer isso.
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- Astronomical Diares and Related Texts from Babylonia Vol. IV
- Astronomical Diares and Related Texts from Babylonia Vol. V
- Astronomical Diares and Related Texts from Babylonia Vol. VII
Os oradores anteriores já mencionaram o elemento da religião na astrologia mesopotâmica e destacaram que não se pode falar de religião astral nesse contexto, porque as estrelas em si não eram deuses, embora fossem consideradas divinas. Mas isso não significa que a religião não desempenhou nenhum papel no trabalho dos especialistas que interpretavam os sinais dos deuses. Eu diria exatamente o contrário.
Deve-se estar muito ciente do fato de que a astrologia de presságios, no sentido de um sistema mecânico de sinais celestiais correlacionados de forma aleatória com eventos mundanos, não existia na Mesopotâmia. Sempre havia uma mensagem nos sinais – eles eram sinais significativos, e não apenas produtores de certos efeitos aleatórios na terra.
Eu entendo a série Enuma Anu Enlil principalmente como uma coleção científica de sinais enviados pelos deuses ao rei. Esses sinais foram enviados para influenciar a conduta do rei, indicando as ações que ele deveria tomar, e existiam apenas com esse propósito: para que os deuses pudessem expressar seu prazer ou descontentamento com a conduta do rei através de um sistema de sinais que podiam ser interpretados e respondidos.
Na correspondência real da dinastia Sargônida, há várias referências a presságios enviados ao rei pelos deuses com o intuito de “abrir seus ouvidos”, o que significa que o rei deveria ouvir o que os deuses estavam dizendo. Além disso, temos uma referência que considero muito importante, onde, após a discussão de um presságio e sua interpretação, é declarado que o rei deveria “ficar atento”. O presságio em questão não é astrológico, embora esteja incluído no Enuma Anu Enlil. Ele se refere a um terremoto e é explicado como um sinal de que o rei será difamado entre seus magnatas. Para evitar isso, ele deveria realizar um ritual namburbi para afastar o presságio, porque “o deus que criou o terremoto, Ea, também havia criado um ritual apotropaico contra ele”. Mas, após isso, vem a afirmação de que o rei deveria, no entanto, “ficar atento”. Eu entendo isso como uma implicação de que ele precisava revisar sua conduta.
Uma conclusão similar pode ser tirada da consideração sobre a atitude em relação aos eclipses lunares ou solares que prenunciam a morte do rei. Havia uma maneira de evitar o destino previsto, que era entronizando um rei substituto que eventualmente seria morto. As discussões sobre esse ritual geralmente se satisfizeram em explicá-lo como reflexo de uma lógica bastante primitiva:
– Pessoas supersticiosas estabelecem que a vida do rei está sendo ameaçada por forças sobrenaturais;
– O rei igualmente supersticioso abdica de seu trono e entroniza um substituto, que é morto em seu lugar;
– As forças sobrenaturais ficam satisfeitas com isso, e o rei pode reassumir seu papel sem precisar temer nada.
Mas eu acho que essa interpretação está completamente errada, porque a mensagem “o rei vai morrer” na verdade significava que o rei iria morrer porque havia pecado. Visto sob essa luz, entronizar um substituto simplesmente não seria suficiente, porque isso não resolvia o problema básico, ou seja, que a punição — a morte do rei — havia sido imposta por causa de sua conduta pessoal. Portanto, tinha que ser uma punição pessoal.
Por essa razão, a personalidade do rei era magicamente transferida para o substituto. Ele assumia a pessoa e os pecados do rei e morria como ele, enquanto o próprio rei se tornava uma pessoa diferente através de um processo chamado “casa de ablução” (bit rimki), um ciclo de rituais apotropaicos realizados em conexão com o eclipse lunar. O propósito desse ciclo era purificar a pessoa do rei. Ele vestia novas vestes, lavava seus pecados e confessava que havia pecado. Inseridos nesse ciclo estão belos hinos e orações que se assemelham muito aos salmos bíblicos. Na verdade, alguns deles são tão belos que, em tradução, poderiam facilmente ser confundidos com versos bíblicos. Neles, o rei diz que não sabe como pecou, apenas sabe que pecou, e se arrepende e pede perdão.
O ritual do terremoto discutido anteriormente tem uma lógica semelhante, pois o rei passa por um ritual de barbear no qual seus crescimentos corporais (cabelos e unhas), que representam seu ego pecaminoso, são raspados e colocados em uma garrafa, que é então selada e levada para o território inimigo. Aqui, de fato, temos o espírito maligno desse poderoso ser, o rei, quase um semideus, forçado a uma prisão eterna em uma garrafa selada, enquanto o novo eu purificado do rei é capacitado para retomar suas funções. Acredito seriamente que esse ritual de engarrafamento tenha dado origem às inúmeras histórias sobre o espírito da garrafa encontradas nas Mil e Uma Noites.
Mas voltemos à natureza da coleção de presságios astrológicos. Ocultada sob a máscara de presságios monótonos, estereotipados e repetitivos, sua natureza religiosa é facilmente negligenciada. Deve-se notar, entretanto, que o início desta composição define explicitamente como um texto religioso. Suas linhas introdutórias, que se referem ao estabelecimento da ordem divina por Anu, Enlil e Ea, estabelecem o tom para toda a composição. Um inconfundível tom religioso também é encontrado em outras coleções de presságios como o Šumma Ālu, cujas primeiras linhas revelam a atitude moral de seu compilador:
“Se uma cidade está situada em uma colina, para os habitantes, essa cidade será deprimida. Se uma cidade está situada (modestamente) em um vale, essa cidade será elevada.”
A mesma atitude básica é encontrada ao longo do texto:
“Se a estrutura da casa por fora é atraente, ela não durará; Se a estrutura de uma casa é simples, seu habitante será feliz.”

Ilustração de uma representação do Grande Dilúvio da Epopéia de Gilgamesh
Por que estou enfatizando esse tom moral dos textos de presságios? Simplesmente porque acho importante reconhecer esses textos pelo que realmente são: textos religiosos que pertencem a um todo canonizado comparável às Escrituras Sagradas. É indicativo de seu caráter como escritos sagrados que sua origem tenha sido atribuída à revelação divina, e que sempre que são citados ou referidos, isso é feito de maneira muito semelhante à forma como os textos bíblicos são mencionados e citados na Bíblia.
De um modo geral, considero que o elemento religioso na ciência mesopotâmica deve ser enfatizado muito mais do que tem sido comum nos últimos tempos. Se eu tivesse que definir a “sabedoria” mesopotâmica de maneira simples, eu a definiria como uma extensão da religião mesopotâmica. Deve ser claramente reconhecido que, com a ciência mesopotâmica, estamos lidando com um sistema de pensamento sofisticado, bem organizado e abrangente, que cresceu em grande parte da necessidade de aconselhar e proteger o rei em sua capacidade de representante terrestre dos deuses. Não poderia ter se desenvolvido como se desenvolveu sem esse tipo de contexto. Qualquer que tenha sido o desenvolvimento que sofreu e de que forma esse desenvolvimento tenha terminado, foi um processo longo e gradual que se estendeu por milênios, no qual todo o sistema com sua visão de mundo integrada foi sendo lentamente e continuamente refinado, ampliado e revisado.
Em um nível micro, esse processo é espelhado pelo desenvolvimento da astronomia matemática, que também não foi a criação de um único indivíduo, mas o produto final de um longo desenvolvimento no qual muitas gerações de estudiosos concorrentes participaram — um processo comparável ao modo como o computador pessoal foi aperfeiçoado. Visto como um todo, a “sabedoria” mesopotâmica exibe uma série de características distintivas atribuíveis em grande parte ao seu contexto histórico. Uma característica importante é que seu núcleo teórico — summa sapientia — era guardado com ciúmes pelos iniciados e mantido em segredo dos forasteiros. Nenhuma exposição completa do “sistema” sobreviveu pelo simples fato de que nunca foi transcrita. Temos alguns vislumbres disso em alguns poucos textos esotéricos definidos como “segredo dos grandes deuses, apenas para o iniciado” em seus colofões, e, reveladoramente, tais textos também incluem textos de astronomia matemática.
Pode-se perguntar como esse conhecimento esotérico poderia ser efetivamente transmitido se fosse mantido de forma oral e oculto das massas. A resposta é que ele era transmitido exatamente da maneira especificada nos colofões dos textos matemáticos e astronômicos já discutidos, ou seja, de pai para filho, dentro de algumas antigas famílias de escribas. Um pai que sabia que seu filho continuaria em sua posição transmitiria seu conhecimento ao filho no devido tempo, mantendo-o em segredo de outras pessoas, com exceção de alguns colegas ou discípulos iniciados.
Outra característica dessa ciência esotérica era que ela era essencialmente mística e especulativa. As questões que essa “sabedoria” tratava eram assuntos que, por sua própria natureza, exigiam muita especulação, como o mundo metafísico dos deuses. É preciso saber como ele é e, para isso, é necessário especular.
Finalmente, a “sabedoria” mesopotâmica pode ser caracterizada como um sistema notavelmente harmonioso, porque, ao longo dos muitos milênios em que se desenvolveu, ela avançou em direção a uma sistematização cada vez maior, pode-se até dizer simetria. Trabalhos anteriores mencionaram certas características básicas na exegese de presságios mesopotâmicos, como o sistema polar de opostos e assim por diante. Essas características, que implicam na existência de uma teoria hermenêutica bem definida escondida sob a cobertura não comprometida de presságios estereotipados, devem ser submetidas a um estudo cuidadoso e abrangente.
É evidente que os estudiosos mesopotâmicos atribuíam grande importância a questões associadas aos conceitos de harmonia e simetria. O mundo dos números, incluindo números místicos e a matemática em geral, desempenhava um papel dominante em seu pensamento e métodos hermenêuticos. Os textos esotéricos mesopotâmicos fazem amplo uso de duas técnicas bem conhecidas de interpretação, conhecidas como gematria e notarikon, que envolvem estabelecer relações entre palavras com base etimológica, buscar relações entre números e palavras, reinterpretar passagens escritas em escrita cuneiforme atribuindo novos valores aos sinais que compunham uma expressão, e assim por diante. Essas técnicas são bem conhecidas na Cabala judaica e, como os próprios termos são palavras emprestadas do grego, também devem ter sido populares nas filosofias místicas helenísticas.
Acredito que os assiriólogos deveriam examinar seriamente a Cabala, porque esse conhecimento esotérico não apenas fornece o paralelo mais próximo conhecido da “sabedoria” mesopotâmica, mas também é muito provável que tenha se originado na Mesopotâmia. Permitam-me apenas recordar alguns fatos básicos sobre a Cabala para mostrar a base sobre a qual se sustenta a comparação. Essencialmente, a Cabala é uma extensão da religião judaica. É uma forma mística e especulativa do judaísmo, mas contém muita astrologia e magia, assim como a “sabedoria” mesopotâmica. Acima de tudo, as doutrinas cabalísticas sempre foram estritamente esotéricas e, idealmente, só poderiam ser transmitidas de mestre a discípulo ou de pai para filho oralmente. Por essa razão, nenhuma informação direta sobre a Cabala está disponível até relativamente tarde (século X d.C.). O que essa analogia significa para o nosso entendimento da astrologia e astronomia mesopotâmicas em particular? Acredito que significa muito, embora não tenha certeza se isso resolverá o problema terminológico mencionado no início deste artigo. Se a astronomia, a astrologia e os outros campos do conhecimento mesopotâmico forem vistos como partes significativas e mutuamente complementares de um todo maior, então eles são retirados do isolamento em que estão sendo estudados atualmente, e pode-se focar a atenção na inter-relação entre essas disciplinas, em vez de tentar entender as disciplinas individuais por conta própria. Se esse sistema esotérico de conhecimento perdido pudesse ser reconstruído — e estou certo de que muito pode ser alcançado nesse sentido —, certamente poderíamos entender a civilização mesopotâmica muito melhor do que no momento.
Gostaria de concluir este artigo com uma passagem das inscrições do último grande rei da Assíria, Assurbanípal, onde ele descreve orgulhosamente sua educação cuidadosa. Ele começa dizendo que aprendeu o conhecimento secreto do sábio Adapa, o servo do deus da sabedoria, e então continua contando como dominou a astrologia e a hepatoscopia, podia resolver problemas matemáticos, ler textos difíceis, etc. Acredito que ele sabia exatamente onde colocar a ênfase e acho que devemos seguir seu exemplo.
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