Astrologia Medieval

A Escola de Chartres e a Tradição do Quadrivium

Jorge Filipe N. S. Teixeira Lopes*

Cuestiones Teológicas | Medellín-Colombia
Vol. 41, No. 96 (julio-diciembre, 2014)
* Doctor Canónico en Filosofía (2012) por la Universidad Pontificia Bolivariana (Medellín, Colombia). Es sacerdote de la Sociedad Clerical de Vida Apostólica Virgo Flos Carmeli y miembro de la Asociación Internacional de Derecho Pontificio Heraldos del Evangelio.

Resumo

A Escola de Chartres foi um importante pólo do conhecimento no século XII. O pensamento chartriano ficou conhecido devido ao seu veio científico que procurou estudar as leis da natureza baseando-se nas scientiae rerum, isto é, no Quadrivium. Era por intermédio das ciências matemáticas que o homem poderia, fazendo uso da abstracção, intelectualizar os fenómenos que via na natureza e interpretar as leis que discernia no universo. Este artigo procura fazer um elenco das principais fontes neoplatónicas desse pensamento por meio de um apanhado histórico e hermenêutico – num périplo que abarca desde os autores latinos neoplatónicos aos mestres do renascimento carolíngeo – no intuito de perceber como, por meio dessas quatro ciências das coisas (scientiae res), Chartres se tornaria um dos mais importantes centros de estudo das ‘artes liberales’ e uma percursora das modernas ciências da natureza.

Introdução

Quando a obra Ars Fidei Catholicae foi oferecida ao papa Clemente III, entre 1187 e 1191, por Alain de Lille ou Nicolau de Amiens – os estudiosos modernos não são unânimes – o seu autor procurara demonstrar como o ensino da teologia se tornara uma forma elevada da aritmética, com um modus operandi próprio na estruturação do pensamento. Esta oferenda evidenciava o progresso da teologia nesse século que findava. Entre outros subsídios, este progresso tinha passado pela intenção de explicar o mundo de forma racional, através de relações numéricas com as quais se pretendia revelar não só as leis da natureza, mas inclusive a própria essência divina. Nesse contexto, é de se realçar a abstração que o Quadrivium permitira, ao longo da Idade Média, no conhecimento das coisas, e a importância que tivera na formação do homem medieval. De fato, essas quatro artes permitiriam ao homem conhecer as realidades celestes, ao mesmo tempo que o afastavam das coisas terrestres, conforme nos é relatado num trecho de um manuscrito anónimo (Per hoc quadrivium scimus caelestium contemplationem, terrestrium abiectionem).

Cerca de meio século antes, por volta de 1141, o chanceler da Escola de Chartres, Thierry de Chartres tinha escrito uma obra que ficaria conhecida como a ‘bíblia das artes liberais’, Heptateuchon, onde exprimira a sua concepção do saber e o papel das ‘artes liberales’ no processo de conhecimento humano. O título da obra, alusivo ao número sete (επτά), fazia uma analogia entre as ‘artes liberales’ – Trivium (Gramática, Dialética, Retórica) e Quadrivium (Astronomia, Música, Geometria, Aritmética) e os sete primeiros livros da Escritura (Génesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronómio, Josué e Juízes). No prólogo, Thierry afirmava que os dois instrumentos básicos do filosofar eram a reflexão – ou compreensão intelectual – e a expressão adequada. A reflexão intelectual seria proporcionada pelo Quadrivium, que deveria iluminar o intelecto; o Trivium, por sua vez, seria o meio pelo qual se permitiria a manifestação conveniente do pensamento. Esta era, sem dúvida, a clássica divisão das ciências que fazia parte substancial do curriculum medieval das seteartes liberales.

O Quadrivium como forma de abordar a natureza

The Seven Liberal Arts

O desenvolvimento expositivo destes homens do século XII, que ficariam conhecidos como os primeiros ‘intelectuais’ do ocidente, denota um esforço em alinhavar argumentos claros e coerentes, apoiados em dados obtidos a partir da natureza. Para o pensamento chartriano, esta era chamada por ‘universo das coisas’ (rerum universitas), pois englobava todo o universo criado, desde os coros angélicos até ao universo físico. As disciplinas das ‘artes liberales’ proporcionavam ao intelectual a objectividade necessária, não somente na forma de abordar as ciências experimentais, mas também no processo lógico-argumentativo, a fim de melhor sustentar a clareza expositiva e organizar a sequência dos raciocínios.

O escopo do pensamento chartriano era provar que a ordenação do mundo criado exigiria um Criador. Essa preocupação já S. Agostinho tivera quando procurara dar uma noção filosófica de ordem (ordo) e procurado entender de que modo o nosso universo está sapiencialmente ordenado. Que instrumentos terá Deus utilizado para o conceber? Por vias do neoplatonismo agostiniano, uma tradição promovida pouco mais tarde em Boécio dizia que quatro eram as vias da sabedoria e quatro eram também os meios de estudar o universo: Astronomia, Música, Geometria e Aritmética. Seria, portanto, pelo Quadrivium, isto é, pelas quatro disciplinas que proporcionam o estudo intelectual da natureza, que o homem poderia chegar até Deus.

Está claro então que, para a Escola de Chartres, o universo das coisas (rerum universitas) é motivo para uma procura racional dos princípios em que a fé cristã acredita. Mas, além desse aspecto, cumpre compreender que estudar o cosmos pelo Quadrivium é estudar a ciência do número, isto é, da aritmética combinada com as considerações metafísicas ensinadas pelos antigos e transmitidas ao mundo latino em grande medida por Boécio. Por exemplo, as arithmeticae probationes aplicadas por Thierry de Chartres à teologia no Tractatus de sex dierum operibus, são prova disso, bem como, em certo modo, a especulações teológicas da Dialética, de Pedro Abelardo. Portanto, para se entender a importância destas scientiae rerum, deve-se proceder a uma análise histórica e, digamos assim, genealógica do Quadrivium, em busca das fontes do pensamento chartriano para um estudo racional acerca do mundo.

O Quadrivium nas fontes da tradição neoplatónica

Foi nas fontes do neoplatonismo latino que o chamado ‘pensamento racional’ ou ‘pensamento científico’ dos homens de Chartres se foi abeberar. E se a Escola de Chartres foi um dos maiores bolsões de intelectualidade no século XII, sem embargo, a sua apreensão do cognoscível não deixa de passar pela ‘linguagem sagrada’ dos símbolos. Ela situa-se numa transição entre a visão simbólica e alegórica, patente em toda a alta Idade Média, e o pensamento científico da Alta Escolástica do século XIII. Como indicou o Prof. Gonzalo Soto, o simbolismo é a inquirição in vestigium ire, isto é, a procura das marcas de Deus, e, portanto, o ponto onde se dá o encontro dos dois aspectos chave do conhecimento medieval: primeiro, a busca da semelhança, que lhe serve de configuração mental; depois o símbolo, que é o motor próprio dessa busca. Há, portanto, toda uma variedade e gama de simbolismos que faz parte do misticismo medieval, e é nesse prisma que convém perceber a noção platónica de um universo racional, e, por conseguinte, os meios empreendidos para estudá-lo. Quer dizer, os seus métodos e ferramentas de estudo são repletos de pensamento religioso e mítico, que fazem-no interpretar o mundo de uma forma completamente distinta da do homem moderno.

Voltando ao nosso tema, foi em De musica de S. Agostinho que se evidenciou o carácter científico das artes liberais, o qual teria grande importância nos curricula da formação medieval. Já em De Ordine, o bispo de Hipona Agostinho traça uma genealogia racional, solidificando-as numa unidade e denunciado a presença de proporção e harmonia nestas disciplinas, razão pela qual podiam ser concebidas como scientias. As artes do Trivium e Quadrivium, podiam levar a razão à busca da Verdade, do corpóreo (corporea), a uma ordem superior, acima do meramente sensível (incorporea). Nesse contexto, a música tinha um especial papel, pois dividia a sua função com a gramática através do som (sonus), e podia ser submetida a uma medida e ordem de acordo com proporções e números, dada a sua correspondência direta com as proporções aritméticas.

A razão humana capta a unidade, ordem e simetria, ou, segundo expressão do mestre de Hipona, a modulação (modulatio) proporcionada das coisas que existem. É, portanto, através das matemáticas que a razão pode aceder do sensível ao inteligível e contemplar o esplendor da verdade divina refletida no mundo visível. A ciência das artes liberais prepara, portanto, a alma para a consideração das harmonias e proporções do universo.

No século VI, Boécio insistiu também no Quadrivium, como as quatro disciplinas que abarcavam o estudo da natureza e como quádrupla via rumo à sabedoria. Denominando-as artes reais (artes reales) – referentes às coisas da natureza (res) – as ciências matemáticas eram a luz para os olhos da alma, desempenhando uma função propedêutica em relação à teologia. Era por intermédio delas que a alma se podia abrir para uma hierarquia de abstração, por onde podia aceder das percepções sensíveis à pura razão, a um conhecimento em harmonia com a mente divina.

Boécio distinguiu dois tipos de quantidade nestas quatro disciplinas das coisas: quantidade discreta – daquilo que é contável, relativo, portanto, aos números – e quantidade contínua – relativo a linhas no espaço – como segue (Boethius, II 1):3

Aritmética (estuda a quantidade discreta estática)
Música (estuda a quantidade discreta em movimento)
Geometria (estuda as grandezas estacionárias)
Astronomia (estuda as grandezas dinâmicas em movimento)

É de realçar que o pensamento boeciano teve um papel único no século XII, não sendo por acaso que Marie-Dominique Chenu chamou a este tempo de aetas boetiana. Relevante indício da sua larga influência é o facto do místico Hugo de São Victor, da abadia homónima, ao escrever Didascalicon, um livro que é um autêntico compêndio das ‘artes liberales’, definir as disciplinas do Quadrivium com a mesma terminologia de Boécio:

Um tipo de magnitude é móvel, como as esferas celestiais, outro, imóvel, como a Terra. Ora, a quantidade que permanece em si é examinada pela Aritmética, enquanto aquilo que está em relação a outra quantidade é observada pela Música. A Geometria toma conhecimento da magnitude imóvel, enquanto a Astronomia toma conhecimento daquilo que é móvel. A Matemática, por conseguinte, está dividida em aritmética, música, geometria e astronomia.

Mas, além de Boécio e Agostinho, outros autores há que também merecem ser destacados no âmbito do estudo das artes liberales, genericamente falando, ao longo da Idade Média: numa abordagem cronológica, temos, em primeiro lugar, Vitruvius, que em De Architectura destacou a necessidade de formação em geometria, música e no conhecimento das proporções celestes, facultado pela astronomia; mais tarde S. Isidoro de Sevilha, em Etymologiarum, verdadeira enciclopédia do saber medieval, lembrou o papel das ‘artes liberales’, e a importância dos números na demarcação da música, geometria e aritmética. Mais tarde, no século IX, o irlandês John Scott Eurigena, seguindo o pensamento agostiniano, considera as ‘artes liberales’ como uma via para apreender a verdade da Revelação. Nos seus comentários às Institutiones gramaticae de Prisciliano, ele diz que elas brilham com a luz da sabedoria (sapientiae luce praefulgens).

No entanto, a maior influência nesta área foi a obra De Nuptiis Mercurii et Philologiae, de Martianus Capella, retórico do século V. Nela representam se alegoricamente as artes liberais, como sete virgens que oferecem seus presentes no casamento entre Filologia e Mercúrio. A obra foi encontrada em muitos mosteiros e catedrais nos séculos XI, XII e XIII, e sabe-se que toda a personificação das artes liberais ao longo da Idade Média é-lhe conforme. Por exemplo, em Anticlaudianus, obra escrita por volta de 1180, Alain de Lille imagina a figura da sabedoria (philosophiae) tendo diante de si as sete ‘artes liberales’ que, sobre uma carruagem, vão em busca de Deus.

De Nuptiis Mercurii et Philologiae foi indubitavelmente o compêndio de ‘artes liberales’ mais popular da Idade Média. E é curioso que, apesar de não conhecer Euclides nem Ptolomeu, Capella tenha abordado cientificamente tanto a Geometria tanto como a Astronomia. Para ter sido levado tão a sério pelos medievais, tenha-se em conta o facto da obra ter sido escrita em tom alegórico, o que fazia convidar o espírito a contemplar temas tão difíceis como as ciências dos astros e a aritmética de forma fantasiosa.

Mas outras duas obras são de vivo interesse, pois foram bastante lidas no tempo de Chartres: são elas o Timaeus de Platão, traduzido e comentado por Calcidius no século IV, e o comentário in Somnium Scipionis, de Cícero, por Macrobius, provavelmente no início do século V. No seu comentário Macrobius trata largamente de temas científicos, abordando desde a natureza do número e sua presença no universo, à astronomia e geografia, escrevendo até sobre a vida humana. Repleto de descrições astronómicas, a obra serviu de base para a cosmologia do período carolíngeo até ao século XII.

O Quadrivium entre o período carolíngeo e o século XII

A divisão das artes em Trivium e Quadrivium era já usada no começo do século IX. Vários escolásticos pretenderam ver a sua utilização como fundamento para um perfeito conhecimento de Deus, como Alcuinus de York, na escola palatina de Aix-la-Chapelle, no tempo da corte de Carlos Magno. Em De vera philosophia, que constitui o início da sua Grammatica, Alcuinus apresenta o caminho rumo à sabedoria com sucessivas graduações, fazendo notar que em Provérbios IX, 1, a sabedoria ao construir a sua casa, fê-lo sobre sete pilares que não são senão as sete artes liberais.

São de salientar nessa época os diagramas planetários baseados em vários autores latinos, como os já mencionados Martianus Capella e Macrobius, mas também Plínio o Velho (séc. I), Calcidius, na sua tradução e comentários do Timaeus de Platão. Entre eles, destaca-se o trabalho de Calcidius que ofereceu pela primeira vez um universo racional, geométrico e filosoficamente coerente:

As sete artes liberais

Trivium
(scientiae vocis)

Gramatica (Lua) – Linguagem
Dialectica (Mercúrio) – Lógica
Rethorica (Vénus) – Arte de falar

Quadrivium
(scientiae rerum)

Aritmethica (Sol) – Número
Musica (Marte) – Harmonia
Geometria (Júpiter) – Espaço
Astronomia (Saturno) – Movimento

As sete ‘artes liberales’ tinham uma relação com os sete planetas. As relações entre ambos remontam a tempos longínquos e seriam imortalizadas por Dante (1265-1361), no Livro II da Divina Comédia, “il Convivio”, onde se estabelece uma analogia entre as esferas celestes da cosmologia medieval e as ciências. Segundo Dante, envolvendo a Terra esférica, as sete esferas dos planetas, começando pela Lua até Saturno, podem ser comparadas com as sete ciências. Assim, a Gramática correspondia à Lua, Dialética a Mercúrio, Retórica a Vénus, Geometria a Júpiter, Música a Marte, Astronomia a Saturno e a Aritmética ao Sol. A oitava esfera, a do Firmamento, associava-se à Física e à Metafísica. Dante afirma, por exemplo, que o sol relaciona-se com a aritmética da seguinte maneira: primeiro, ele é fonte de luz para todas as outras estrelas. Segundo, o olho não pode olhar a luz pela sua luminosidade. Por analogia, a aritmética – o estudo das propriedades numéricas – é o fundamento de todas as outras ciências analíticas, pois apesar dos números serem infinitos e imateriais, o intelecto humano pode ver e compreender seus princípios fundamentais.

Pelo facto de trabalhar com números e proporções, o Quadrivium seria o melhor meio de compreender a ordem do universo, enquanto obra primorosa concebida pelo divino arquiteto, pois acreditava-se que as distâncias entre os planetas – bem como seus movimentos espaciais – estavam ordenados matematicamente. Portanto, estudar o universo seria tarefa não só da astronomia, mas também da ciência geométrica que estudava as leis imutáveis do espaço dispostas harmonicamente por Deus, segundo as proporções aritméticas e os padrões da harmonia musical.

Entre os séculos X e XI, em Reims, Gerbert d’Aurillac (930-1003), futuro Papa Silvestre II, aprofunda as artes do Quadrivium. Desde o norte da França à abadia de Ripoll, da Catalunha à Itália, Gerbert ensina música, astronomia e geometria. Conhecem-se pelo menos duas obras redigidas sob sua inspiração, nomeadamente De Geometrica e De Astrolabio, que fazem transparecer a trajetória dos seus ensinamentos e o objetivo dos seus estudos: o aprofundamento das ciências naturais e práticas. Dando primazia à astronomia, Gerbert considera contudo que a geometria não é uma ciência que se reduz somente à resolução de problemas práticos, mas constitui uma forma sapiencial de pensar e apreender o Universo.

Conhecido como o “papa matemático”, Gerbert não estudou somente o Quadrivium, mas foi profundamente influenciado pelas ciências árabes, tendo reintroduzido na Europa o ábaco, como o demonstram as Regulae de numerorum abaci rationibus, e a esfera armilar. Dentre os seus alunos encontram-se figuras eminentes como Adalberon de Laon, João de Auxerre e o futuro fundador da Escola de Chartres, São Fulberto de Chartres (c. 960-1028). Este último chega a Chartres por volta de 990, depois de ter estudado em Reims com Gerbert e tido por tutor Odon de Cluny, o qual fora aluno de Remigius de Auxerre. Mais tarde, torna-se mestre e chanceler, dirigindo as escolas da catedral que ele próprio manda reconstruir, após ser eleito bispo em 1006. Até à sua morte em 1028, Fulberto foi o grande impulsionador do estudo da filosofia, e quase todos os homens cultivados do seu século tiveram-no como mestre. Os ensinamentos dele situam o conhecimento do mundo não na percepção sensorial mas nas ideias; quer dizer, saber não significa um conhecimento ou mera classificação do universo, mas estudar sobretudo os seus princípios aparentes, isto é, as leis que o compõem.

Entre os estudos de aprofundamento do quadrivium pelos seguidores de  Gerbert, salienta-se a troca de oito cartas, cerca de 1025, entre Ragimbold de Colónia e Radolf de Liège – ambos alunos de Fulberto – que versam sobre uma questão de Boécio extraída das Categorias de Aristóteles, acerca de problemas de geometria. Apesar dessa troca de carteio revelar o diminuto e muito fragmentado conhecimento de ambos em Geometria,– além do que não conheciam nem grego nem as matemáticas árabes – é notável, sem dúvida, este vivo interesse por questões científicas e pelas obras antigas, o que viria a ter correspondência, um século mais tarde, na filosofia natural do Timaeus de Platão praticada pela Escola de Chartres.

O Quadrivium na Escola de Chartres

σ

Se a cidade de Paris do século XII se tornou famosa pelos estudos de filosofia e teologia, as ciências, enquanto estudo da natureza e do que hoje chamamos comumente de ciências naturais, teve seu início com a Escola de Chartres. Thierry de Chartres, por exemplo, ao interpretar o Génesis, propõe fazê-lo segundo as leis dos físicos (secundum rationem physicorum). Este modo racional de abordar a Criação reflete-se em outras obras suas: no prólogo do já mencionado Heptateucon, Thierry relaciona a sabedoria (sapientia) com a ciência das coisas (Quadrivium); e no seu comentário ao De Trinitate de Boécio, faz um paralelo entre a sabedoria e a matemática, sublinhando que o costume dos antigos era aprender primeiro a matemática, de modo a poder aceder ao conhecimento de Deus ([…] quia mathematicam solebant prius antiqui discere ut ad divinitatis intelligentiam possent pervenire). O seu conceito de sabedoria está, portanto, relacionado com as artes do Quadrivium, pelas quais, afirma ele, o universo pode ser estudado. Ter sabedoria significa compreender a racionalidade interna da natureza, que é alcançada por intermédio das ciências matemáticas, os quatro meios de ascender ao Deus criador (quattuor genera rationum ad cognitionem Creatoris), como o próprio Thierry afirma:

Assim, pois, existem quatro tipos de razões que levam o homem ao conhecimento do Criador, a saber: as provas aritméticas, musicais, geométricas e astronómicas. Nesta teologia devem-se empregar com prontidão ditas ferramentas, de maneira que se veja nas coisas a maestria do Criador e se manifeste racionalmente o que foi exposto.

Na sua hermenêutica da Criação, Thierry tenta coadunar a narração evangélica com a experiência sensível e constatável pelas leis naturais, tentando fazer coincidir a exposição do autor sagrado com as exigências da ordem da natureza (ordo naturalis), nos momentos primeiros do mundo. Na mesma linha, o seu contemporâneo e também mestre da mesma escola, Bernardo de Chartres, procurou fazer uma autêntica lectio physica da Criação, pois, na sua Glosae super Platonem, obra na qual procura compreender a origem e ordem do universo, mostra como é possível interligar as causas naturais através das ciências do quadrivium, pois é por intermédio dos números que se encontra a perfeição da ciência (scientia quadrivii […] est perfectio scientiae per numeros).

Cabe aqui fazer uma indicação importante: existia na época uma concepção de que Deus governava o mundo através de uma lei, não no sentido moderno, mas a que chamavam alma do mundo (anima mundi), através da qual Deus mantinha ab extra todos os seres na sua devida ordem dentro do universo dos seres, ao mesmo tempo que lhes proporcionava as leis ab intra, que os faziam desenvolver conforme sua natureza. Vários chegaram inclusive a relacioná-la com o Espírito Santo, como Pedro Abelardo, que teve nesse assunto mais um motivo para a sua posterior condenação. De facto, era difícil distinguir entre o que era poder de Deus e lei da natureza, a qual ainda não se concebia enquanto tal. Sob esse aspecto, Thierry de Chartres, no seu comentário sobre a Criação, afirma que

em virtude daquele poder que opera sobre a matéria, existem todas as coisas que são ou podem ver-se no céu ou na terra. Com efeito, porque a própria matéria é por si mesma informe, não pode de modo algum obter a sua forma senão pelo poder do artífice que a trabalha e a ordena. É pelo “espírito” de Deus, portanto que são governadas todas as espécies do mundo, cada qual segundo a natureza que Deus lhe conferiu.

Seguindo a tradição neoplatónica, Thierry chama a essa força de (hyle), que é, em última análise, o mundo enquanto receptáculo de todas as coisas existentes, sejam as que se movem como as que vivem, e lembra que foi Platão, no Timaeus, que lhe chamou de anima mundi. Estas expressões filosóficas são depois relacionadas e justificadas com a frase do autor sagrado quando afirma no Génesis que “o Espírito do Senhor pairava sobre as águas”. Face à dificuldade de entender a origem e significado deste “poder”, o último dos grandes mestres de Chartres do século XII, João de Salisbury, deixou uma explicação sucinta mas clara sobre o seu significado:

O espírito criado [a anima mundi], isto é, o universal e natural movimento, toma uma forma que é em si mesma invisível numa matéria de si invisível, de uma tal maneira que o que é composto delas é transformado num género de substância atual e visível. O espírito é um movimento natural e universal, que contém os quatro elementos como se fossem ligados à matéria [hyle], e espalhados no firmamento pelas estrelas, no mundo sublunar pelo fogo, ar, água e terra, e em todas as outras coisas que naturalmente movem-se no mundo. A este movimento Mercúrio [Hermes] chama natureza, Platão chama de ‘anima mundi’, outros chamam destino e os teólogos chamam de providência divina.

Este poder da natureza foi o objeto principal do estudo de Chartres. Por isso se explica como era possível a crença de Bernardo de Chartres numa possibilidade de conhecer a ordem do universo através do Quadrivium, e como ela se prendia ao facto de que a estabilidade do cosmos lhe fosse propiciada pela rigidez de leis métricas e por proporções matemáticas. Bernardo crê que esta firmeza e solidez do universo tem origem nos números 1, 2, 3 e 4, que são os que constituem a ‘anima mundi’, e, é importante recordar, são os mesmos da harmonia musical.

Com efeito, recorde-se que o medieval acreditava que a harmonia do mundo só podia existir porque era fundamentada na harmonia – do grego [ἁρμονία], que significava o princípio máximo de perfeição – das proporções musicais, isto é, da distâncias entre vários tons. Daí o facto, anteriormente mencionado, de se crer que os planetas estavam ordenados  matematicamente segundo as tonalidades da escala musical. Razão pela qual eram capazes de produzir harmonias belíssimas ao movimentarem-se, que contudo não podiam ser captadas pelo ouvidos dos mortais – noção esta, de origem pitagórica, que ficou conhecida por teoria das esferas celestes. Para confirmar que o estudo da ordem do universo se faz pela música e por cálculos aritméticos, Bernardo lembra que Platão ensinara que a estrutura, ou a “sinfonia” do mundo partia dessa harmonia (Quibus simphoniis mundi fabricam constructam esse docebit)

Essa ideia é largamente explorada pelos autores do século XII, como o  inglês Adelard de Bath, que foi muito provavelmente um aluno de Thierry de Chartres. Em De eodem et diverso, recordando a Pitágoras, considerado o pai das matemáticas, Adelard ressalta a atração que a música exerce sobre homens e animais e lembra que isso se deve ao facto de que a harmonia da alma do mundo está presente em todos os seres do universo “o mesmo filósofo [Pitágoras] disse que a alma do mundo foi unificada destas consonâncias […] pois ela está em harmonia consigo mesma e alegre de colocar essa mesma harmonia nos corpos”.

Escultura de Pitágoras (inferior esq.) tendo acima de si a Música (detalhe do Portal Royal de Chartres).

O estudo da música teve um papel fundamental nos mosteiros, ao longo da Idade Média. Na abadia de Cluny, que tinha na liturgia o centro gravitacional das suas atividades, a música estava no âmago da vida dos monges. Por isso, ao recitar o ofício, eles pretendiam entrar em consonância com a ordem do universo, que tinha na sua harmonia o mais belo hino de louvor da criação em relação ao seu Criador. Por isso, não é de admirar que o abade Hugo de Cluny tenha colocado nos capitéis do coro da basílica de Cluny uma representação dos tons musicais. Marie Thérèse D’Alverny deixou-nos um artigo bem significativo dessa mentalidade, que data de inícios do século XII e reflete as influências de Calcidius, Capella, Macrobius e Boécio nas percepções musicais dos religiosos. Nele, ela comenta um curioso manuscrito intitulado De VII planetis et VIII musis, através do qual o autor – um anónimo monge – tenta suavizar os ensinamentos científicos com a arte poética. Para esse efeito, o método de ensino dos astros é dado através da leitura de uma prosa, que deve ser ao mesmo tempo cantada, e que faz corresponder para cada um dos sete tons da escala musical, um dos sete planetas.

Como a música, as disciplinas que compõem o Quadrivium são as scientiae princeps do estudo da natureza, ou seja, um modo científico que permite estudar o mundo criado, num caminho ascensional rumo ao Criador, como afirma Guillaume de Conches (100D)7. Uma edição de um tratado de autor anónimo Tractatus quidam de philosophia et partibus eius, publicado por Gilbert Dahan, revela bem como o homem platónico do século XII abordava os temas da natureza com base no Quadrivium, dando-lhe um carácter científico. Dahan é da hipótese do autor do texto ter sido discípulo de Guillaume de Conches. Este controverso mestre de Chartres compôs também uma Glosa super Platonem, onde seguiu os princípios geométricos e aritméticos dados por Boécio ao interpretar a ordem do mundo. Guillaume propõe uma autêntica ‘teologia musical’, pois para ele a ‘anima mundi’ contém em si a harmonia arquetípica, que se reflete em todos os seres criados. E por isso os fenômenos que se podem contemplar  na natureza têm leis próprias e inalteráveis. Essas leis Guillaume tentou explicar e interpretar nos três tratados filosóficos que nos chegaram: Glosae super Platonem, Philosophia mundi e Dragmaticon philosophiae.

É importante considerar como há na Escola de Chartres um veio de busca sapiencial das causas da ordem do mundo criado, que suscita uma sinonímia entre scientia, sapientia e philosophia, isto é, entre aqueles que são considerados os instrumentos aptos para uma verdadeira interpretação da ordem do universo. Na verdade, a sabedoria é o fim último da filosofia (philosophia ergo est studium sapientiae), segundo Thierry de Chartres, e a filosofia tem como instrumentos da sua análise as scientiae rerum, isto é, as ciências que estudam a verdade das coisas na imutabilidade dos números, como foi antes visto. Por isso, em Chartres, ciência e filosofia são os meios válidos, e porventura os únicos, para se alcançar a sabedoria. A imagem que mais bem expressa esse género de pensamento, e talvez também a mais bela, relacionando as ‘artes liberales’ com a sabedoria, encontra-se no diagrama da filosofia da obra  Hortus deliciarum, da mística Herrad de Landsberg, escrito após 1176.

Conclusão

Como foi visto, no século XII, a Escola de Chartres pretendeu unir a teologia com as ciências matemáticas. Fruto de uma teologia de pendor platónico, desenvolvida sobretudo com base nos autores latinos dos séculos IV a VI, Chartres reúne e trabalha o pensamento físico e metafísico platónico – imbuído ainda de uma boa dose de matemáticas pitagóricas – que se encontra no Timaeus. No auge desta escola, estas teorias serviram tanto para a especulação teológica chartriana – de pendor naturalista – como para algumas aplicações científicas e práticas. Por isso, Winthrop Wetherbee afirmou que o século XII soube utilizar ferramentas na sua busca pelas causae pelos principia, por onde é possível vislumbrar um género de pensamento que se poderia classificar como “ciência platónica”.

O seu pensamento teológico volta-se mais para a descoberta da natureza, afastando-se assim do ideal místico de sabedoria que perdurara ao longo da Idade Média, a imitatio christi. O pensamento chartriano demonstra um novo ideal que se traduz num esforço por compreender a estrutura matemática do universo, estabelecendo uma relação entre a teologia – mãe de todas as ciências – e o Quadrivium.

A Escola de Chartres criou métodos de estudo das universitas rerum, que são a base da sua particular cosmologia, isto é, da sua forma de fazer teologia e de conceber a Criação. Por isso, Thierry de Chartres, por exemplo, relaciona tão facilmente conceitos como sapientia e quadrivium, devido à semelhante imutabilidade que existe entre o Criador e a exatidão das ciências matemáticas. Pretende-se então fazer desta sabedoria uma teologia, isto é, unir razão e revelação, no intuito de encontrar nas universitas rerum aquilo que elas têm de mais verdadeiro pela vinculação com o Criador. E não é, portanto, de surpreender que uma das duas primeiras personificações em pedra das sete ‘artes liberais’, encontra-se no portail royal da Catedral de Chartres, datado de cerca de 1150; era o momento em que a escola chartriana estava em pleno florescimento e Thierry de Chartres era seu chanceler.

A dama Philosophia tendo abaixo de si Sócrates e Platão e rodeada pelas sete artes liberais (Hortus deliciarum).

δ

Referencias
Alanus Ab Insulis. Anticlaudianus. (s.f.). (PL. CCX).
Alcuinus. Grammatica (PL. CI). (s.f.).
Boethius. De institutione musica (TML, 6th-8th index). (s.f.).
Brown, M. (2008). ‘Chartres comme l’exemplaire féodal: une interprétation de la collection des épîtres et des poèmes de Fulbert de Chartres comme traité sur la fidélité, la loi et la gouvernance’. Rouche, M.; Fulbert, C.; précurseur de l’Europe médiévale. Paris: Presses de L’Université Paris-Sorbonne, 231-242.
Burnett, C. (1998). (Ed.). Conversations with his nephew. Cambridge: Cambridge University Press.
Chenu, M. (1976). La Théologie au Douzième Siècle, (3ª ed.). Paris: Vrin.
Correa, G. (2009). Numerus-proportio en el De Musica de San Agustín. (Libros I y VI). La tradición pitagórico-platónica. Tese doutoral. Salamanca: Universidad de Salamanca.
Dahan, G. (1983). Une Introduction à la philosophie au 12e siècle: le “Tractatus quidam de philosophia et partibus eius. Archives d’histoire doctrinale et littéraire du Moyen Age, tomo XLIX, 155-193.
D’Alverny, M. (1964). Les muses et les sphères célestes. Classical Medieval and Renaissance Studies in Honor of Berthold Louis Ullman. Henderson, Charles (Ed.). Vol. II. Roma: EdSL, 7-20.
Dutton, P. (1991). (Ed.). Bernardus Carnotensis. Glosae super Platonem, CVII. Toronto: Pontifical Institute of Medieval Studies.
Eastwood, B. (2007). Ordering the Heavens. Roman Astronomy and Cosmology in the Carolingian Renaissance. Leiden: Brill.
Evans, G. (1993). Philosophy and Theology in the Middle Ages. London: Routledge.
Ghellinck, J. (1948). Le mouvement théologique du XIIe siècle. Sa préparation lointaine avant et autour de Pierre Lombard, ses rapports avec les initiatives des canonistes: études, recherches et documents. Bruges: De Tempel.
Grant. E. (1977). Physical Science in the Middle Ages. Cambridge: Cambridge University Press.
Häring, N. (1971). (Ed.). Commentaries on Boethius by Thierry of Chartres and his School. Toronto: Pontifical Institute of Medieval Studies.
Jeauneau, É. (2009). Rethinking the the School of Chartres. Toronto: University of Toronto Press.
Jeauneau, É (1965). Glosa super Platonem. Paris: Vrin.
Jeauneau, É. (1954). (Ed.). Le Prologus in Heptatheucon de Thierry de Chartres. Toronto: Pontifical Institute of Mediaeval Studies, XVI, 171-175.
Joannes Saresberiensis. De septem septenis (CIC). 1848.
Kijewska, A. (2003). Mathematics as a preparation for theology: Boethius, Eurigena, Thierry of Chartres. Galonnier, Alain (Ed.). Boèce ou la chaîne des savoirs.  Actes du Colloque International de la Foundation Singer-Polignac. Louvain: Peeters, 625-648.
Lansing, R. (2000). (Ed.). The Dante encyclopedia. New York: Taylor & Francis.
Levet, J. (1997). Gerbert d’Aurillac, Sylvestre II, Traité de Géométrie. Traduction et commentaire. Poitiers: Cahiers d’Histoire des Mathématiques et d’Epistémologie.
Maccagnolo, E. (1976). Rerum universitas. Saggio sulla filosofia di Teodorico di Chartres. Firenze: Felice le Monnier.
Mâle, É. (2000). Religious Art in France of the Thirteenth Century. Toronto: Dover Publications.
O’Meara, J. (1992). Contrasting approaches to neoplatonic immaterialism: Augustine and Eriugena. Iwestra, Haijo Jan (Ed.). From Athens to Chartres: Neoplatonism and medieval thought studies in honour of Édouard Jeauneau. Leiden: Brill, 175-180.
Soto, G. (1999). Diez aproximaciones al Medioevo. Medellín: Universidad Pontificia Bolivariana.
Wetherbee, W. (1988). Philosophy, Cosmology and The Twelfth Century Renaissance. Dronke: A History of the Twelfth Century Western Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 21-53.

The Catedral of Chartres -Jean Baptiste Camille Corot (1830)

Ω