Astrologia na Arte

Astrologia, Cotidiano e Arte

Microcosm or Earth and the Macrocosm or the Universe (1618)

δ

O Corpo Astral e o ‘Homo Signorum’

Jefferson de Albuquerque Mendes

ε

Universidade do Estado do Rio de Janeiro
REVISTA SIGNUM, V. 23, N. 2, 2022.

Resumo

O presente artigo pretende analisar as relações entre astrologia e arte a partir da análise da iconografia do homo signorum (homem dos signos), de modo a relacionar como as práticas médicas do medievo estavam intrinsecamente ligadas aos elementos astrais. As primeiras representações do homo signorum evidenciavam claramente a ideia do homem como extensão do cosmos, como uma pequena instância que era regida pelo firmamento. Dessa forma, essa iconografia – contida nos calendários cosmológicos, nos almanaques médicos ou até mesmo em livros de horas – evidencia a vontade de ordenação e orientação cósmica, a partir da medicina astrológica, numa tentativa em manter relações com o incognoscível.

α

Pensa-se hoje na constituição de uma história da arte global, a fim de superar e reverter a problemática destes cânones que ainda articulam o debate sobre os encadeamentos do campo teórico da arte, questionando a legitimidade de teorias universalizantes, sendo todas aquelas que desconsideram geografias e temporalidades específicas. O conceito de história da arte global, vai diretamente de encontro com contradições que são base de antigos problemas de análise para se estudar efetivamente história da arte. Com a necessidade de se estabelecer parâmetros representativos, uma abordagem multicêntrica seria então capaz de preencher a demanda por um ensino de uma história da arte mais inclusiva renunciando concepções hoje consideradas antiquadas, dando lugar a uma prática de caráter decolonial*.

* O pensamento decolonial é um pensamento que se desprende de uma lógica de um único mundo possível (lógica da modernidade capitalista) e se abre para uma pluralidade de vozes e caminhos. Trata-se de uma busca pelo direito à diferença e a uma abertura para um pensamento-outro.

A descentralização dos argumentos e das investidas sobre quaisquer produções imagéticas significa, então, a diversidade do ponto de vista espaçotemporal. Portanto, urge a necessidade de uma visão interdisciplinar onde a história da arte – a partir de uma perspectiva global – remonta-se em si mesma para criar novos significados, novas apreensões sobre um mesmo topos já universalizado pela história da arte europeia. Posto isso, dentro de uma nova concepção geo-histórica da arte, é possível encadear novas formas de trânsito e recepção de teorias e práticas artísticas já delineadas por uma visão anglo-saxã. Assim, a apropriação de novos repertórios – ou mesmo de repertórios já existentes, reificando-os (Enxergar algo abstrato como concreto) – possibilita a impermanência e a temporariedade das produções artísticas vigentes. Um exemplo seria a própria forma de encarar temporalidades e tradições já calcificadas (pelo prisma europeu), como o medievo ou a antiguidade. Este artigo se coloca, desse modo, como uma contribuição às novas práticas a partir da reflexão crítica entre agentes e sistemas da arte.

As diversas assertivas sobre a concepção do cosmos em sua forma humana remetem à necessidade antiga de presumir e prescrever a relação entre o incognoscível e sua instância terrestre, o ser humano. Dentro desse complexo e imbricado jogo de elementos astrais surge a ideia do homem cósmico [homo cosmicus] que, naturalmente, seria aquele que assimilava as estruturas antropomórficas que estão por detrás do firmamento. Assim, as primeiras culturas conseguiam resolver, de forma ainda rudimentar, certas inquietações na assimilação do homem cósmico pela conjunção astral de um determinado espaço e tempo. Com isso, se admitia, a uma só vez, a coexistência da entidade cosmológica suprema e o próprio universo num duplo movimento que reconhecia a harmonia desse enlaçamento.

Nesse processo de amadurecimento do conhecimento cósmico e de seu paralelo com a figura humana se acopla os saberes astrológicos. Com o advento e instrumentalização da astrologia divinatória, ou seja, aquela ligada à adivinhação e ao prognóstico através dos astros, o conhecimento sobre corpo do homem cósmico ganha novos contornos e novas possibilidades de enfrentamento. Há aqui deliberadamente uma polaridade entre o mundo terrestre e o mundo cósmico, na proporção em que, à medida que há a manifestação do mundo cósmico, o mundo terrestre se torna mais palatável. Mas, ao mesmo tempo, a ideia do incognoscível remete, por analogia, na tentativa, por emulações, de compreender aquilo que circunda o espaço.

γ

Assim surge o Homo Signorum¹, numa tentativa de elencar toda a estrutura do zodíaco com a ideia do homem enquanto microcosmo. Esse sistema, de fato, é uma concepção helenística de mundo e que foi cristalizada nos primeiros séculos da era cristã. A figura de um homem nu, geralmente com seus braços e pernas estendidos, sendo perpassado pelos doze signos do zodíaco: da cabeça (Áries) até os pés (Peixes)³, se tornaria uma repertório de imagens profusamente utilizado. Esse tipo iconográfico será amplamente encontrado em tratados, almanaques e enciclopédias de ordem astronômicas, teológicas, filosóficas e, sobretudo, médicas.

1 Homem dos signos: será adotado a versão latina da palavra no intuito de manter seu significado filológico originário. O primeiro registro do uso do termo homo signorum remete a Marcus Manilio, em sua obra intitulada Astronômicas. O homo signorum aparece, especificamente, no livro II: pp. 453– 465; e no livro IV: pp. 701–710.
3 Manilio, em seu poema didático-astronômico, precisamente no Livro II (Astronômicas, II, vv. 465-478) elenca quais partes do corpo humano cada signo zodiacal será o governante.

De acordo com Harry Bober, as fontes textuais que remetem a relação entre o zodíaco e o homem remontam ao primeiro século cristão, tendo a obra Astronômicas de Manilio como sua base teórica. No segundo livro (capítulo XI), Manilio descreve o sistema que dinamiza o binômio homem-cosmos: “Accipe divisas hominis per sidera partes…”. Para Harry Bober a descrição feita por Manilio seria prova suficiente da necessidade, entre os gregos e romanos, em dividir o corpo humano pelos influxos astrais. No entanto, a importância de Ptolomeu também deve ser resgatada nesse contexto. Junto com Galeno e Aristóteles, Ptolomeu será responsável pelo estabelecimento dos preceitos filosóficos, astrológicos e medicinais no medievo, tendo sido, anteriormente, sistematizado e complementado, pelos astrônomos árabes do século X. Ou seja, os preceitos físicos e biológicos sendo geridos e mensurados pelo regime astrológico, através das dinâmicas que o processo analógico promove9.

9 “Na Europa medieval, a visão analógica do mundo estava presente tanto na cultura erudita quanto na vulgar. E sobretudo no nível cultural comum àqueles dois polos, zona que denominamos cultura intermediária, na qual clérigos e leigos encontravam e criavam elementos compreensíveis aos dois grupos, apesar de todas as diferenças sociais, econômicas, políticas e funcionais”.

A figura de Ptolomeu dentro desse processo de criação do homo signorum deve ser levada em consideração. A diferenciação e peso de suas obras reside somente num aspecto temporal: para a Idade Média, a figura de Ptolomeu se torna relevante pelo elo constitutivo com a filosofia aristotélica e seu resgate por entidades como Galeno, por outro lado, a obra de Manilio terá sua preponderância e insurgência a partir do século XIV.10

10 Havia uma popular preocupação e interesse pelos assuntos astrológicos que faziam parte da vida do ser humano desde o seu nascimento. Com isso, havia um sincretismo que unia o cristianismo com a cosmologia antiga e pagã, e mais do que nunca, essa junção se evidenciará entre os séculos XIV à XVI.

Para D. P. Walker, o corpo astral que envolve o homo signorum está relacionado muito mais com as funções imaginativas do que, propriamente, com suas concepções físicas. Em parte, isso é verdade, porém, a todo instante há uma ênfase na estrutura física que está por detrás do sistema do homo signorum. O desenvolvimento médico, por exemplo, está intrinsecamente ligado aos preceitos astrológicos. Assim, o avanço médico, dentro do escopo tratado, é também um avanço perante os elementos astrológicos:

O corpo astral, ou veículo da alma, é feito de uma substância muito fina, translúcida; que pode ser idêntico a substância das estrelas e das esferas [celestes], através da qual a alma passa enquanto descendente das origens até a terra, ou, se não for idêntica, recebeu sucessivas influências ou impressões celestes durante sua queda. Sua forma natural é estrelada, isto é, esférica. É, portanto, sujeito às influências astrológicas.

Num amplo contexto, pode-se dizer que a figuração do homo signorum aparece, primeiramente, em escritos medievais dentro de um contexto que unia numa relação analógica os preceitos religiosos e a prática da astrologia médica12. Em todo o caso, por detrás de todo esse debate se encontra a ideia de analogia. O conceito sobre analogia está no centro do pensamento no medievo e comanda as querelas sobre as representações da natureza. Ela – a analogia – é o princípio de ordem que permite ao mundo ser, de diversas maneiras, variado. A questão da instituição da ordem do mundo tem como pano de fundo a variedade que ele dispõe. É pela analogia que todas as figuras do mundo podem se aproximar e manter uma linha tênue de relações.

12 WRIGHT, Thomas. Popular Treatises on Science written during the Middle Ages. London: E. Taylor, 1841, p. 39. A insurgência do sistema dos doze signos e seu impacto pelo corpo humano fora amplamente defendida pelo priscilianos ao ponto de relacionarem os doze apóstolos com a doutrina zodiacal. Entretanto, para a maioria dos padres, essa concepção era vista com um certo medo e desconfiança. Porém isso não impediu que alguns padres não tentassem a convergência desses saberes. Zeno de Verona, por exemplo, refletiu em seus escritos a popularidade da astrologia ao ponto de criar uma versão alegorizada de um horóscopo cristão que levava em conta a divisão do homo signorum.

No que diz respeito à Europa medieval, pensar por analogia significava estabelecer conexões entre o mundo divino e o mundo humano, entre o Modelo e suas imagens. O universo era visto como uma grande rede de analogias porque na cultura cristã o ponto inaugural daquelas relações era evidentemente a Criação, que significa a presença, embora incompleta, de propriedades e formas do primum analogatum (Deus) nos secunda analogata, sobretudo no homem, feito «à imagem e semelhança» Daquele.

Essas imagens eram encontradas, principalmente, em compêndios medicinais, que tinham a função de ajudar o médico e/ou cirurgião-barbeiro a compreender e elencar a dimensão do impacto dos doze signos zodiacais numa determinada conjuntura astral. O homo signorum representa um emparelhamento de nomes zodiacais com regiões do corpo humano, cujas imagens aparecem ubiquamente em calendários, livros de horas devocionais e tratados de filosofia, astrologia e medicina durante o Medievo. Seja numa cirurgia ou na criação de elixires e remédios, ou até mesmo na consulta sobre doenças, a iconografia do homo signorum irá se desenvolver ao ponto de deixar de ser um mero apontamento ilustrativo de textos para performar como verdadeiros mapas sobre o corpo humano.

A sobrevivência da doutrina dos dozes signos – melothesia – como influxos que tem a função de regência e mediação sobre o corpo humano se deve mais a um desenvolvimento das práticas médicas sobre o corpo do que, de fato, de uma renovação da literatura astrológica. De fato, a doutrina médica no período medieval será a responsável por elencar este tipo de iconografia, onde a persistência da medicina astrológica popular será uma das maneiras como o homo signorum permanece perante a própria cultura medieval, conseguindo adentrar no debate protocientífico sobre a dinâmica homem-cosmos.

O surgimento e desenvolvimento do homo signorum está baseado no conhecimento e princípios que são, precisamente, determinados pela ordem analógica do cosmos. Por isso, a incidência deste tipo iconográfico será comum a partir de meados do século XII, tendo o alcance ampliado a partir do século XIII em diante. A formulação clássica do homo signorum pressupõe:

A) O homem como microcosmo, tendo sua contrapartida o macrocosmo. O homem é o reflexo das ações e movimentos das coisas que acontecem no âmbito macrocósmico. Há uma relação e parâmetro entre todas as coisas e o homem, sendo ele a forma e medida de todas as coisas. O corpo do homem é permeado e dividido pelos influxos cósmicos e astrais provenientes do macrocosmo. Partindo da estrutura geocêntrica do mundo, o ser humano é, por excelência, a representação da instância terrestre, por ele flui toda dinâmica que nada mais é do que um reflexo daquilo criado pela instância suprema. Dessa forma, o homem reúne em si todas as características e qualidades primordiais para a formação do cosmos: ele [o homem] é formado pelos quatro elementos (água, ar, fogo e terra) e pelas qualidades primárias (quente, frio, seco e úmido);

B) suas características naturais são o resultado do entrelaçamento das qualidades do temperamento humano (sanguíneo, fleumático, colérico e melancólico e também biliar) que são criadas tendo a constituição dos quatros fluidos elementares de formação e manutenção da energia vital do corpo humano (bile amarela, sangue, fleuma e bile negra);

C) a constituição do corpo humano é, totalmente, regida pela “dinâmica e correspondência simpática e analógica do cosmos”. Essa estrutura demanda uma dependência deste corpo pelo zodíaco, pelas esferas celestes e pelos planetas que controlam e dominam toda a anatomia, tanto interna quanto externamente. Os órgãos e vísceras do corpo humano reagem a qualquer mudança de conjuntura astral;

Para que toda essa dinâmica aconteça a ideia analógica do mundo deve prevalecer. Por isso que a ciência do homem, se é que podemos chamá-la assim, gera uma ordem regular das coisas no universo, onde essa dinâmica constituída entre os componentes cósmicos e o homem é possível graças à uma “estrutura simpatética que convém uma base harmônica que determinará analogias necessárias e possíveis”. De um modo resumido, para que a existência de um topos iconográfico como o homo signorum seja possível, se deve levar em consideração os fatores acima elencados. Sem qualquer um desses elementos, a ordem analógica do mundo não será possível e sua relação harmônica com o homem desaparece.

Toda uma sorte de práticas médicas que tinham como metodologia a leitura do corpo através dos signos zodiacais e planetas foi criada no intuito de indicar uma forma de preservação e higienização do corpo humano. Dentre as práticas mais disseminadas, a flebotomia era, por certo, a mais conhecida dentre os médicos-astrólogos. Fazia-se uma incisão no intuito de retirar todo o fluido que, de alguma forma, compromete o bom funcionamento do corpo. Porém, como realmente saber o lugar correto onde realizar a sangria? Quando realizá-lo? Qual o melhor momento no ano para realizar a sangria do elemento colérico do corpo? Todas estas e outras perguntas eram sanadas, na medida do possível, pela leitura do cosmos:

Quando a lua está em Áries, Leão e Sagitário,
É bom sangrar o [humor] colérico. Fogo.
Quando a lua está em Gêmeos, Libra e Aquário,
É bom sangrar o [humor] sanguíneo. Ar.
Quando a lua está em Câncer, Escorpião e Peixes,
É bom sangrar o [humor] fleumático. Água.
Quando a lua está em Touro, Virgem e Capricórnio,
É bom sangrar o [humor] melancólico. Terra.

A seriedade e importância real em saber quais procedimentos se devem adotar nas práticas médicas, tendo como base a consulta astral, tornou-se uma questão social e política, ao ponto de se criar leis específicas para os médicos-astrólogos seguirem. Num modo geral, estas leis versavam sobre a prática da flebotomia e a necessidade de os cirurgiões-barbeiros utilizarem os almanaques que tratavam sobre as diversas práticas médicas, inclusive a própria flebotomia. É nesse ponto que prevalecia a importância das imagens, pois estas funcionam como mapas, como meios de identificação para o cirurgião-barbeiro desenvolver seu prognóstico. Esse postulado legal tinha como finalidade, basicamente, a proteção do público que recorria a este tipo de tratamento.

Confirmação dos privilégios acordados entre os Mestres Cirurgiões e Barbeiros da cidade de Beaume… Após o exame assim feito, será examinado os preceitos sobre o conhecimento de sangria e cirurgia, seja na arte e medida do saber fazer sangria, onde as veias se encontram ou onde se deve realizar a sangria, para que serve, e quando é bom sangrar uma veia, e quando a sangria é necessária e quando não é, quais momentos são bons para sangrar uma veia.

A citação acima remete ao exame doutoral realizado em Beaune pela Ordonnance des Roys de France em 1476. Fica evidente que uma das exigências requeridas se trata da excelência nas realizações de sangrias [flebotomia]. Não apenas realizar era necessário o conhecimento sobre a incisão, mas se levava em consideração os procedimentos adotados pelo médico para a realização de tal ato, como a consulta aos almanaques médicos-astrológicos. Outra lei real, desta vez expedida por Luís XI, em 1465, obrigava todo cirurgião-barbeiro e médico-astrólogo a possuir um almanaque ou calendário astrológico, no intuito de diminuir a incidência de mortes causadas pela prática da flebotomia. Por fim, uma inusitada lei expedida em 1400, na cidade de Carcassonne, permitia somente a prática da sangria quando a lua estava “favorável” em sua conjuntura astral.

Assim, condicionados de um lado, pela necessidade em estabelecer cálculos precisos para qualquer procedimento médico, e do outro, vinculados pela ação da lei, as práticas médicas-astrológicas cambiavam constantemente. Para Harry Bober, isso seria o ajuste principal para a aproximação, por exemplo, dos cálculos médicos com as práticas astronômicas da navegação.

Portanto, condicionado por tantas considerações calendáricas, o médico medieval recorreu constantemente às tabelas cambiantes da lua, signos e planetas, que não podiam ser memorizados e sem a qual o tratamento correto teria sido impossível. Quando o sistema estava no seu auge, no final do século XIV e início do século XV, os cálculos exatos por meio de instrumentos de precisão com calibrações finas, semelhantes aos dos astrônomos ou navegadores, foram empregados na determinação de dados preliminares ao tratamento médico. Isso se aplicava não só à prática da sangria, mas também a outras práticas gerais médicas e higiene, particularmente a purgação, o banho, a medicação e a cirurgia. O prognóstico e o tratamento dependiam da constituição humoral do paciente, do dia da lua no começo da doença e da relação desse “planeta” com o membro enfermo. A previsibilidade do macrocosmo forneceu a base da ordem na excogitação dos distúrbios no homem, o microcosmo.

Um exemplo se encontra num pequeno quadrante (Fig. 1) do século XV, hoje preservado no Merton College em Oxford. Nele estão contidas, sui generis, todas as informações necessárias para a medição dos ângulos, tendo como bases as posições das estrelas e planetas. Porém, o que chama a atenção nesse pequeno objeto é uma figura posta ao lado das marcações angulares. De um artista desconhecido, trata-se de uma figura de um homem com cabelos longos que tem gravado por toda a extensão de seu corpo as figuras do zodíaco, ou seja, um exemplo de homem zodiacal, um homo signorum.

Ambos os braços estão dobrados e erguidos na altura dos olhos, seu corpo se curva suavemente acompanhando a delimitação espacial construída no quadrante. Com um pouco de esforço se consegue ver, por exemplo, a imagem do signo de Câncer no peito da figura. Também vemos Áries pairando sob toda a extensão de sua cabeça até chegar ao signo de peixes que envolve ambos os pés da figura. Para Robert Theodore Gunther – num pequeno verbete sobre quadrantes médicos e com base nas imagens contidas no manuscrito Ashmole – se trata de um exemplo da maneira como os astrólogos-médicos se utilizavam das constelações zodiacais. Tal como os gregos, se empregava as constelações e as conjunturas planetárias no intuito de predizer algum fato isolado, individual, ou até mesmo – como vem sendo aqui delineado – no intuito de encontrar o tempo certo para realizar a sangria no paciente.

Robert Gunther descreve a fórmula básica da divisão dos signos pelo corpo, sem ao menos citar que se trata do conceito da melothesia, apenas se contenta em descrever as partes do corpo humano e a regência de cada signo. E termina citando Galeno na condição daquele que, de certa forma, incorporou os sistemas planetários e zodiacais na prática médica no medievo. Nas palavras de Galeno: “se o paciente se deita quando a lua está em Áries, e em posição com Marte ou o sol, a doença estará na cabeça”.

Qual o impacto da iconografia do homo signorum no problema do conhecimento para o ser humano do final do medievo? De fato, esta é a pergunta a ser resolvida. A imagem, ela a uma só vez, consegue concatenar toda a exasperação de ordem filosófica, histórica e médica que a doutrina do homo signorum traz. Um dos pontos a serem levantados é como foi a recepção desses estudos e dessas teorias pelos artesãos e artistas que confeccionavam estas obras. A maioria dos manuscritos e almanaques direcionados para os médicos-astrólogos, eram também consumidos pelos artistas do medievo e da primeira modernidade. Um bom artista seria aquele que dominasse os conhecimentos astrológicos sobre o impacto dos elementos cósmicos no corpo, assim, conseguiria executar com maestria seus desenhos, suas obras. Se analisarmos o arco temporal da produção de imagens que tenham como base a iconografia do homo signorum, veremos o desenvolvimento e preocupação estilística na representação. Dos desenhos mais rudimentares dos séculos XI e XII para obras de extremo rigor estilístico produzidas no século XVI, seria a “consonância de novos estilos que eram desenvolvidos com o passar do tempo”.

Mais do que verificar como se deu essa transformação de ordem iconográfica/estilística, a questão reside em como esse tipo iconográfico foi criado partindo das teorias filosóficas, astrológicas e médicas. E, principalmente, como os artistas lidaram com o complexo processo de amalgamação das doutrinas e teorias por detrás da imagem da imago signorum. Através da representação em imagens, os artistas conseguiram traduzir as exasperações contidas nos manuscritos e escritos antigos. Conseguiam unir a doutrina do macrocosmo-microcosmo com a prática da flebotomia, tendo como pano de fundo toda uma seara de elementos astrológicos. Nada era representado de forma gratuita, tudo tinha um motivo exato de estar e correspondia a um elemento de ordem cosmológico, seja um signo, um planeta, uma constelação. Tudo tinha um por quê, uma funcionalidade nas representações que tinham um desígnio: a concatenação das doutrinas médico-astrológicas em imagens.

Contudo, esse tipo iconográfico demonstrava o tipo de embate que o artista travava entre os elementos provindos da astrologia tardo antiga, sua própria práxis e os conhecimentos particulares do mundo artístico. Para o artista era necessário um duplo processo de conhecimento sobre a antiguidade pagã: de um lado, os elementos artísticos provindos dessa antiguidade que sobreviveram, e de outro, os saberes astrológicos. Havia todo um embate travado com a sobrevivência dessas doutrinas na Europa ocidental. De certo modo, o medievo conseguiu resolver certos aspectos que se colocavam na relação desses componentes provindos da antiguidade pagã (filosofia, astrologia, astronomia) e colocava tudo sobre a égide das analogias divinas. Tudo, de um jeito ou de outro, estaria contemplado sob o espectro divino. E, apesar de certa relutância e estigma na “arte de ler o cosmos” por parte da Igreja, havia um certo conformismo no alinhamento dessas ideias.

Isso muda com o ressurgimento do problema do conhecimento – principalmente o insurgente conhecimento científico31. E o artista estará no centro desse embate, sendo o responsável pela criação, de ordem iconográfica, daquilo que exprime todas essas correntes. E como hipótese levantada neste artigo, está a ideia de que será no campo artístico que ocorrerá uma confluência, uma certa harmonização de todos os elementos responsáveis pela criação da doutrina do homo signorum e suas variantes. De fato, serão nas diversas ilustrações onde encontraremos, de forma primordial, uma adaptação, um ajuste imagético para que se consiga passar a ideia por detrás da ideia de homem dos signos. E isso, sempre será responsabilidade do artista em administrar o seu conhecimento astrológico e sua sapiência artística.

Podemos afirmar, em linhas gerais, que os textos sobre a relação zodíaco-homem criaram a possibilidade da criação de diagramas e representações desse tipo. Ainda mais se agruparmos a esses textos o Centiloquium – obra atribuída a Pseudo-Ptolomeu – obra constituída de cem aforismos sobre os astros e o cotidiano, onde reside a formulação de uma doutrina médica baseada nos astros bastante desenvolvida. Juntos, esses textos formam a base referencial e a base de pesquisas e consultas para os artistas que pretendiam verter os ensinamentos astrológicos em imagens. Franz Boll e Carl Bezold, num pequeno, porém consistente livro, propõem a tese da qual o próprio Manilio, ao compor sua poesia didáticaastronômica, já tinha em mente um tipo representativo quando se trata da imagem do homo signorum. De todo modo, não há como comprovar tacitamente esta afirmação, mas de acordo com os textos deixados pelo poeta, não podemos deixar de analisar a sua preocupação em construir uma espécie de repertório iconográfico dos preceitos astrológicos que escrevia.

Uma escultura mitraica (Fig. 2), datada do segundo século (II d.C.), é o elo inicial para compreendermos o debate que se inicia no medievo e adentra a primeira modernidade. Como sua datação é incerta, é comumente atribuída ao século II da era cristã, a sugestão é que fora criação romana sendo atribuída ao círculo daqueles que seguiam de alguma forma o Mitraismo no império romano. Esse baixo-relevo fazia parte da coleção de antiguidades adquiridas pelo Sigismondo IV d’Este, Marquês de San Martino.

Na época de Muratori (1672-1750) no palácio do Marquês Sigimund d’Est de San Martino, terra do duque de Reggio, distante 8 milhas desta cidade. Como senhor de S. Martino possuía antiguidades de Roma, bem parece, verdadeiramente, que o baixo relevo seja, também de origem romana.

δ

Com a derrocada da família San Martino, a obra foi adquirida, sob recomendação de Vicenzo Fabrizi, por Francesco III d’Este. Este relevo simboliza a representação de duas correntes comuns praticadas no império romano: o Mitraismo e o Orfismo. Antes de adentrarmos na análise dos elementos astrológicos, é necessário um exame atento aos meios representativos que compõem essa obra. Essa escultura representa o deus órfico Phanes – ou como Franz Cumont elege, um Aion (Kronos) mitraico – envolto de símbolos zodiacais. Vemos a representação de seu nascimento, Phanes/Chronos está alocado entre as duas metades do que se convém chamar ovo cosmogônico, que envolve sua cabeça numa extremidade e seus pés de cabra na outra parte. Chamas flamejantes saem de ambas metades do ovo. É caracterizado por traços humanos e alados (possuindo um par de asas) e em suas costas podemos verificar uma lua crescente e radiante. Atrás de sua cabeça e envolto ao seu corpo, uma cobra está enrolada, na altura dos seus ombros e peito temos as figuras de três cabeças: de um leão no centro de seu peito, um carneiro no lado esquerdo e uma cabra no lado oposto.

Em sua mão direita, segura uma espécie de mastro de luz (ou mesmo um relâmpago), enquanto que na mão esquerda um longo cetro que, de acordo com a mitologia de criação, Phanes “quebra a escuridão e estabelece a ‘luz pura’”. Nos quatro cantos do baixo-relevo temos as figuras de quatro rostos masculinos, sendo dois possuidores de barba. Junto com a figura da deidade contém a seguinte inscrição: “Euphrosy/n[us] et felix/p(ecunia sua) p(osuit)/felix pater”. E juntamente com as duas figuras masculinas da parte inferior traz a inscrição FELIX PATER, trata-se de uma dedicação para o uso votivo em um Mithraeum.

De acordo com os textos antigos, Phanes (Chronos) tinha as cabeças de um leão e de um touro, e entre elas o rosto de um deus. Porém, no baixo relevo de Modena a cabeça do touro foi substituída pela cabeça de um carneiro, e junto foi acrescentada uma outra cabeça de uma cabra. Franz Cumont sustenta a teoria na qual a inserção e prática do mitraísmo no império romano era vasta e diversa e por isso certos elementos iconográficos transmutaram-se, de acordo com a região onde era praticada tal religião. Tanto as tradições sagradas como a própria filosofia se modificam de acordo com o contexto social e político. A insuficiência de escritos que, de fato, poderiam nos revelar algo sobre a questão das modificações da iconografia do deus Phanes (Chronos) não nos permite tal coisa.

No entanto, o que intriga são os símbolos zodiacais que estão envoltos da figura de Phanes/Chronos. Temos uma esfera onde são representados os dozes signos zodiacais, de Áries a Peixes, os elementos zodiacais criam uma espécie de estrutura que harmoniza e, ao mesmo tempo, contempla o nascimento e os feitos da deidade. Ao fazer parte da criação do mundo, os signos têm uma função clara: estabelecer uma relação com o divino. De fato, e partindo das obras que chegaram até hoje, esse tipo de iconografia era especificamente para a representação de divindades.

Há uma outra peça (Fig. 3), que também retrata o deus Chronos, datada do século II d.C., permeado pelos doze signos zodiacais distribuídos em seu corpo e que está envolto de uma serpente que o envolve por inteiro. Nessa escultura os signos não formam uma estrutura esférica que contorna o corpo do deus, mas estão gravados, representados em seu próprio corpo que está envolvido pela serpente.

Podemos afirmar que, com os fatos levantados até aqui e baseando-se nos textos antigos analisados, os elementos astrológicos tinham uma função ritualística. De acordo com Maria Papathanassiou, esses rituais estabeleciam uma relação entre os fundamentos míticos – mitraismo/orfismo – com os fenômenos astrológicos ou mesmo com os aspectos da esfera celeste. Essas imagens faziam parte de rituais místicos no dia do equinócio vernal, e os signos zodiacais remitiam aos fenômenos celestes e terrestres que marcavam o transcorrer eterno dos anos.

O zodíaco é o mundo e sua forma elíptica sugere o ovo cosmogônico, do qual o cosmos se originou. Ele é alado como Protogonos (primogênito), Eros e Sol. Sua cabeça irradia-se como Apolo e Sol. A Lua crescente atrás dos ombros sugere suas relações com a Lua. Como Chronos e Protogonos, ele tem um dragão-serpente enrolado em seu corpo; ele segura um cetro (= rei do mundo) como Phanes e Erikepaios, e um raio como Zeus. Ele tem pés de cabra como Pan (ou pés de touro como Dionísio), deus o universo. As quatro cabeças nos cantos são os quatro ventos que simbolizam os quatro elementos primários (fogo, ar, água e terra)”.

Contudo, não há nenhuma interdependência entre as partes do corpo humano e os signos zodiacais, tanto no baixo relevo de Modena quanto na escultura de Arles. O que ratifica a tese onde a função dos elementos zodiacais residia na sua combinação com as religiões pagãs que mantinham relações próximas com a cosmologia aplicada, ou seja, a astrologia divinatória. Assim, o que difere essas representações antigas do homo signorum, está no fato, segundo Harry Bober, que as primeiras estão subordinadas em retratar as divindades, integrando o seu universo de acordo com sua cosmologia. Já as representações medievais e renascentistas do homem com o zodíaco mostram uma relação interdependente com o universo. Porém, em ambas imagens fica explícito a subordinação perante o cosmos, seja como agente criador ou criatura. Tanto que nas representações a partir do século XII, algumas imagens vêm acompanhadas da inscrição “microcosmo”, o que evidencia o funcionamento de uma estrutura onde o ser humano reflete, à sua maneira, o cosmos.

A maioria das ilustrações médico-astrológicas que representam o homo signorum e suas ramificações são datadas do século XII ao XIV. Porém, uma pequena ilustração encontrada nos manuscritos de Paris (Fig. 4), o ms. Lat. 7028 f. 154r49, preserva o tipo de iconografia apresentado no relevo de Modena. Trata-se da única ilustração conhecida de uma autêntica melothesia tardo-antiga no século XI. Fritz Saxl defende a ideia de que se trata de uma cópia de um diagrama tardo antigo que ilustra o culto ao deus-Sol. Este Sol é representado no centro de um círculo e em seu entorno estão dispostos os doze signos do zodíaco, onde cada um corresponde a uma parte do corpo do deus-Sol. Nos quatro cantos da ilustração estão representados os quatro ventos transvestidos das quatro estações do ano (primavera, verão, outono e inverno), onde cada um carrega as características iconográficas que compõem sua estação.

Dessa forma, “o astro governa o mundo como um deus cósmico; a sua órbita e sua influência no céu são determinadas pela natureza do signo zodiacal que passa, e as partes do corpo humano correspondem aos segmentos da sua órbita”. A partir das considerações elaboradas por Fritz Saxl, conseguimos estabelecer um elo de ligação com as representações das divindades mitraícas. Ainda a divindade controla o cosmos, porém desta vez os signos cumprem um outro papel: de ordenar e impactar o corpo da divindade, que nada mais é do que um contraponto do que acontece com o corpo humano. O artista responsável, ao confeccionar a ilustração, tem como propósito emular a figura do deus Sol com Cristo (a posição da mão, as vestimentas, a própria barba).

De fato, essa pequena ilustração demonstra o conflito presente no século XI perante a sobrevivência tardo antiga da astrologia pagã. Esse confronto se dá, sobretudo, na conformação da ordem espiritual do tempo. É o impacto dos símbolos provenientes da antiguidade astrológica em reger o destino humano como motor dessa ordem. Entretanto, não podemos até o momento afirmar que existiu uma expressão pictórica da qual os artistas medievais puderam se basear.

As divindades dão lugar ao homem na conexão com os elementos astrológicos a partir da reintrodução dos textos astrológicos, a partir do século XI, na Europa latina via mundo árabe. Os componentes divinos, como o cetro, as asas, os raios não são mais representados, e aí reside a distinção. Como são elementos de representações de divindades não caberia representar do ser humano emulando tais entidades. Por açambarcar o conceito de microcosmo, o homem zodiacal, por exemplo, é representado com outros componentes, comum ao meio onde reside, como plantas, flores e até vegetais (Fig. 5), ou seja, “ele (o homem) é um microcosmo, isto é, um universo em redução”.

Embora o homo Signorum possa ser encontrado no mesmo manuscrito que o homem microcosmo, sugerindo uma distinção deliberada no significado dos dois tipos, eles também são usados de forma intercambiável, como no caso da fig. 5. Ao invés das figuras zodiacais sendo representadas permeadas pelo corpo humano, nessa figura, o artista optou por escrever os nomes dos signos zodiacais nas partes correspondentes pela regência astral. A figura, datada do século XIII, carrega consigo ramos de rosas (na mão esquerda) e de cravos (na mão direita), em ambos os lados, o artista insere mais tipos de plantas. Os escritos sob a cabeça remetem a ideia do homo signorum como “dominium signorum”, ou seja, o ser humano como entidade pertencente e subjugados aos signos zodiacais. Apesar dessa mudança, a filiação médica original é distintamente preservada no texto, que relata a doutrina do signo e do corpo.

Contudo, existe num manuscrito do século XV (Fig. 6) que fora copiado de outro manuscrito grego, o Parisinus grego 241958, e que por sua vez foi copiado de um modelo sírio. Nele temos a figura de um homem no centro de uma esfera sendo rodeado pelos doze signos zodiacais. Porém, desta vez, os signos emitem uma espécie de raio em direção ao corpo do homem, esses raios remetem a parte da qual o signo é o regente.

Essa ilustração se difere das demais pois mantém determinados elementos de composição até então não vistos em outras ilustrações. Os signos estão separados de acordo com o seu sexo; assim, na direita permanecem os signos considerados masculinos dentro da astrologia greco-romana, e na esquerda os signos ditos femininos. Ao lado de cada signo se coloca o indicativo da data solar a qual cada um representa, em grego, e acima de cada signo um texto explicativo sobre qual parte do corpo do humano ele rege. Franz Cumont, em nenhum momento, se atentou ao que poderia representar a figura desse homem que carregava em suas mãos uma clava e um manto, e por um breve tempo essa questão ficaria intacta. Foi Fritz Saxl que atentou para os elementos que este homem trazia em suas mãos. O cetro e o manto eram, na verdade e segundo Fritz Saxl, a clava e o manto leonino atribuídos a iconografia de Hércules que era venerado como entidade cósmica60, tendo seu paralelo e correspondente persa Mitra.

Fritz Saxl chegou a essa conclusão cruzando as informações contidas nas Dionisíacas de Nonno com as representações de Hércules como deus cósmico”. E conclui que talvez não se possa afirmar que esta ilustração se trata de um homem zodiacal (homo signorum), mas de outro lado, já continha o imaginário tardo antigo do “Primeiro Homem” (homem microcosmo). Assim, a imagem de Hércules como deus cósmico sendo atingido pelos signos zodiacais seria uma espécie de representação intermediária no que concerne a criação da figura iconográfica do homo signorum.

Por fim, temos, um outro manuscrito – também proveniente do século XV – o Vat. Urb. Lat. 1398 que, em seu fólio 10v (Fig. 7) encontramos uma outra forma de representação do homo signorum. Através de uma forma circular, o artista expressa a dinâmica astros-corpo humano. Ricamente ilustrado, o fólio 10v nos apresenta uma figura humana que encontra-se no centro da estrutura circular, seu corpo contorce-se como se estivesse planando no ar. Como símbolo de fé, as mãos estão juntas ao peito e cruzadas, os doze signos zodiacais estão no interior da forma circular – temos tantos os nomes dos signos escritos quanto suas imagens representadas. Diferentemente das outras representações analisadas até o momento, a iluminura da Biblioteca Apostólica Vaticana guarda elementos particulares na construção de sua iconografia. Atentemos ao signo zodiacal de Gêmeos, em alguns manuscritos ele é representado através de uma imagem onde temos duas pessoas idênticas, o que claramente remete-se à própria história do signo. Em outros manuscritos, como no livro de horas do duque de Berry, Gêmeos é representado a partir da iconografia de Adão e Eva, ou seja, uma figura masculina e outra feminina. No caso do manuscrito lat.1938, Gêmeos é posto na forma de uma figura siamesa masculina, as duas cabeças ocupam o mesmo corpo.

As imagens zodiacais estão representadas “à moda medieval” através das vestimentas e da modelagem dos cabelos, o que denota a utilização do repertório do artista na concepção das figuras dos signos. Outro elemento que chama a atenção é relação da lunação com os signos astrais, cada figura zodiacal é elencada a uma das fases da Lua. Assim, Áries, Câncer, Virgem, Sagitário Capricórnio e Peixes mantêm relações astrais com a Lua minguante, enquanto, Touro, Gêmeos, Leão, Libra, Escorpião e Aquário as relações astrais se estruturam com a Lua cheia. Em ambos os cantos inferiores temos dois anjos que sustentam a estrutura circular remetendo analogicamente, à forma do cosmos sendo amparado, firmados pela instância cristã que rege o universo. Assim, configura-se uma versão amplificada, do homo signorum, onde estão correlatos os signos zodiacais, a lunação, a fé cristã, o corpo humano e os preceitos médicos. Da divindade que cria os elementos astrológicos ao ser humano que é parte constituinte dos fenômenos cósmicos na criação divina, aos signos zodiacais cabe o trabalho de reger e impactar as diversas partes do corpo humano. Isso demonstra as etapas que possibilitaram o surgimento da iconografia do homo signorum. É a partir da conjunção dos signos (que passam a determinar o corpo humano através do desenvolvimento das práticas médico-astrológicas) que as representações deste tipo iconográfico começam a ser desenvolvidas. A empreitada rumo ao incognoscível movia o ser humano que travava um embate, no que concerne ao ressurgimento do problema do conhecimento em fins do século XV, entre o elemento mágico/astrológico e o elemento racional /matemático.

Ω