
Pinturicchio and assistants, Hermes Trismegistus (?) with the Zodiac, 1493, fresco, Sala delle
Sibille, Appartamento Borgia, Vatican Palace, Rome.
α
Maria Cláudia Almeida Orlando Magnani
Perspectiva Pictorum / Artigos Livres / v.1, n.2, jul-dez/2022.
γ
Resumo
Este trabalho aborda a sobrevivência dos símbolos astrológicos e zodiacais no mundo cristão. Afirma também que o paganismo não renasceu após o medievo, porém esteve sempre presente no cristianismo, não só como símbolos, mas como efetiva influência essencial sobre os homens e as suas vidas. A partir da compreensão warburguiana da arte, da astrologia e do conceito de Nachleben, aborda a presença da astrologia que aparece em todos os momentos da história do catolicismo, privilegiando a compreensão da sobrevivência das representações parietais nas igrejas. As representações astrológicas e dos símbolos do zodíaco no universo cristão são motivos de encantamento e admiração. Extremamente numerosas na Itália católica e em outros países da Europa, desde a Idade Média, só foram encontradas em dois templos no Brasil, já do século XX. A presença em tempos e espaços tão diversos comprova a energia de permanência desses elementos, tão fundamentais à essência humana quanto a própria arte.
Introdução
Uma surpresa que costuma acompanhar os atentos observadores das pinturas e outros adornos nas igrejas católicas europeias é aquela em relação à presença de símbolos do zodíaco e da astrologia. Compreender a sobrevivência desses elementos do paganismo e dos símbolos pagãos na época cristã não é tarefa simples. No percurso que orienta essa compreensão – especialmente a presença de representações plásticas da astrologia e dos símbolos do zodíaco nas igrejas católicas – passaremos pela apreensão da astrologia e da própria arte de acordo com Aby Warburg. Diante da história multifacetada da presença da astrologia em toda a longa história do catolicismo, fizemos escolhas de importantes autores e artistas, com exemplos teóricos e práticos da presença da astrologia e dos símbolos zodiacais na Igreja. Sem, no entanto, intentar esgotar o tema ou seus comentadores.
A astrologia e as questões divinatórias e proféticas foram elementos sempre presentes e peculiares no intricado quadro de relacionamentos inevitáveis da nova mensagem religiosa que o cristianismo trouxe ao ocidente. Essa complexidade se explica em certa medida pelo panorama multiforme (mas homogêneo na sua essência) das civilizações que afluíam dentro do Império Romano, onde surgiu e se afirmou a nova religião. Nessa realidade multifacetada tanto da parte da cultura pagã, como da judaica e da cristã que surgia, houve uma sede ávida de conhecimento do futuro, composta de esperanças e amedrontamento.
Notas para Compreensão da Astrologia e da Arte
Um importante autor ao qual nos remetemos nesta tentativa de cognição envolvendo a relação da astrologia com a arte no cristianismo é Aby Warburg (1866-1929). Dentre outras questões, este historiador da arte ficou célebre por tematizar o ressurgimento do paganismo no renascimento italiano. A tese que apresentou em 1891 como conclusão de seus estudos universitários, foi intitulada Sandro Botticelli Geburt der Venus und Fruhling (O Nascimento de Vênus e a Primavera de Sandro Botticelli) e foi publicada no ano de 1893. Trata-se de um entendimento do diálogo entre palavra e imagem no humanismo florentino nos anos oitenta do século XV, por meio de uma perspectiva histórico-artística que focava na relação entre o artista, o comitente e a figura do sábio conselheiro. Warburg afirmava que as duas pinturas de Botticelli: O nascimento de Vênus e A Primavera nasceram da encomenda feita por Lorenzo de’ Medici (comitente) e com uma base iconográfica estabelecida pelo erudito e docente da Academia Platônica de Florença (especialista em Ovídio), Angelo Poliziano. Este seria o sábio conselheiro de Lorenzo, intermediário entre Botticelli e Ovídio naquelas pinturas, encomendadas para ornar o salão da referida academia. Nessa análise sobre a obra de Botticelli, nota-se já em Warburg um manifesto empenho acerca da intelecção do processo de constituição das obras de arte e, ao mesmo tempo, um interesse em seguir e compreender as transmitâncias do legado antigo à era moderna. Ao falar da história da sobrevivência (Nachleben) da tradição antiga, Warburg abordou de forma especial a astrologia e os símbolos do zodíaco. Poder-se-ia dizer que sua ideia de fundo a este respeito é que a astrologia é parte dos esforços do homem ao longo dos séculos, para se orientar no mundo. Partindo das pinturas alegóricas de Botticelli, no renascimento, ele chegou à história do símbolo astrológico.
Porém, foi a partir de 1907 que Warburg iniciou estudos intensos sobre a história da mitologia e da astrologia, privilegiando a descrição de divindades pagãs em textos medievais e na sobrevivência do imaginário astrológico da antiguidade até os tempos modernos. Ele se dedicou sistematicamente aos estudos astrológicos a partir da leitura de um livro de Franz Boll (1867-1924). Este professor de filologia clássica na Universidade de Heidelberg, publicou em 1903 a obra Sphaera. Neue griechische Texte und untersuchungen zur geschichte der Sternbilder. O autor abordou ali o tratado de Teucro (século I a.C.) sobre o céu, que teve grande influência na Antiguidade Clássica. A partir de Teucro, Boll reconstitui a migração da astrologia e da astronomia grega por meio de suas transmissões na Ásia e na Idade Média Latina. Na época helenística, o céu foi acrescido de figuras advindas da tradição egípcia, aramaica e babilônica. Ele abordou também a mistura de elementos gregos e orientais, indianos e persas. O que Boll recuperou na sua obra, foi, portanto, a história de uma grande compilação impetrada por Teucro, e de como essa mescla migrou na Antiguidade e na Idade Média, entre culturas distintas de Oriente a Ocidente. Boll argumentou que a astrologia é uma tentativa secular para criar uma imagem unificada do mundo que surge por leis tão indecifráveis quanto inelutáveis da natureza. Ao refazer os estágios do desenvolvimento da história da astrologia, o estudioso alemão destacou como até à virada do século XVII a astrologia havia dominado o mundo com uma capacidade expansiva que nenhuma outra fé jamais conseguira ter. Em abril de 1925 Warburg organizou uma conferência com o título: A influência da Sphaera barbarica nas tentativas de orientação no cosmos no Ocidente, em memória de Franz Boll. O texto foi então preservado e não só representa uma homenagem puramente formal ao seu falecido colega, mas também constitui a tentativa mais orgânica empreendida por Warburg para estabelecer o significado da astrologia a partir de uma abordagem que ele mesmo define como biomórfica e ilustrar seu ponto de vista sobre como a ciência moderna chegou a questionar o antropomorfismo astrológico. A abordagem que Warburg faz sobre a astrologia não se esgota nessas obras referidas. Entretanto, não sendo possível aqui abordarmos os textos em sua completude, esses apontamentos dão-nos uma ideia do peso que teve o tema na sua obra.

Virgo represented by Ceres from a series of reliefs depicting the planetary symbols and signs of the zodiac by Agostino di Duccio (1418-81), c.1450. Chapel of the Planets, Tempio Malatestiano, Rimini, Italy.
A complexidade do pensamento warburguiano com relação à arte e à astrologia que aqui nos interessa, parte de uma compreensão anterior: sua concepção do homem. Na introdução à obra Fra Antropologia e Storia Dell’arte saggi, conferenze e frammenti de Warburg, Maurizio Ghelardi (2021) mostra como aquele autor considera o homem um ser cinético, cheio de dores, lutos, paixões, que tenta se apropriar e transformar a realidade, primeiro incorporando-a de forma antropomórfica, depois objetivando-a em formas. Desta maneira, Warburg concebeu a vida humana de forma cinética, como fluxo de energia, e a arte como um produto orgânico e equilibrado que brota de um processo vital marcado pela polaridade entre ethos e pathos. A tarefa da arte é acolher a dor (que ressurge sempre) e a dilaceração da vida. A arte representa assim, o reflexo humano de agarrar e dominar a vida, e ao mesmo tempo reflete o desejo de se distanciar de seu imediatismo construindo um objeto de representação mental ou visual. A arte figurativa é geralmente definida como um espaço intermediário entre sujeito e objeto ou entre sujeito e mundo. Os objetos que são ali reproduzidos são aqueles já ordenados, padronizados ideal ou praticamente e que, portanto, não devem mais ser temidos. A arte tem, pois a tarefa de afastar o medo e ordenar o mundo. O fio condutor da obra de Waburg é, como nos aponta Ghelardi, a relação entre vida e orientação no mundo.
A arte é compreendida por Warburg como uma manifestação entre o antropomorfismo e o pensamento simbólico. O homem primitivo aspira a uma união corpórea com a força do sobrenatural para condicionar seu poder (pela religião ou magia), e essa atitude contrasta com a da ciência moderna. Entre esses dois polos está a vida imaginativa: o caminho da linguagem e da metáfora; da empatia e da arte; que participa em certa medida tanto da atitude mágica quanto da racional. A arte se coloca na mesma posição intermediária que a imagem como ferramenta de orientação, uma vez que é uma intermediária entre a fobia humana diante do mundo e a linguagem matemática; entre religião e ciência. Neste interstício se encontram tanto a arte quanto a astrologia: entre a magia (e religião) e a ciência. Astrologia é matemática, mas ao mesmo tempo também é idolatria. Assim, a ligação entre o homem e a arte deve ser entendida, sobretudo como uma realidade na sua coexistência unitária e enraizada no seu interior religioso-cultural e artístico-prático.
Warburg nunca foi, de fato, um especialista em astrologia, nem um acadêmico no sentido estrito, mas sempre se propôs a investigar como o homem veio a se orientar no mundo objetivando as causas de suas fobias. Nessa concepção as estrelas aparecem como hieróglifos para o futuro. O surgimento e a persistência da astrologia na história da humanidade remetem a uma necessidade psíquica de enfrentamento do medo do desconhecido e do futuro, mas também do imperativo de ordenar o mundo para esta defrontação.
Toda essa abordagem warburguiana (desde a influência de Boll e de Teucro) mostra como a partir dessa compreensão, a civilização europeia não é vista mais como uma entidade cultural autóctone e unitária, mas uma forma de civilização sincrética. A Europa constitui um espaço de intercâmbio cultural, terreno de migração e processos de interferência. Não tem uma origem única, pois são as diferenças que garantem a sua unidade.
As antigas imagens astrais, cunhadas no passado arcaico da civilização, conservam uma energia interna que mais tarde foi transformada para desenvolver uma orientação científica no mundo. Mas, como a astrologia assumiu seu caráter divinatório? Segundo Boll (1924) a origem da astrologia no mundo helenístico remonta à religião oriental das estrelas. A religião babilônica efetivamente configurou as estrelas e a elíptica como um zodíaco com figuras de animais, cujo culto havia sido reprimido. Foi a ligação entre os signos do zodíaco e os planetas que deu ao sistema astrológico seu caráter preditivo. No final, a religião, que criou o zodíaco, conseguiu superar o culto dos animais, transformando as divindades teriomórficas em estrelas luminosas que emanavam seus raios. Dessa forma, a religião se emancipou das divindades animais, e o culto das estrelas foi uma espécie de sublimação da ideia do divino. A astrologia, como o impulso primordial da ciência, contém o germe da construção lógica e também o processo pelo qual os símbolos ordenadores foram criados. A ideia da persistência do antigo é vizinha à concepção de certa incorporação e continuidade entre procedimentos antropomórficos e expressões figurativas afins; entre sistemas lógicos (conceituais) e mitos; entre crenças populares e literatura; entre paganismo e o cristianismo. Essa ideia é fundamental para compreendermos a existência e a persistência das imagens astrológicas e zodiacais nas igrejas.
Se hoje sabemos sobre as origens míticas da astrologia; sobre a sobrevivência das divindades pagãs no mundo cristão; e ainda que é falsa a ideia de um renascimento do antigo pantheon nos séculos XV e XVI após um extenso período de ocultamento, devemos isso a Warburg e aos warburguianos. Ressaltamos dentre eles, Jean Seznec, que em seu ensaio A Sobrevivência dos Antigos Deuses, afirma – enfatizado no prefácio de Salvatore Settis – que na cultura ocidental a tradição judaico-cristã está peculiarmente ligada aos deuses do Olimpo e às origens míticas da astrologia. Ainda que em certa medida se afaste das assertivas de Warburg, Seznec comunga com ele a ratificação do argumento que refuta a concepção de que no renascimento houve uma ruptura radical com o passado, ou que aquele período tenha significado um início literal. Isto é, trata-se da negação do desaparecimento dos deuses pagãos no período da Idade Média, afirmando em vez disso, a metamorfose daqueles deuses. Contrapondo-se ao que era convencional em sua época, Seznec afirma a partir do conceito de metamorfose, como os deuses medievais – “esses deuses fantasmáticos e abastardados tão teimosamente incompreendidos” – continuaram a viver através dos séculos e nos mais distintos países.
Astrologia e Sobrevivência no Mundo Cristão

Natividade. Giovanni da Capestrano, pintura em madeira, 1470.
Nos diferentes momentos da história da humanidade nos quais as questões proféticas e divinatórias surgiram e ressurgiram com fervor, foi frequente o aparecimento de diferentes estirpes de profetas e adivinhadores, com maior ou menor sucesso ao lado da astrologia com a sua prática divinatória do zodíaco. É legítimo pensar que efetivamente a astrologia não saiu completamente de cena com a chegada do cristianismo. Pode-se compreender que de uma forma ou de outra, os astros estavam ainda presentes no mundo cristão. Dentro e fora da Igreja, em distintos períodos, eruditos se dividiram entre o apoio e a condenação à astrologia, sua concepção como ciência ou como crendice.
Não sendo o escopo deste trabalho um enfoque exaustivo deste tema, deve-se, entretanto ter em mente que a fé nas estrelas não foi um consenso no universo cristão. Para uma abordagem profunda, seria preciso levar em conta distintos momentos, fontes, divisões – especialmente entre a astrologia judicial ou determinista e aquela puramente probabilística– e concepções da astrologia neste universo, sua incorporação como prática e sua legitimação ou condenação diante das verdades da fé. Existem exemplos consistentes e eloquentes tanto da defesa da astrologia, quanto da sua condenação em distintos momentos da história da Igreja Católica. Sendo evidentemente impossível abordar aqui todos os meandros dessa história já muito estudada, basta citar a postulação de dois grandes nomes da teologia católica e suas posições específicas com relação à astrologia: a crítica e condenação enfática feita por Santo Agostinho e a defesa da verdade predita por astrólogos feita por Santo Tomás de Aquino. No mesmo sentido, ainda a título de exemplo, se os versos apocalípticos falam frequentemente da fé nas estrelas, abundam exemplos de sua reprovação. Prova eloquente da sua condenação é a Carta de São Paulo aos Romanos (8,38-39) na qual ele celebra o triunfo do amor de Deus sobre todos os poderes astrais e do destino. Também Boll e Bezold recordam que os padres apologistas afirmaram que adorar o universo que é a obra de Deus, em vez de adorar Deus mesmo é um sacrilégio tolo. No entanto, quando a comunidade cristã, como uma nova religião, precisou se abrir à cultura laica, foi forçoso que a crença nos astros fosse um elemento essencial, não facilmente desenraizável de tal cultura, segundo afirma o escritor e astrólogo romano do século IV Fírmico Materno. De tal modo, não é de se estranhar que a perseverança da influência da religião dos astros se mostre, por exemplo, quando a Igreja, em meados do século IV, de certa forma substitui Cristo pelo Deus Sol, compreendido como Sol da Justiça, na medida em que muda a data do seu nascimento para 25 de dezembro. Este é o dia em que, para os pagãos, se comemorava o aniversário do Sol. Isso significa que a partir daí o dia se estendia e o novo Sol dava início a um período anual. Segundo Eduard Norden a fórmula Lux crescit que já existia na liturgia pagã e também no calendário grego, passou a comparecer de maneira literal na prédica cristã do Natal. Também o domingo ou o dies Solis, herdado da semana planetária dos astrólogos pela Idade Média, tornou-se o dia do Senhor, instituído acima do shabbat dos judeus, invocando sentimentos de bem-aventurança em milhões de crentes que muitas vezes não conheciam a origem pagã daquele termo. Como nos informam Boll e Bezold, ao fazer a ligação do milagre do eclipse do sol à morte de Jesus Cristo e ainda, ao contar a lenda da estrela do oriente que guiara os Reis Magos a Belém, os próprios evangelhos acabaram por fazer uma estreita ligação entre a astrologia e a vida de Jesus. Essas são afirmações que mostram como a questão astrológica está posta no cristianismo desde os seus primórdios.
Se papas praticaram a astrologia e contrataram astrólogos em seus apostolados, ao mesmo tempo, a Igreja lutou contra uma grande quantidade de assim consideradas superstições desde os primórdios do cristianismo. Sendo uma religião essencialmente profética na qual a profecia é uma “gracia grátis data”, houve a tentativa de estabelecer, no que se refere às profecias, o que era de inspiração divina e o que não era. Imensa era a presença de sonhos, visões, profecias de vários tipos. Era imperativo, portanto, concomitantemente provocar a inclinação natural das pessoas às previsões e disciplinar e direcionar as inspirações proféticas de maneira que não viessem a ser ameaçadoras para o cristianismo. Dentro desse espírito, Gregório Magno, por volta do ano 600 elaborou uma obra plena de alegorias, demonstrando crer nos dons proféticos.
Segundo Lerner em um momento histórico no qual os limites entre o natural e o miraculoso, o presente e o futuro se abrandavam até mesmo nas mentes da elite cultural, era efetivamente de se esperar que houvesse uma intensificação das consultas a todos intermediários que tinham acesso ao futuro, dentre os quais os adivinhos, videntes, profetas, e astrólogos.
Nesse clima de imprecisão entre as categorias naturais e sobrenaturais, que pode ser notada nos testemunhos gentios para as verdades cristãs, tornaram-se extremamente importantes os depoimentos não cristãos que anunciavam a doutrina cristã. E é neste sentido que se pode compreender a permanência da representação da astrologia e dos símbolos do zodíaco nas igrejas católicas. Ajunte-se a isso, o que já afirmamos de acordo com Warburg: a astrologia compreendida como o enfrentamento dos medos e um modo de orientação do homem no universo. Esta compreensão coincide, em certa medida, com os propósitos das religiões em geral.
Na literatura sagrada e especialmente na teológica, temos vários exemplos de legitimação da astrologia no catolicismo. O apóstolo Paulo é aqui recordado para legitimar e valorizar os testemunhos de fora, dentre eles os astrólogos: “Também deve ter boa reputação perante os de fora, para que não caia em descrédito nem na cilada do diabo” (São Paulo, Carta a Timóteo, 3:7). As origens antigas da astrologia eram já familiares para os leitores medievais através das Antiguidades Judaicas, de Flavio Josefo, através da sua obra traduzida para o latim no século VI e também por meio de seus leitores posteriores, como afirma Smoller. Josefo, segundo essa autora, remonta a arte da astrologia ao tempo dos patriarcas. Como exemplo disso, atribui a longevidade de Noé a um conhecimento profundo tanto de geometria como de astrologia e atribui ainda o conhecimento das estrelas a Abraão. Através dessas fontes a astrologia foi concebida como uma arte antiga e revelada, praticada pelos patriarcas, tornando-se uma corrente fundamental da tradição cristã.
Houve também na Idade Média (momento fundamental para compreensão deste tema) uma onda de traduções de textos de astrologia do universo árabe e subsequente composição de novas obras astrológicas latinas. Destacam-se nesse contexto, como informa Sadan, as obras do teólogo persa Albumasar, nascido no século VIII. Ele foi também matemático, astrônomo, astrólogo e filósofo, tendo escrito uma série de manuais práticos sobre astrologia que tiveram grande influência na história intelectual muçulmana e, ainda (por meio das traduções), influenciaram grandemente a elaboração da astrologia medieval. Segundo Smoller, Hermann de Carinthia, tradutor de Albumasar, incorporou em sua obra De Essentiis o nascimento da Virgem como posta no Introductorium Maius do autor muçulmano e também vestígios da sua história das origens e dos progressos da astrologia. O uso dos textos de Albumasar por Hermann serviu tanto para defender a validade da astrologia quanto para reforçar a fé cristã.
É também de grande importância nesse contexto, a obra do mestre do doutor de Aquino (já aqui citado), Alberto Magno. O seu tratado Speculum Astronomiae seria responsável pelo elogio definitivo que consolidou a fama de Albumasar como profeta do nascimento de Cristo na baixa Idade Média, (abordado por Bezold e citado por Avilés) nos finais do século XIII. Ali ele oferece uma classificação dos livros lícitos e ilícitos de astrologia e magia, no qual legitima a obra de Albumasar, além de estabelecer uma relação entre o nascimento de Cristo e o horóscopo de Cristo, o que explica também como essas duas cenas se fundiram em uma só imagem aos olhos dos ilustradores. Foi assim também consolidada a relação entre a constelação zodiacal de Virgem e a Virgem Maria, que teve grande sucesso na Idade Média.
O filósofo do século XV Marsílio Ficino afirma que a astrologia foi mais uma forma pela qual os gentios chegaram aos mistérios cristãos. Dentro do seu sermão De Stella Magorum a estrela leva os magos ao menino Jesus não apenas pelo seu brilho e movimento, mas porque eles sabiam interpretar a posição dos astros em torno da estrela. Nessa obra ele cita as palavras de Albumasar sobre a imagem da donzela na primeira face de Virgem, que remete à Maria, como nos informa Buhler.
Algumas Representações Plásticas da Astrologia na Igreja Católica Italiana e um caso Brasileiro
São, assim, inúmeras as representações astrológicas e do zodíaco nas igrejas católicas da Europa desde a Idade Média, como nos mostram Fritz Saxl e Erwin Panofsky. O que nos importa aqui é compreender a permanência dessas figurações quando se tem, às vezes concomitantemente, apologias e condenações da astrologia ao longo da história da humanidade e da Igreja. Desta maneira a resposta que propomos é que a astrologia é longeva e sobrevivente porque trata de maneira especial algo que é essencial ao ser humano independentemente de tempo e espaço: a necessidade de enfrentamento dos medos e de encontrar um modo de orientação do homem no universo, prevendo o futuro. Quanto à sua sobrevivência no mundo cristão, justifica-se, sobretudo pela sua importância como “profeta de fora”, em uma religião essencialmente profética.
Diante da multiplicidade de representações, uma escolha extremamente reducionista se impõe pela exiguidade de espaço. Destacamos três representações de grande importância na Itália: o Templo Malatestiano, o Apartamento Borgia e o Batistério de São João no Duomo de Pádua.
No Templo Malatestiano de Rimini, temos as esculturas de Agostino di Duccio que foram abordadas por Warburg. O autor mostrou como, sendo quase maneiristas na sua figuração, fazem “empréstimos” de obras de arte antiga. Trata-se da terceira capela à direita no templo, dedicada a São Jerônimo. É conhecida como a ‘capela dos planetas’, pelas representações dos planetas e seus relativos signos do zodíaco.
Em outro local, no chamado Apartamento Borgia, no Vaticano, estão representadas no teto, 12 sibilas alternando em pares com os profetas, enquanto nos painéis octogonais aparecem os símbolos do zodíaco. Fritz Saxl, em 1957, escreveu The Appartamento Borgia, pelo Instituto Warburg, traduzido por Eugenio Garin e publicado na Itália, pela primeira vez, em 1982, como um capítulo do livro La Storia delle Immagini. Ali ele faz uma importante análise do ponto de vista da história social da arte, que não fora ainda feita.
Maria Elena Ranieri aborda A Criação do Mundo de Giusto de’ Menabuoi em seu livro L’immagine del mondo nel Rinascimento Europeo. Segundo a autora, a cena que retrata a Criação do Mundo – um detalhe no ciclo de afrescos narrando as histórias do Gênesis – é de considerável importância. A pintura datada entre 1370 e 1378, se encontra no Batistério do Duomo de Pádua. Na cena da Criação do mundo o zodíaco expressa a função de Cristo como o senhor do tempo cósmico. O pintor fez parte do movimento pós-Giottesco florentino e passou a maior parte de sua vida entre Milão e Pádua, trazendo consigo grande parte da cultura pictórica florentina da época.

Igreja de São José de Belo Horizonte – Signo de Sagitário – Corredor Azul
Na Igreja de São José, em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, existem representações do zodíaco, bastante raras, se não únicas no Brasil. A igreja teve o seu conjunto arquitetônico e paisagístico tombado em 10 de novembro de 1994 pelo Conselho Deliberativo do município de Belo Horizonte. O tombamento se justificou pela sua importância como marco simbólico para a cidade.
A data de fundação da cidade de Belo Horizonte, uma cidade planejada por um esforço institucional da elite mineira, é 12 de dezembro de 1897. Mas, foi em 1891 que o Congresso Constituinte Mineiro decidiu pela transferência da capital do estado que se localizava em Ouro Preto. Já no início do século XX a Congregação do Santíssimo Redentor e a Igreja de São José iniciaram suas atividades na nova capital. O então bispo de Mariana Dom Silvério Gomes Pimenta convidou os missionários redentoristas para assumirem os trabalhos religiosos na capital nascente que naquela altura possuía apenas uma paróquia. Tratou-se de uma missão holandesa que, segundo Araújo, intentava promover um tipo de fé, distante de práticas e ritos populares e pagãos. Entretanto, juntamente com a figuração da Santíssima Trindade; de anjos e santos; Nossa Senhora e o menino Jesus; dos antepassados de Jesus desde Abraão até São José estão os símbolos pagãos do zodíaco. O pintor responsável pela ornamentação da igreja foi – segundo a História da Igreja de São José afixada dentro do templo e assinada pelos missionários redentoristas – o alemão Guilherme Schumacher. Ali está também a informação de que os símbolos do zodíaco pintados nas naves laterais indicam que Deus é o Senhor da história e do tempo. Na abside daquele templo, bem como no Santuário de São Geraldo em Curvelo, Minas Gerais – criado também pelos redentoristas no início do século XX –, há pinturas parietais com os quatro elementos do zodíaco: ar, água, terra e fogo.
Considerações Finais
As representações da astrologia e dos símbolos do zodíaco no universo cristão são motivos de encantamento e admiração. Extremamente numerosas na Itália católica e em outros países da Europa, desde a Idade Média, só foram encontradas em dois templos no Brasil, já do século XX. Tão distintos tempos e espaços comprovam a energia de permanência (Nachleben) desses elementos.
Arte e astrologia comungam o lugar intermediário entre a atitude mágica e a racional, sendo que a astrologia é ao mesmo tempo ciência e idolatria. Arte e astrologia são, pois, intermediárias entre o medo humano diante do mundo (e da sua própria finitude) e a linguagem matemática; entre religião e ciência.
O caráter preditivo da astrologia atende a algumas necessidades essenciais do ser humano como a de se comunicar com o transcendente e de saber dos acontecimentos porvindouros, na tentativa de dominá-los. Por serem essenciais, essas necessidades e características ultrapassam tempos e espaços, como mostra Warburg ao abordar as transmitâncias do legado antigo na arte moderna. Assim, a sobrevivência dos símbolos da astrologia no mundo cristão representa a sobrevivência da atitude essencialmente fóbica do homem diante do universo e de uma tentativa de seu enfrentamento.
A resistência do antigo é também um sintoma de uma realidade tão óbvia quanto invisível em tempos conservadores: a civilização humana é essencialmente sincrética e produto de intercâmbios culturais imemoriais, migrações de processos e inúmeras interferências que por vezes se retroalimentam. Assim, a astrologia e o zodíaco que migraram de oriente a ocidente, desde tempos longínquos e em diferentes momentos da história da humanidade, aparecem em igrejas no Brasil, em adornos do século XX.
O ser humano na concepção de Warburg, este ser que se move em meio a dores, luto, medos e paixões, tenta se apropriar da realidade e se orientar no mundo por meio da arte (produto de um processo vital polarizado entre ethos e pathos) e também da astrologia. Arte e astrologia comparecem, portanto, como forças acolhedoras diante da dilaceração inevitável da vida. Agarrar e sobrepujar a vida, se distanciar do imediatismo construindo um objeto de representação mental ou visual, eis o escopo primeiro e perene da arte.
Orientar-se no mundo aterrorizante e dominar o futuro individual e coletivo, eis o intuito primário da astrologia. A arte que representa a astrologia é, pois, essencialmente humana, porque resultado das dores essenciais dos seres humanos, independentemente das variáveis de tantos tipos que aparentemente nos diferenciam.
δ
Referências
ARAÚJO, João Teixeira de. Cidade Moderna, Igreja Persuasiva: A Legitimação de uma Nova Capital para Minas através da Igreja São José. e-hum Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 6, n.º 2, Agosto/Dezembro de 2013.
BEZOLD, Friedrich Von. Astrologische Geschichtsconstruction im Mittelalter. Deutsche Zeitschrift für Geschichtswissenschaft Bd. 8 (1892), 29-71. In: AVILÉS, Alejandro García. Alfonso X, Albumasar y la Profecia del Nacimiento de Cristo. IMAFRONTE, Múrcia, n. 8-9, p. 189-200, 1992-1993.
BÍBLIA. Sagrada bíblia católica: Antigo e Novo Testamentos. Carta de São Paulo aos Romanos. Tradução de José Simão. São Paulo: Sociedade Bíblica de Aparecida, 2008.
BÍBLIA. Sagrada bíblia católica: Antigo e Novo Testamentos.São Paulo Carta a Timóteo. Tradução de José Simão. São Paulo: Sociedade Bíblica de Aparecida, 2008.
BOLL, Franz. Sphaera: Neue griechische Texte und Untersuchungen zur Geschichte der Sternbilder. Dresden: Teubner, 1903, 564 p.
____________. BOLL, Franz. Die Geburt des Kindes. Deutsche Literaturzeitung, n.s. XLV,1924, p. 769-782. In: GHELARDI, Maurizio. Introduzione. Magia Bianca. In: BEZOLD, Carl; BOLL, Franz. Le stelle: credenza e interpretazione. Traduzione di Maurizio Ghelardi e Susanne Müller. Torino: Bollati Boringhieri, 2011.
BUHLER, Stephen M. Marsilio Ficino’s De Stella Magorum and Renaissance views of the Magi. Renaissance Quarterly, v. 43, n. 2, p. 348-371, Summer 1990.
CALDEIRA, Altino Barbosa. A conservação do patrimônio histórico, arquitetônico e urbano do conjunto da Igreja de São José de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Disegnarecon, Numero Speciale DoCo 2012 – Documentazione e Conservazione del Patrimonio Architettonico ed Urbano.
GASPARRO, Sfameni Giulia. La sibila: voce del Dio per pagani, ebrei e cristiani: un modulo profetico al croce via delle fede. In: CHIRASSI, Ileana; SEPPILLI, TuLlio (éd.). Sibille e linguaggi oracolari: mito, storia, tradizione. Atti del convegno Macerta-Norcia, 20-24 settembre 1994, Macerata. Pisa: Instituti Editoriali e Poligrafici Internazionali, 1999. p. 505-553.
GHELARDI, Maurizio. Introduzione. Magia Bianca. In: BEZOLD, Carl; BOLL, Franz. Le stelle: credenza e interpretazione. Traduzione di Maurizio Ghelardi e Susanne Müller. Torino: Bollati Boringhieri, 2011.
__________________. Magia Bianca. Aby Warburg e l’astrologia: un «impulso selvaggio della scienza». In Aby Warburg astrológica saggi e appunti 1908-1929. Torino: Giulio Enaudi Editore s.p.a., 2019.
_________________. Introduzione. In WARBURG, ABY. FRA ANTROPOLOGIA E STORIA DELL’ARTE SAGGI, CONFERENZE E FRAMMENTI. Torino: Giulio Enaudi Editore s.p.a., 2021.
HEBERMANN, Charles George, The Catholic Encyclopedia, Volume 12: Philip II Reuss Grand Rapids, Copyright Christian Classics Ethereal Library, 2005, p. 74 e 104.
LERNER, R. E. MEDIEVAL PROPHECY AND RELIGIOUS DISSENT. PAST AND PRESENT, n. 72, p. 3-24, agosto 1976.
MAGNANI, M. C. A. O. Sibilas: a sobrevivência das profetisas pagãs no mundo cristão. HORIZONTE – Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 17, n. 54, 31 dez. 2019, p. 1571.
MATERNO, Firmico. Mathesis, 1, 10, 14; 5, praef.3. In: BEZOLD, Carl; BOLL, Franz. Le stelle: credenza e interpretazione. Torino: Bollati Boringhieri, 2011.
NETO, L. D. Das terras baixas da Holanda às montanhas de Minas: uma contribuição à história das missões redentoristas durante os primeiros trinta anos de trabalhos em Minas Gerais. 2006. Tese (Doutorado em Ciência da Religião) –Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2006.
NORDEN, Eduard. Die Geburt des Kindes. Geschichte Religiösen Idee. Bremen: Dogma, 2013.
PARERA, Leticia Bañares. El conocimiento profético, entre la razón y la fe. In: BAIXAULI, M. L. et al. (org.). Fe y razón. Navarra: Ediciones Universidad de Navarra, 1999. p. 171-176.
RANIERI, Elena Maria. L’immagine del mondo nel Rinascimento europeo. Venezia: Università Ca’ Foscari Venezia, 2018.
SADAN. I segreti astrologici di Albumasar. A cura di VESCOVINI, Gabriela Federici. Torino: Nino Aragano Editore, 2000.
SAXL, Fritz. La storia delle immagini. Bari: Editore Laterza, 1982.
___________. La fede negli astri: dall’Antichità al Rinascimento. Torino: Bollati Boringhieri, 2016.
____________ y PANOFSKY, Erwin. Mitología Clássica en el Arte Medieval. Buenos Aires: Sans Soleil, 2016.
SARACINO, Francesco. Luis de Morales e l’oroscopo Di Gesù. Gregorianum, vol. 91, no. 2, 2010, pp. 300–25.
SETTIS, Salvatore. Presentazione. SEZNEC, Jean. La sopravvivenza degli antichi dei: saggio sul ruolo della tradizione mitológica nella cultura e nell’arte rinascimentali. Torino: Bollati Boringhieri, 2015.
SEZNEC, Jean. La sopravvivenza degli antichi dei: saggio sul ruolo della tradizione mitológica nella cultura e nell’arte rinascimentali. Torino: Bollati Boringhieri, 2015.
SMOLLER, Laura Ackerman. Teste Albumasare cum Sibylla: astrology and the Sibyls in medieval Europe. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences 41, Arkansas, 2010, p. 76–89.
TEIXEIRA, Felipe Cabral Teixeira. Aby Warburg e a pós-vida das Pathosformeln antigas. In História da historiografia, Ouro Preto, número 05, p.134-147, setembro 2010.
VERARDI, Donato. Gli astri, gl’angeli e li vescovi. Le fonti patristiche e medievali del pensiero astrologico di Sisto V, In Rivista di Storia e letteratura religiosa, XLVVII, 1, pp. 147-156, 2011.
VESCOVINI, Graziella Federici. Medioevo magico. La magia tra religione e scienza nei secoli XIII e XIV. Torino: UTET 2008, 494 p.
____________________________. La storia astrologica universale. L’orscopo delle religioni tra Medioevo e Rinascimento. Philosophical Readings Issue VII – Number 1 – Spring 2015 p. 8-41.
VICENTE, Rodrigo Fernandes. A Convergência dos Astros: fé, ciência e astrologia na Idade Média. In Mythos: Revista De História Antiga e Medieval, Ano IV, Número I, 2020, p.119-256
WARBURG, Aby. Astrológica saggi e appunti 1908-1929. Torino: Giulio Enaudi Editore s.p.a., 2019.
________________. Fra Antropologia e Storia Dell’arte saggi, conferenze e frammenti. Torino: Giulio Enaudi Editore s.p.a., 2021.
Ω
Categorias:Astrologia na Arte




