Astrologia Medieval

A Convergência dos Astros

Fé, Ciência e Astrologia na Idade Média

Rodrigo Fernandes Vicente

Graduando em História na Universidade Federal de São Paulo
MYTHOS – Revista de História Antiga e Medieval
2020, Ano IV, Número I – ISSN 2527-0621
Núcleo de Estudos Multidisciplinares de História Antiga e Medieval
Universidade Estadual da Região Tocantins do Maranhão

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Resumo

O uso da astrologia na Idade Média é marcado por percalços e por intensos debates teológicos e filosóficos a respeito de sua aplicação. Desde Agostinho de Hipona até o Rei Afonso X, o Astrólogo, diversas foram as posições daqueles que deram seus pareceres a respeito da conveniência (ou não) do uso dos astros para reger as questões humanas.

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É difícil precisar onde e em qual povo a astrologia surgiu. Diversas populações humanas, desde milênios antes da Era Comum, manifestaram alguma forma de tentar prever ou relacionar acontecimentos do quotidiano, da política, ou das produções agrícolas com a posição dos astros nos céus. Os astrólogos medievais e renascentistas eram personagens fundamentais na sua época, pois não havia decisão que fosse tomada sem passar pelos seus crivos. Consultavam os astros tanto para definirem datas de coroações de reis quanto para escolher o melhor momento para iniciar campanhas militares. No mundo ocidental – que é onde mais nos interessa – a astrologia se fez foi com os Caldeus. Notórios conhecedores das estrelas, foram eles que conceberam o horóscopo tal como o conhecemos hoje em dia; seus conhecimentos chegaram até o mundo grego, ao Egito e à Roma – onde se dissipou e popularizou. Nos primeiros séculos da cristandade poucos foram aqueles que ousaram se opor a questionar a veracidade da astrologia, Sexto Empírico, filósofo pirrônico e um dos principais céticos do final da antiguidade, que viveu durante os séculos I e II d.C., produziu críticas duríssimas a astrologia caldeia que se disseminou pelo Mediterrâneo, e da forma que ela era praticada pelos gregos. Vale ressaltar que, nessa época, o ceticismo grego já estava dando sinais de declínio e a filosofia grega já se sincronizava com o pensamento místico egípcio sob o hermetismo. Sua obra mais conhecida de embate direto com a astrologia é o livro Contra os astrólogos, que é apenas uma parte de uma obra maior chamada de Contra os matemáticos, na qual ele critica os retóricos, os físicos, os aritméticos, os geômetras, os músicos e, por fim, os astrólogos. Na ferocidade de sua crítica, Sexto Empírico demostra um vasto conhecimento de como a astrologia era produzida na virada para o III século da cristandade, o que faz a sua obra ser tida como uma importante fonte para se tratar sobre a astrologia do período.

Trata-se [agora] de investigar acerca da astrologia ou matemática, não a [arte] completa, organizada a partir da aritmética e da geometria […], nem acerca da capacidade de previsão conforme [praticada] por Eudóxo, Hiparco e semelhantes, que algum chamam também de astronomia (pois é observação de fenômenos, assim como a agricultura e a pilotagem, a partir da qual é [possível] predizer secas, tempestades e pregas, e também terremotos e outras mudanças de tal tipo no ambiente circundante), mas contra a genealogia, que os Caldeus reverenciam com nomes adornados, autoproclamando-se matemáticos e astrólogos. […]

(Sexto Empírico)

Nesse trecho, vemos como Sexto Empírico irá sistematizar a sua crítica. Em um primeiro momento, é possível perceber como o filósofo utiliza matemáticos e “astrólogos” praticamente como sinônimos, deixando claro como na antiguidade não havia uma distinção clara entre essas duas denominações. Vale lembrar que tanto Sexto Empírico e Ptolomeu eram contemporâneos e ambos estiveram em Alexandria praticamente na mesma época; época essa que foi quando Ptolomeu produziu um tratado matemático em quatro livros, Tetrabiblos, obra na qual são apresentadas diversas questões sobre astrologia. Apesar das coincidências nas biografias desses dois personagens, como Machado nos mostra, não é possível afirmar se Sexto Empírico teve conhecimento da obra de Ptolomeu, e vice-versa, e se esses dois estiveram em Alexandria ao mesmo tempo, porém – e nisso temos certeza – e de que os dois produziram suas obras no século II, em grego, com os mesmos paradigmas filosóficos da época. Portanto, como conclui Machado, compartilhavam o mesmo “mundo”.

A crítica de Sexto Empírico se dá, sobretudo, no tocante a questão da configuração astral, e um dos pontos centrais que ele aborda é se configuração astral que importa é a do momento do nascimento ou o do momento da concepção. O filósofo conclui que, no final das contas, não será possível estabelecer o horóscopo, já que o parto é um processo demorado. E em um segundo momento o filósofo descreve a cerda de se for no momento do parto, em que momento que é? No momento em que a cabeça do feto aponta para fora do corpo da mãe? E, caso não dor assim, é quando o feto toca o chão? E são nesses caminhos que Sexto Empírico elabora sua crítica. No final das contas Sexto Empírico, no segundo século da cristandade, já estava confrontando tais teses pseudocientíficas (mesmo séculos antes do método científico ser concebido tal como conhecemos).

Segundo Thomas Kuhn, “Aristóteles foi o último grande cosmólogo da antiguidade; cinco séculos mais tarde, Ptolomeu foi o último grande astrônomo”, e nessas palavras temos uma boa uma síntese da produção do conhecimento astronômico na antiguidade. Em tempos onde a atividade científica não era tão estruturada, as disciplinas se encontravam na grande barca que aglomerava todos os conhecimentos, a filosofia. Os trabalhos de Aristóteles e Ptolomeu irão encontrar uma estabilidade de mais de milênio dentro daquilo que se pode considerar como a vanguarda do conhecimento humano no que diz a respeito dos astros. Em suma, os dois trabalhos se complementam. Aristóteles, em Dos céus irá estabelecer a sua visão do cosmos, de maneira relativamente simples, sem ambição de fazer demonstrações através dos cálculos,48 tendo o carácter astronômico da obra até mesmo uma posição secundária. O cosmos utilizado pelos astrólogos na Idade Média será o cosmos aristotélico-ptolomaico, a partir do ponto que estaríamos considerando que o mundo superior (supralunar) estaria comandando o mundo inferior. Segundo o historiador e filosofo da ciência, Paolo Rossi, a astrologia estaria, assim, agindo não como uma superstição, mas como uma visão orgânica de mundo. Os pontos achados em concomitância do cosmos aristotélico com o cosmos da astrologia são os seguintes: 1) que no céu os corpos celestes eram inalteráveis e imutáveis; 2) os planetas eram tidos esferas perfeitas, e exerciam um movimento eterno, circular e perfeito; 3) a “quinta essência” superior, ou éter, é mais perfeita do que os elementos encontrados na Terra; 4) sendo a terra como um mundo inferior, aqui ocorrem fenômenos de geração, alteração e decomposição, como os efeitos meteorológicos e geológicos, por exemplo. Como as “causas superiores” influenciavam as “causas inferiores”, o cosmos só poderia ser tido como efeito e causas de tais situações no planeta terra. Rossi cita como exemplo a medicina, que “está ligada ao pressuposto de que todo o mundo natural seja governado e dirigido pelo movimento celeste e que o homem, enquanto ser natural, esteja sujeito às regras e às leis que governam o mundo superior”.

48 Thomas Kuhn faz uma comparação entre a visão de mundo das sociedades primitivas com as crianças por conta do animismo em suas crenças. O autor debate a respeito dos objetos terem “desejos” [sic] de se mover, ou de se organizarem em determinadas formas que melhor lhes convém. O autor dá um exemplo de um diálogo com uma criança de cinco anos que, ao questioná-la do porquê uma caixa caiu no chão, a criança respondeu: “Porque é bom [para ela estar lá]”. O historiador finaliza sua argumentação estabelecendo que os antigos dão explicações semelhantes, seria desejo do objeto soltado se encontrar no chão, mas o autor distingue as crianças dos antigos na capacidade dos últimos se expressarem por muitas vezes através de seus mitos. A visão de Kuhn pode servir bem para explicar os mitos gregos, talvez, levando em conta que Paul Veyne, algumas décadas depois do texto de Kuhn, demostra como os gregos “têm uma maneira própria de acreditar em sua mitologia ou de ser céticos, e essa maneira aprece apenas falsamente com a nossa”; mas a visão aristotélica-ptolomaica de cosmos (que é o tema tratado em seu textos) não tem nada de mitológica. Edith Sylla vai definir que o propósito de Aristóteles era “de desenvolver uma ciência dedutiva (modelada conforme o formato axiomático da geometria grega), que explique fenômenos físicos observados através de suas causas essenciais, próximas e remotas”. O que Kuhn pode ter descrito possivelmente uma maneira de ver um mundo de modo pré-científico, mas rotular esta forma de ver o mundo como “mitológica” é imprecisa.

No âmbito do pensamento religioso, uma das principais críticas da astrologia vinham dos Santos Padres. É fundamental, antes de analisarmos o saber medieval, temos noção de como se dá a ética cristã, principalmente em se tratando de astrologia, que é um tema que está no limiar entre a ciência e a fé, entre o cristianismo e o paganismo. Hipólito de Roma, que chamou a astrologia de “heresia caldeia”, São João Crisóstomo, São Gregório Magno, e Santo Agostinho, tentaram prevenir que seus fiéis mantivessem uma interpretação astrológica das Sagradas Escrituras. Santo Agostinho, que – como relata nas suas Confissões – quando era pagão se envolveu com a astrologia, afirmou categoricamente que “não existe a arte de prever o futuro”, colocando toda a sua fé na Providência Divina; porém na sua obra A doutrina cristã foi ainda foi mais longe, mencionando as óbvias relações da astrologia com o paganismo e atribuindo um caráter satânico a astrologia. De certa forma, como mencionamos anteriormente, o filósofo não condenava a ciência – inclusive a considerava de suma importância para que o ser humano se aproximasse de Deus – porém, a astrologia e demais práticas divinatórias influíam em superstição, que Agostinho atribui a “gentílicos” e a práticas demoníacas.49 Agostinho considera os astrólogos “gentios” por conta a origem pagã Caldéia da prática, para ele o homem que se dirigia ao um astrólogo pagava para ser “escravo de Marte, Vênus, ou quiçá de todos os astros”. Dessa forma, o homem que faz uso de astrologia perde a sua liberdade. Ainda são atribuídas duas questões que, para Agostinho, descredibilizam a astrologia: a questão pagã (já que o filósofo menciona que os planetas têm seus nomes em referência a deuses do panteão romano), e a questão dos gêmeos. Nesta última questão, Agostinho interessantemente se debruça nas escrituras para procurar passagens que corroborem para o seu argumento; engenhosamente, é tomado por Agostinho a história de Esaú e Jacó. A partir da história desses dois irmãos gêmeos bíblicos, de personalidades tão diferente, Agostinho manifesta:

Necessariamente, não poucos gêmeos nascem sob a mesma e idêntica constelação. Ora, as suas ações e os seus eventos na vida são o mais das vezes tão diferentes que um dos gêmeos pode estar vivendo na felicidade ao passo que o outro no infortúnio, como sabemos de Esaú e Jacó. Nasceram gêmeos e quando nasceu o segundo, Jacó, percebeu que segurava com a mãozinha o calcanhar do irmão. Certamente não se podiam fixar para eles dias e horas diferentes, e então sua constelação foi idêntica; mas a Escritura está aí, conhecida em todas as línguas, para atestar como foram diversos os costumes deles, suas ações, suas penas e seus êxitos.

49 A superstição é tudo o que os homens instituíram em vista da fabricação e do culto de ídolos. Compreende duas coisas: de um lado, tudo que tende ao culto de qualquer criatura como se fosse o próprio Deus. Por outro lado, tudo o que 1eva a consultar e fazer pactos e aliança com os demônios, por meio de sinais combinados e adotados, tais como os encontrados em fórmulas mágicas”. Olhando mais atentamente essa citação de Agostinho, se faz prudente tecer algumas observações: Agostinho viveu no norte da África na virada dos séculos IV e V, onde exerceu a prelazia após a sua confissão. A obra de Agostinho não é linear, mas sim ele exerceu sua filosofia conforma a conjuntura que se desenhava, e seus trabalhos se davam no entorno dos debates em que ele travava – geralmente com pagãos, céticos e heréticos (maniqueus, arianos e pelagianos). De certa forma, os trabalhos de Agostinho se davam em um caráter disciplinador, e a todo e qualquer momento queria evitar a contaminação dos preceitos heréticos e pagãos no dogma da Igreja. Neste caso, a astrologia se enquadrava para Agostinho como uma prática divinatória pagã.

O filósofo cristão ainda levanta a suspeita de que “os espíritos demoníacos, na intenção de enganar, proporcionam a cada pessoa as coisas conforme suas ideias próprias, e com as quais se veem presas na rede de suas conjecturas e concessões”. Isto é, na ânsia de prever o futuro, os demônios – na concepção de Agostinho –, induzem a pessoa a estudos astrológicos falhos, que não convém, e que nem irá lhes trazer respostas certeiras. Por último, Agostinho remete ao apóstolo Paulo de Tarso em sua primeira epístola aos Coríntios: “Não que os ídolos sejam alguma coisa. Mas aquelas vítimas que os gentios imolam, eles as imolam aos demónios e não a Deus. Ora, não quero que entreis em comunhão com os demónios”.

Levantando questões semelhantes ao de Sexto Empírico, porém através de uma perspectiva cristã, Agostinho parece não se satisfazer com as explicações astrológicas na tentativa de predizer a vida dos homens. O filósofo cristão soma as tentativas de elaborações racionais do argumento (utilizando-se do seu vasto domínio de retórica) ao caráter cristão em atribuir um caráter demoníaco para a prática astrológica. A questão do nascimento, levantada pelos dois filósofos, é especialmente escorregadia para os astrólogos; a questão dos gêmeos, levantada por Agostinho é explicada pelos astrólogos dizendo que o curto espaço de tempo entre o nascimento de um gêmeo e outro pode influir na configuração das constelações durante o nascimento. Habilmente – e, talvez, sabendo de como funcionava as respostas costumeiramente utilizadas pelos astrólogos de sua época – Agostinho lembra que, na história de Esaú e Jacó, Esaú nasceu segurando com sua mão o pé de Jacó, partindo disso o Bispo de Hipona questiona: como esses dois gêmeos, que nasceram no mesmo instante, poderiam ter configurações astrais diferentes? E, tendo a mesma configuração astral, como eles poderiam ter personalidades tão distintas?

Na Idade Média a astrologia foi amplamente utilizada. Através dos povos muçulmanos que adentraram a Europa via península Ibérica a partir do século VIII, a circulação de textos astrológicos pelo mundo medieval se intensificou. Adentrando no século XIII a questão da astrologia ainda se fazia polémica, Roger Bacon sugeriu que separasse a astrologia em duas partes: a supersticiosa (que foi a condenada severamente por Agostinho) e a científica (também chamada de “matemática”). Nessa divisão o monge inglês esperava que os astros não deixassem de ser analisados, sendo a astrologia supersticiosa condenada ao pecado de atentar o livre-arbítrio dos homens, e a astrologia científica utilizada para o conhecimento e sendo integrante da filosofia. Bacon não duvida do funcionamento da astrologia, inclusive demostrando a importância que a previsão poderia trazer de bom para a Igreja,50 sendo que a astrologia só era nociva para o homem que não soubesse controlar as suas paixões. Roger Bacon não foi o único filósofo cristão medieval a tecer comentários sobre a astrologia no período, o seu contemporâneo, São Tomás de Aquino – o grande aristotélico da Idade Média –, fez breves dizeres sobre os astros na sua ‘magnum opus’ Suma Teológica. Tomás afirma que sim, os astros influenciam a vida dos homens de maneira geral, pois as vontades dos seres não necessariamente irão seguir aquilo que foi mostrado pelos astros.

50 Francis Bacon defende o seguinte: “se a Igreja examinasse atentamente as profecias do texto sagrado, as afirmações dos santos, os oráculos de Sibila e do Merlin e de outros profetas pagãos, e, se a tudo isso juntasse as conclusões da astrologia e da ciência experimental, então ela, a Igreja, seria sem dúvida capaz de se precaver contra o tempo do anticristo e dos seus seguidores”.

São muitos os homens que seguem as paixões, que são movimentados do apetite sensitivo, nas quais podem influir os corpos celestes; são poucos, entretanto, os sábios que resistem a elas. Esta é a razão do porquê os astrólogos possam predizer na maioria das vezes coisas verdadeiras, sobretudo, se falam no geral. Não sucede assim se falam de particular; porque sempre fica a possibilidade de que qualquer homem resista às paixões por seu livre-arbítrio. É de notar que os mesmos astrólogos afirmam que “o homem sábio domina os astros” ao dominar suas paixões.

 (TOMÁS DE AQUINO)

A concepção aristotélica que Tomás irá utilizar para defender que os astros influem na nossa vida é que, por estarem localizados no mundo supralunar incidiriam sobre as substâncias que se encontravam no mundo sublunar (no final das contas, superior incidindo sobre inferior). Portanto, levando em conta a incidência dos astros e a natureza humana, para Tomás, conclui-se – conjuntamente com outros letrados medievais – que a astrologia se faz cientificamente possível, porém ela pode ser perigosa – no âmbito espiritual – pois estaria atentando contra o livre-arbítrio. Neste caso, vemos que dentre os principais pensadores medievais não há um consenso propriamente dito; no século VI, Agostinho condenou enfaticamente a astrologia, dizendo abertamente que a mesma não funcionava; no século XIII, Roger Bacon e Tomás de Aquino concordam que a astrologia funciona, mas o primeiro defende que é conveniente o seu uso para os propósitos da Igreja e o segundo diz que não é conveniente. É neste âmbito de intensas dúvidas sobre o que procede ou não a prática astrológica que encontraremos, na península Ibérica, a corte de Afonso X.

Toledo, ainda no século XIII, enquanto a Europa ocidental ainda ensaiava uma superação do feudalismo, na península Ibérica testemunhamos, ao mesmo tempo, guerras, e um dos maiores polos culturais da baixa Idade Média: a corte de Afonso X, Rei de Leão e Castela – conhecido também pela alcunha de el sábio.52 Filho de Fernando III e de Beatriz da Suábia, Afonso X figura como um dos maiores reis da Idade Média. Tornou-se famoso por agregar na sua corte sábios das mais diferentes religiões – principalmente daquelas que figuravam em comum na sociedade ibérica medieval –, estando lado a lado cristãos, judeus e muçulmanos; trabalhando, produzindo, e traduzindo textos científicos, filosóficos, e literários em língua vulgar; estabelecendo aquilo que seria conhecido como a Escola de Toledo. Embora se apresente como um monarca profundamente católico, inclusive tendo a autoria reivindicada de diversas cantigas de adoração à Virgem Maria (compiladas nas Cantigas de Santa Maria). Era notável a tolerância religiosa de Afonso X com os eruditos presente em sua corte. Em determinada parte dos Libros de Astronomia o monarca justifica:

e, embora esses filósofos não fossem cristãos nem entendessem nem falassem dos feitos do paraíso e do inferno, como nós entendemos e falamos, entretanto, seu bom entendimento e verdadeira razão os fazem entender que o que é sábio e inteligente sobe ao alto e o que carece de entendimento e é parvo desce ao fundo”.

(Afonso X)
52 Como todo infante destinado ao trono, Afonso X quando criança recebeu uma educação primorosa. Porém, desde cedo, o futuro rei demostrava grande interesse pelas ciências e pelas letras, surpreendendo os aios destinados à sua educação. Sua mãe, Beatriz de Suábia, filha de Frederico II de Hohenstaufen, era conhecida por sua grande erudição, e Afonso X a menciona como a pessoa de quem herdou a sua paixão pelo conhecimento no Libro de los judizios. Muitos dos cronistas atribuem a sua infância na Galícia o domínio do galego-português por parte do rei, que posteriormente o usou para compor as Cantigas de Santa Maria.

Os trabalhos dos eruditos da corte afonsina, em suma, trabalhavam com os textos científicos e filosóficos que já e encontrava na península Ibérica, em sua maioria trazidos pelos mouros estabelecidos no califado do Córdoba, no sul da península.53 Porém, não é somente a riquíssima figura de Afonso X – que renderia anos de estudo – o mote central desta questão, mas sim os astrólogos (ou estrelleros) que mantinha em sua corte, ao ponto de também ser referido como el rey astrólogo, ou simplesmente el astrólogo.

53 Com a chega dos Abássidas ao poder, por volta de 750, foram inúmeras obras clássicas de filosofia, astronomia, matemática do grego para o árabe, tornando Bagdá um importante centro intelectual no Oriente Médio. Segundo Cristina Machado, enquanto isso – na Europa – o saber grego era delegado somente a uma pequena casta de enciclopedistas. Sob o patrocínio do Papa Silvestre II, entre 1125 e 1200 diversos textos gregos traduzidos para o árabe foram traduzidos novamente para o latim. Mais tarde, a autora reconhece a importância do trabalho dos tradutores de Afonso X mas desta vez não traduzindo somente para o latim, mas também para o grego, hebraico e castelhano.

Além dos estudos astrológicos no ambiente cortês, também era praticada a astrologia na Universidade de Salamanca, onde os astros eram abordados Juntamente com as disciplinas de matemática e medicina; a astrologia só foi ter uma cátedra separada no fim do século XV, mas neste caso a disciplina era ensinada com foco na navegação. Em outros lugares da Europa como em Bolonha, Pádua, Paris e em Montepellier, a astrologia também era ensinada, mas no âmbito do Quadrivium. Em sua principal obra, Margarita philosophica, o humanista alemão e monge cartuxo, Gregor Reisch estabeleceu a partição da filosofia (ou Philosophiae partitio). O propósito de Reisch neste trabalho era classificar os saberes entre teóricos e práticos, tendo por base o pensamento de Aristóteles. As disciplinas que compunham o Quadrivium eram a: Aritmética, Geometria, Música e Astronomia (ou astrologia) – estas, então, são as 4 artes liberais. Tal como foi demostrado por Gregor Reisch em Margarita philosophica, através do aristotelismo em voga na baixa Idade Média e no Renascimento.

γ

Afonso X utilizava-se da astrologia de maneira, sobretudo, política, ou seja, praticou a astrologia judiciária: casamentos, guerras, datas de coroação e de assinaturas de tratados políticos, tudo era decidido conforme o crivo dos astrólogos régios, que eram, em sua maioria, judeus. Destacaram-se na corte d’el sábio Abraham Alfaquin, Judas ben Moshé, médicos, que praticavam a astrologia, e que ajudaram a produzir as Tablas Alfonsíes e o Libros del Saber de Astronomía. As Tablas Alfonsíes foram produzidas entre 1263 e 1272 e são creditadas a Isaac bin Sid e Judas ben Moshé. Nelas vemos uma tentativa dos ‘estrelleros’ do rei astrólogo em esquematizar matematicamente – em uma tabela em duas colunas, de forma prática – as posições dos corpos celestes levando em consideração o sistema ptolomaico. As Tablas iniciam os seus cálculos em 1252, ano de coroação de Afonso X – como se no momento da coroação do rei os astros estivessem indicando uma nova era de prosperidades para o reino de Castela. Os manuscritos dos Libros del saber de astronomía são compostos por 16 tratados sobre a ciência astrológica e os instrumentos usados nesse estudo. A obra contém traduções do aramaico e do árabe realizadas por várias pessoas, entre elas, o já mencionado como Judas bem Moshé (às vezes mencionado como Yehuda ben Moshe Hakohen) e Rabiçag de Toledo (também conhecido como Rabbi Zag e Isaac ben Sid). Foram compostas com a supervisão direta de Afonso X. A obra é dividida em três partes: a primeira descreve as esferas celestiais e os signos do zodíaco, constelação por constelação; a segunda a operação e fabricação de vários instrumentos para observações astronômicas; e a terceira descreve instrumentos para medir o tempo. Supõem-se que a o tratado foi composto entre 1276 e 1279 na oficina régia de Sevilha.

Tão renegada pelos Pais da Igreja, a astrologia em todas as suas formas foi tão bem aceita por Afonso X. Para o rei astrólogo, não haveria nada de demoníaco no estudo dos astros tal como tanto atormentou Santo Agostinho, para ele era muito pelo contrário, os estudos do céu era algo virtuoso. Segundo Afonso X o estudo, a observação e a tentativa de interpretar a posição dos corpos celestes a e forma que eles, porventura, influenciassem a vida terrena era legítimo desde que os estudiosos tenham em mente que o ‘primus mobilis’ era Deus (tal como falara Aristóteles cristianizado por São Tomás). Conforme cita o Libro de las Cruces, “se for de fortuna julga que o que está na carta [astral] é bom, e se de infortuna, mal. E Deus nos livre do mal”, e continua “acertando os julgamentos [do céu], não errará, com a graça de Deus”. A inspiração divina nos textos produzidos na corte afonsina era tal que constantemente é possível encontrar menções nos textos e exaltação ao Criador como podemos ver: “poderoso criador da noite e do dia e descobridor dos mistérios das ciências e das purezas”. Porém, como fora dito antes, a corte de Afonso X era extremamente multicultural e muito diferente de outros cenários encontrados em demais lugares da Europa no período. Toda essa multiculturalidade, além do passado até então recente dos califas muçulmanos na península, certamente pode ser um dos motivos da abundância cultural da corte afonsina. Como demais locais de tradução eram até então mosteiros, muito difícil que monges e demais cortes tenham acesso a abundância de textos tal como os disponíveis em Castela. O máximo que vamos ter disponíveis nos mosteiros europeus são textos do passado greco-romano tal como os achados por Petrarca e Poggio nos séculos XIV e XV respectivamente. Apesar de temos conhecimento das leituras de Avicena e Averrois no ocidente, esses autores não despertavam tantos interesses como despertavam na corte de Afonso X. Como Ligia Bellini aponta com maestria, os judeus na península Ibérica (e na Sicília, já que a ilha italiana ficou sob domínio muçulmano em breves períodos nos séculos X e XI) serviram como pontes entre os conhecimentos do mundo árabe-muçulmano e o cristão. Em suma, a corte afonsina pode ser considerada atípica no ocidente medieval muito por conta dos vínculos históricos que uniam a península Ibérica com o mundo muçulmano; além do fato de Afonso X tratar a astrologia como um todo, não fazendo distinções claras entre uma astrologia natural e outra supersticiosa, sendo muito pelo contrário, atribuindo-lhe uma origem divina do conhecimento astrológico com citações bíblicas e exaltações a Deus frequentes nos textos astrológicos afonsinos. Tanto é a prática de Afonso X em encarar a astrologia como um todo que veremos na sua corte a atuação de diversos médicos astrólogos praticantes da Melothesia.

Melothesia (ou, simplesmente, astrologia médica) é o ramo da astrologia que se dedicava a fazer analogia entre os corpos celestes e as condições de saúde do corpo humano. Neste caso a correlação entre astros e medicina é antiga, e remonta aos tempos de Hipócrates e Galeno; segundo Matilde Battistini, a astrologia médica tem seus primeiros momentos em tratados matemáticos que remontam à época do faraó Nechepsos no século I a.C., porém a prática só teve maior popularidade quando textos pseudopitagóricos começaram a circular pelo mundo greco-romano no primeiro século da cristandade graças a interpretações que certos pensadores faziam da filosofia platônica na época. Autores neoplantonistas, como Plotino, por exemplo, vão ser fundamentais para essa nova forma de se pensar a medicina e a astrologia, segundo Raymond Klibansky, Erwin Panofsky e Fritz Saxl, no clássico Saturn and Melancholy:

When Neoplatonism made use of the same mythical and scientific data as astrology, it did so not in order to subordinate this world as a whole to the determinative influence of the stars, but in order to find a metaphysical unity which could give meaning to all physical existence. […] The heavenly bodies were enviseged, on the other, as metaphysical symbols through which the various degrees in the structure of the All became visible, and, on the orther, as a cosmological principles according to which were ordered the emanations of the All-One into the material world and, vice versa, the ascent from the material world into the realm of the All-One.

(Klibansky; Panofsky; Saxl)

Em diversos tratados médicos entrados na Idade Média e no Renascimento demonstram a famosa iconografia do Homem-Zodíaco, isto é, um desenho anatômico do corpo humano em que faz a analogia entre as diferentes partes do corpo humano com os signos do zodíaco. Ela aparece nos Fasciculus medicinae de Johannes de Ketham, que dado o caráter compilador da obra, reunia lições de medicina que circulavam na Europa do século XV. Após a publicação por Ketham no final do mesmo século, vamos encontrar a mesma obra mencionando o Homem-Zodíaco de Ketham circulando na península Ibérica em 1495, com uma menção encontrada no Epilogo en Medicina y Cirurgia, Cobeniente a la Salud (1495) em Espanha, e no Reportorio dos Tempos em Lingoagem Portugues com as Estrellas dos Signos (1552) em Portugal. Certo é que o passado astrológico na península Ibérica é especialmente influente, porém será no renascimento em que vamos ver a astrologia ser bastante influente na área médica, como o próprio Jean Delumeau descreve, o Renascimento foi a época que o místico e o científico, o pagão e o cristão, andaram lado a lado – até mesmo no Renascimento ibérico que, comparado ao que ocorreu na Florença, foi bem mais conservador.54 Mas, diferente do que a historiografia tradicional remente, aqui estamos tratando o Renascimento como um período muito mais de continuidades do que de ruptura, considerando que o recorte dramático muitas vezes feitos por historiadores e historiadores da arte leva em conta muito mais o preconceito que os próprios agentes de época tinham com o seu passado recente do que as características histórico-culturais da época. O aristotelismo ainda estava em voga, e como menciona Bellini, apesar dos médicos (neste caso os portugueses) acharem que estavam rompendo com o passado medieval, principalmente com as influências árabes da medicina que

[…] os médicos do século XVI creditavam que estavam compreendo com o seu passado árabe e medieval; que estavam criando uma reforma na medicina, cuja característica central era a purificação e assimilação do saber grego. Mas o espírito de uma reforma é uma coisa mais radical que sua prática, e, […] os mais evidentes sinais de mudança se expressaram nas posições retóricas e ideológicas adotadas pelos médicos

(Bellini)
54 Obviamente que entre o esplendor intelectual da corte de Afonso X no século XIII e o Renascimento Ibérico no século XVI muita coisa aconteceu. Nesse meio tempo vamos ter a expulsão dos judeus em Espanha (pelos Reis Católicos) em 1492, seguida pela expulsão por Manuel I em Portugal em 1497. Essa expulsão influência do estudo astrológico na península, o astrólogo judeu sefardi Abraão Zacuto (que tem passagem pelos dois reinos) teve que abandonar sua cadeira de astrologia na Universidade de Salamanca e se refugiar no Império Otomano, depois ele foi convidado pelo rei João II para retornar a Portugal no intuito de auxiliar em estudos de navegação náuticos fazendo mapas celestes, porém Zacuto morre em Damasco no ano de 1560. A inquisição também censurou diversos materiais astrológicos, com a justificativa de que iam contra o livre-arbítrio, tal como foi debatido anteriormente. Porém, como Almeida demostra, nem isso era consenso entre os inquisidores. Este é um assunto vastíssimo, porém não será aqui que vamos nos debruçar sobre as interpretações da Inquisição sobre os assuntos referentes a astrologia, talvez seja tema para pesquisas futuras.

Isto é, seja em Bolonha, Salamanca, ou Coimbra, a autoridade da palavra ainda se fazia em voga. O médico português do XVI Jeronimo de Miranda considerava o estudo da língua árabe como um instrumento importante para a formação de um médico, para que ele tivesse a capacidade de ler os textos as máximas autoridades no original – tal como Avicena. De forma semelhante a Itália, em Coimbra os cursos de artes e medicina eram feitos paralelamente, além de ter o já mencionado grande intercâmbio entre as cadeiras de astrologia e medicina em Salamanca. Desta forma os médicos formados nessas universidades saiam com um amplo conhecimento de astrologia e a forma que elas poderiam ser aplicadas. Muitos desses médicos conquistavam cargos de prestígios tal como ser o médico pessoal do rei. Fato interessante, e que representa muito bem os usos da astrologia pelos médicos, se deu na cirurgia de catarata do rei João II, no Reino de Aragão. O médico judeu Cresques Abnarrabí comunica o rei em 28 de setembro de 1468 que, apesar de ele ter conseguido êxito na cirurgia do olho direito, seriam necessários doze anos para que houvesse uma conjunção astrológica tão favorável para que a intervenção no olho esquerdo tivesse o mesmo nível de sucesso. Agora, se o rei não quisesse esperar tanto tempo, o médico-astrólogo lhe comunicou que uma configuração astral estaria minimamente favorável no dia 12 de outubro às 15h30 – apesar de não ser a situação ideal, era o melhor cenário para que o rei não ficasse só com apenas um olho operado. O que, muito provavelmente, Abnarrabí não explicou para o rei, é que – conforme ele deva ter estudado nos cursos de medicina na época – a consciência de que o fato de que estava tudo interligado, o corpo humano, os astros, os minerais, a Yerra, lhe impediu, conforme ele deva ter aprendido em alguma aula em que o leitor citou nos textos de Galeno. Afinal de contas, se ele falhasse na cirurgia, sua integridade poderia correr em perigo.

Um dos principais pontos da Melothesia era de que o corpo, basicamente, era regido por quatro líquidos, que eram ligados aos quartos elementos naturais respectivamente: sangue – sanguíneo (ar), fleuma – fleumático (água), bile branca – colérico (fogo) e bile negra – melancólico (terra); um corpo saudável dependia do equilíbrio desses líquidos, que por ventura remetiam em frio, quente, seco, úmido. A questão do número quarto se torna muito mais abrangente, retomando a antiga escola pitagórica que atribuía ao número quatro propriedades mágicas. Além disso para tratar o corpo tinha que se consultar os signos dos zodíacos correspondente: Áries, Leão e Sagitário eram atribuídos ao elemento fogo, assim, por consequência, aos coléricos; Câncer, Escorpião e Peixes, à agua e aos fleumáticos; Gêmeos, Libra e Aquário, ao ar e aos sanguíneos; e por fim, Touro, Virgem e Capricórnio à Terra e aos melancólicos. Além do mais, como podemos observar na gravura do Homem-Zodíaco de Ketham os signos do zodíaco eram relacionados com partes do corpo, como: Áries à cabeça, Touro ao pescoço e a garganta, Câncer ao peito e ao coração, Gêmeos aos braços, Leão ao Estômago, Virgem ao intestino, Escorpião aos órgãos sexuais, Libra e sagitário à região anal, Capricórnio e Aquário às coxas, e, por fim, peixes aos pés. Como podemos ver, tudo estava conectado, os homens e as estrelas. O astrólogo castelhano Enrique de Villena no seu Tratado de Astrología descreve que “deveis saber que, segundo a astrologia, o corpo do homem recebe condição em costumes compleições dos sete planetas e doze signos, e recebe espírito vital da via do firmamento que é a oitava esfera”. Como vamos ver o corpo humano seria considerado como um microcosmos, e diversos autores místicos medievais e Renascentistas vão atribuir analogias mágicas55 em seus trabalhos: astrológicos, anatômicos, ou os dois combinados.

55 É prudente aqui ressaltarmos o seguinte, as analogias feitas por Isidoro de Sevilha em Etimologias, neste caso seriam no intuito de ajudar a uma compreensão do leitor, como um instrumento de fazer o texto ter maior clareza; agora, nos trabalhos astrológicos e místicos era feita a partir da crenças em que o homem trazia consigo um mini cosmos, parafraseando William Harvey: “o coração é o começo da vida, o sol do microcosmo, do mesmo modo que o Sol merece ser chamado de coração do mundo, por cujos atributos e pulsação o sangue é transportado, melhorado, tornado vegetal, e protegido da corrupção”.

Ao fim e ao cabo, a astrologia médica eleva à máxima potência a relação entre homem, natureza, e cosmos – elevando a importância efêmera da vida do homem ao cosmos; os mesmos homens que pensavam os céus olhavam para o corpo humano e o tratavam como se fosse um cosmos em miniatura, de forma bem similar ao que Isidoro de Sevilha havia demostrado em Etimologias. De certa forma, testemunhamos nessas fontes e relatos que, em certo grau, o conhecimento acerca dos astros e do corpo humano por um período caminharam lado a lado de forma que um complementava o outro. Como já fora dito, a astrologia médica tem o princípio de seu fim com a publicação do monumental De Humani Corporis Fabrica de Andreas Vesalius, estabelecido como o marco de uma profunda mutação nas ciências médicas. Por volta de sua publicação, a prática anatômica volta a ter novo fôlego na Europa; poderia aqui considerar as dissecações de Leonardo da Vinci no desmantelamento da medicina astrológica, porém, como nos lembra Paolo Rossi, colocar o retrato de Leonardo no hall dos grandes nomes da Revolução Científica seria colocá-lo no lugar errado; justamente porque Leonardo não manteve uma regularidade nos seus estudos, o desenvolvimento de uma metodologia científica – tem fundamental para o estabelecimento da ciência nesse período – estava muito mal esboçada em Leonardo. Os desenhos anatômicos de Leonardo tinham caráter de anotações espaças, havia uma sede pelo conhecimento próprio de Leonardo, mas o universo das suas dissecações começou como uma forma de aprimorar a suas técnicas de pintura. Sim, de certa forma Leonardo foi o meio de campo entre dois mundos (os dos artífices e os dos cientistas), porém o caráter único de Leonardo já foi bem explorado por nomes como o próprio Paolo Rossi e Eduardo Kickhöfel. Tão diferente é o trabalho de Vesalius, cujo propósito do De Humani Corporis Fabrica é uma quebra de paradigma na forma em que era pensada e produzida a ciência. Como tudo na histórica, ainda houve aqueles que se mantiveram resistentes as mudanças. O uso da astrologia na medicina derreteu de forma rápida, ainda no século XVI, e a forma de se fazer a medicina começou a não mais fazer analogias do corpo humano com a natureza, mas sim do como humano como uma máquina – como o próprio título do Vesalius sugere. O misticismo no mundo ainda se mantém, a astrologia ainda está presente nos jornais, porém não no sentido de misturar esta pseudociência com o corpo humano.

δ

DE ASTRONOMIA

XXV. DE INVENTORIBVS EIVS. [1] Astronomiam primi Aegyptii invenerunt. Astrologiam vero et nativitatis observantiam Chaldaei primi docuerunt. Abraham autem instituisse Aegyptios Astrologiam Iosephus auctor adseverat. Graeci autem dicunt hanc artem ab Atlante prius excogitatam, ideoque dictus est sustinuisse caelum. [2] Quisquis autem ille fuit, motu caeli et ratione animi excitatus per temporum vices, per astrorum ratos definitosque cursus, per intervallorum spatia moderata, consideravit dimensiones quasdam et numeros, quae definiendo ac secernendo in ordinem nectens Astrologiam repperit.
ISIDORI HISPALENSIS EPISCOPI ETYMOLOGIARUM SIVE ORIGINUM LIBER III

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Portanto, as observações das estrelas, ou horóscopos, ou outras superstições que se prendem ao estudo das estrelas, isto é, para conhecer o destino – são, sem dúvida, contrárias à nossa fé, e devem ser completamente ignoradas por Cristãos os quais nunca escreveram a respeito. Mas algumas pessoas, seduzidas pela beleza e clareza das constelações, se precipitaram no erro com respeito às estrelas, suas mentes cegas, tentam ser capazes de predizer os resultados das coisas por meio de cálculos prejudiciais, que é chamado de astrologia.

Isidoro de SevilhaEtymologiae

φ

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